domingo, 3 de janeiro de 2010

1472) A arte de contar filme (1.12.2007)




O romance Roliúde, de Homero Fonseca (Record, 2007) traz para o âmbito do cinema algo que conhecemos bem da cultura oral: a recriação de uma história em voz alta, diante de uma platéia. Uma atividade que vem desde o folclore, vide a recente voga dos “Contadores de Histórias” que se apresentam profissionalmente, organizam-se em entidades, promovem Congressos, etc.

O contador de histórias trabalha muitas vezes com o público infantil, e sua atividade é uma ampliação das atividades de mães, avós, babás, etc., que contam para as crianças, na hora de ir dormir, as aventuras dos Três Porquinhos ou as desditas de João e Maria.

Não é só o material folclórico que é repassado assim para as crianças. Os clássicos da literatura também – pelo menos foi isto que Monteiro Lobato fez durante anos, reescrevendo (ou melhor, fazendo com que Dona Benta recontasse oralmente) clássicos literários como o Dom Quixote, lendas mitológicas como Os 12 Trabalhos de Hércules, livros infantis como Peter Pan ou livros de informação científica como a História das Invenções de Van Loon.

Contar filme era prática habitual no Alto Branco da minha infância, ou no Colégio Estadual da Prata, onde na hora do recreio os “mais velhos” contavam com riqueza de detalhes explícitos (inventados, somente hoje percebo) alguns filmes franceses que a gente não tinha idade para ver.

Acho que somente quando me tornei cineclubista percebi que o cinema era também, além de veículo para uma história, uma arte das imagens luminosas em movimento. Isto nunca tinha me ocorrido. Para mim, até então, o Cinema era uma arte da narrativa, e até certo ponto tanto fazia ver o filme quanto ler sua novelização em prosa na Filmelândia.

Hollywood sabe da importância disto, tanto é assim que todo filme de sucesso acarreta sua novelização imediata, pela qual escritores de certo prestígio chegam a ganhar uma pequena fortuna.

Os franceses, sempre cartesianos, preferem publicar o roteiro original em coleções como L’Avant-Scène do Cinéma, mas os americanos sabem que melhor que a secura de uma decupagem é a recontação oral, dramatúrgica, onde se alternam a descrição visual dos ambientes e o acesso momentâneo aos pensamentos mais íntimos dos personagens.

Um filme é como um arco-íris, cada pessoa vê uma coisa diferente. Cada pessoa que se meta a recontar o filme irá lembrar ou interpretar as coisas de uma maneira diferente. Precisa ser artista para, sem tela cinemascope, sem imagens coloridas, sem Som Dolby Stereo, sem a presença de John Wayne ou de Ingrid Bergman, de Sean Penn ou de Michelle Pfeiffer, capturar a atenção de uma platéia.

Não precisa nem ser bom ator, ou ter a voz bonita. Basta ter isso que tão poucos têm – a percepção da essência de uma narrativa, do que precisa ser contado, limando os excessos, mantendo a tensão seqüencial entre o antes, o agora e o depois. É uma arte específica, e nenhum Aristóteles a codificou por inteiro.




1471) “Roliúde” (30.11.2007)




Certos memes são contagiosos. Já não basta Wills Leal ter transformado nossa próspera Cabaceiras, cenário preferencial para tantos filmes brasileiros, na “Roliúde Nordestina”, surge agora este divertido romance de Homero Fonseca (Record, 2007), auto-descrito como “Um romance picaresco, aventuroso e cinematográfico”. 

O livro conta a história de Bibiu, cuja profissão principal (entre as muitas que exerce) é de “contador de filmes”. A arte de contar filmes é um dos ramos menos lembrados da literatura oral, e só isto bastaria para justificar a existência do romance. Assim como sempre foi uso, no universo da literatura de cordel, a pessoa alfabetizada ler o folheto em voz alta para os iletrados, também sempre existiu (pelo menos onde eu vivia) o hábito de quem tinha dinheiro, ou tinha mais de 18 anos, assistir um filme e depois contá-lo para um grupo que não tinha.

Bibiu é um herói cordelesco em mais de um sentido, porque salta da ociosidade para o sub-emprego, deste para a pirangagem, e desta para ofícios informais como camelô, homem-da-cobra, apresentador de Circo. 

Vira evangélico para ganhar uma moça, vira corintiano ao se mudar para São Paulo, quase vira comunista, quase vai lutar na Europa na II Guerra Mundial – o que não o impede de escrever cartas para a mãe dizendo que está em Berlim, e que matou Hitler, com o resultado de ser recebido em Caruaru como herói de guerra. 

Nas aventuras de Bibiu misturam-se histórias originais e peripécias que qualquer nordestino reconhece de anedotas de mesa de bar ou de casos pretensamente verídicos que ocorreram com o irmão do noivo de uma prima, ou coisa equivalente.

Bibiu escala a Serra do Mimoso com a intenção de caçar extraterrestres e exibi-los no Gran Circo Torrone, dançando o xaxado. Bibiu contribui de maneira decisiva e involuntária para o triunfo da Revolução de 30. Bibiu come uma flor em praça pública para conquistar uma namorada difícil. 

Os capítulos começam com frases taxativas como “Foi no Exército que eu aprendi a ter horror a hierarquia e repolho”, ou “A morte do presidente Franklin Delano Roosevelt causou um fuzuê danado em Tejipió”. A biografia de Bibiu cruza os meados do século 20, enquanto, em capítulos intercalados, ele conta num nordestinês atochado de termos regionalistas os grandes clássicos do cinema, como No Tempo das Diligências, Casablanca, Sansão e Dalila, O Ébrio, E o vento levou, A Dama das Camélias”, Aviso aos Navegantes, etc.

São as décadas da modernização e americanização do Brasil, vistas pelos olhos de um primo em segundo grau de Cancão de Fogo e em terceiro grau de Quaderna. Bibiu conta os filmes ao seu modo: resume a ação, comenta o caráter dos personagens, põe na boca das estrelas o linguajar e as gírias do Mercado São José. 

Como ele mesmo diz, ao ecoarem os derradeiros pipôcos da II Guerra Mundial: “No fim das contas, quem invadiu o Recife não foram os alemães, não. Foram os americanos”.






1470) Escritores em ação (29.11.2007)



Imagine que alguns escritores decidissem criar um romance juntos, utilizando o ambiente e os personagens de um autor que todos eles admirassem e conhecessem bem.

Estes escritores seriam (digamos) Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Alexandre Dumas, Italo Calvino, William Faulkner... E eles escolheriam o universo do “Dom Quixote” para criar sua história.

Cada um seria um personagem: o aventureiro Dumas seria o Quixote, o cético Faulkner seria Sancho Pança, e assim por diante. Todas as noites, eles sentariam em torno de uma mesa e, seguindo um roteiro pré-estabelecido, começariam a inventar uma continuação fictícia da grande obra de Cervantes.

Parece interessante, não é mesmo? Literatura oral, improvisada coletivamente, utilizando personagens e ambientação pré-determinados.

Nas mãos de pesos-pesados como os que citei acima, parece a receita certa para uma história interessante. Mesmo que não resultasse numa obra-prima, valeria a pena acompanhar as peripécias que essas mentes brilhantes seriam capazes de arquitetar.

Guardadas as desproporções, é exatamente isto que acontece nos chamados RPG ou Role Playing Games. Só que em vez de gênios literários são meros garotos como nossos filhos, ou meros sujeitos como nós mesmos. Não importa.

É isto que eles fazem: escolhem um Livro que contém os pontos de partida da narrativa (ambiente, situações, personagens, poderes e limitações de cada um, etc.) e começam a criar do zero uma aventura, reunindo-se algumas horas por dia.

Nunca joguei RPG mas já presenciei amigos meus jogando. É uma coisa fascinante. Alguns jogos são em universos de fantasia tipo Tolkien; outros são aventuras policiais na Londres de 1890; outros são batalhas de ficção científica em planetas distantes; outros são arrepiantes histórias de vampiros. Já existem vários com ambientação brasileira.

Os personagens se defrontam através dos seus atores, em torno de uma mesa, em que decisões são tomadas ao sabor do improviso, do momento, fazendo a história dar guinadas de surpresa. Quando um personagem resolve correr um risco, e morre, morre mesmo – cai fora do jogo e fica vendo os outros jogarem.

Algumas aventuras de RPG levam dias, semanas para ser concluídas. Dependendo do número e da disposição dos participantes e da dificuldade da missão (p. ex., atravessar um país em guerra sob disfarce, roubar um objeto e trazê-lo de volta), podem durar meses.

São uma forma de Literatura Oral na expressão da palavra. Uma Literatura Oral que não sei se foi descoberta ou imaginada por Câmara Cascudo ou Paul Zumthor. Surgiu nas metrópoles dos EUA, espalhou-se pelo mundo inteiro.

Alguns pais torcem o nariz, achando que é perda de tempo. Não, amigos. Não é perda maior de tempo do que representar peças, jogar futebol ou tocar samba. É uma atividade que pode dar a um grupo de jovens um bom pretexto para se divertir e se conhecer uns aos outros. Se vai redundar em Arte... que importância tem?




1469) “Doomed” (28.11.2007)


(Chris Burden)

A Arte Conceitual (sob os numerosos nomes que usa) nos dá às vezes a sensação de estarmos sendo enganados por um grupo de espertalhões. A gente paga uma entrada no Museu e, quando chega lá dentro, a exposição consta de algumas pilhas de tijolos e de cuecas sujas. Isto é Arte? Por outro lado, como a Arte Conceitual depende exclusivamente do que se passa na cabeça do artista, não é estatisticamente impossível que ela nos ponha de frente com experiências limite, experiências que nos fazem repensar algumas coisas, não apenas sobre pintura ou galerias, mas sobre o mundo.

Chris Burden é um artista norte-americano (nascido em 1946) que faz umas experiências pouco convencionais denominadas por ele de “danger pieces”, “peças de perigo”. Numa delas, intitulada “Doomed” (“Condenado”), Burden colocou na sala do museu um plano inclinado de vidro, e ficou por baixo dele, imóvel, tendo ao lado um relógio. O “conceito” estabelecido pelo artista era de que não se mexeria até que alguém resolvesse interferir. Isto aconteceu quarenta e cinco horas depois. Um dos guardas do Museu, penalizado, aproximou-se e colocou uma jarra com água ao lado de Burden. E a “peça” terminou nesse instante.

O interessante desta performance (ou que nome lhe queiramos dar) não é simplesmente o fato do sujeito ficar parado. Já tive notícia de dezenas de performances semelhantes. O artista fica dormindo na sala do Museu. O artista fica de pé na frente de uma tela em branco. O artista fica cortando as veias com uma faca. O artista fica explicando Arte ao ouvido de uma lebre morta. E assim por diante. Artistas que se exibem a si próprios como Arte são um lugar comum nessa atividade.

O interessante do conceito estabelecido por Burden é o fato (até certo ponto aleatório) de que a performance se encerrou com um gesto de compaixão por parte de um guarda. Guardas de Museu, de pavilhão de Bienal, etc., são uma turma que dariam um excelente material para um documentário, porque são forçados a apreciar dias a fio uma porção de objetos ou eventos num ambiente em que não poriam os pés no seu dia de folga. O guarda possivelmente comentou com os amigos algo como “esse rapaz é doido, vai acabar morrendo”, algo assim.

John Lennon conheceu Yoko Ono numa exposição desse tipo, em que ele foi convidado a subir numa longa escada, em equilíbrio precário, e pegar uma lupa para examinar algo rabiscado no teto. Com muito esforço ele pegou a lupa, e leu ali a palavra “Sim”. Lennon comentou: “Se estivesse escrito “Não’, eu teria ido embora, mas aquele ‘Sim” recompensou meu esforço”. Na performance de Burden, talvez algum espectador metido a engraçadinho tivesse se aproximado para cuspir na sua cara, ou para tirá-lo da imobilidade com um pontapé. (Aqui no Brasil, as chances disso acontecer seriam maiores) Mas o gesto de compaixão do guarda deu à obra um final impossível de prever, mas, visto em retrospecto, recompensador – e humano.

1468) A embriaguez do poder (27.11.2007)


(o Presidente da República, Prof. Dr. Braulio Tavares)

Ninguém se horroriza mais do que eu com as denúncias da imprensa sobre as mordomias do Governo Federal. O Globo tem publicado matérias sobre o inchaço dos gastos dos Poderes da República. São despesas alucinadas em todas as direções. Em alguns casos, gasta-se em excesso (paga-se uma fortuna por algo que é muito mais barato). Em outros, gasta-se mal (compra-se o produto errado, ou contrata-se um serviço desnecessário). Em outros ainda gasta-se de modo absurdo (são as despesas inexplicáveis, que não se explicam pelo perdularismo, pela desonestidade ou pela incompetência).

Me horrorizo agora, porque sou da imprensa. Mas quando eu fôr eleito Presidente da República provavelmente farei a mesma coisa. Minha primeira medida será mudar os horários de todas as repartições federais, cujas 8 horas regulamentares de trabalho passarão a ocorrer das 14 às 18:00 (primeiro expediente) e das 19 às 23:00 (segundo expediente). Vão ter que trabalhar na hora em que eu trabalho (e olhe que eu também trabalho de madrugada; estou sendo até bonzinho).

Sou um sujeito ascético e não esperem de mim essas mordomias tradicionais dos políticos: champanha, caviar, etc. Minhas mordomias serão culturais. Criarei, com orçamento equivalente ao atual Ministério da Cultura, o Ministério da Cantoria de Viola. (Não revelo agora quem será meu Ministro para não despertar ciúmes entre os amigos) Criarei o Ministério da Ficção Científica, ao qual ficará vinculada a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Darei atenção especial à valorização do nosso Patrimônio Histórico, e ordenarei o tombamento do Treze Futebol Clube como patrimônio imaterial do povo brasileiro. (Em contrapartida, exigirei minha nomeação para o Departamento de Futebol do dito cujo, com poderes para mexer na contratação de reforços e na escalação do time.)

Enfim – o que quero sugerir, com esta modesta “reductio ad absurdum”, é que as mordomias em que Nossos Guias incorrem não são adotadas com o objetivo explícito do achincalhe, do deboche, da provocação. Na maioria dos casos o governante acredita, com certa sinceridade, estar fazendo algo necessário, algo importante. Tenta promover aquelas área que historicamente lhe são próximas, e sobre as quais acredita ter algum tipo de conhecimento e de controle. O problema é que sua avaliação está comprometida pela embriaguez do cargo. Escrevi uma vez: “Dizem que o poder corrompe, mas digo eu que o poder cega, o poder embaça todo o resto além do eu”. O ex-presidente FHC disse certa vez que a coisa que mais estranhou depois de deixar a Presidência foi pegar em maçanetas: “Passei oito anos sem abrir sequer uma porta de carro, alguém sempre ia à frente e abria para mim”. O poder é uma espécie de Big Brother maquiavélico a que o Sistema expõe um esquerdista, um sociólogo, um operário – para fazê-lo pagar esse mico histórico diante da Nação, mostrar o quanto qualquer um de nós é humano, constrangedoramente humano.