domingo, 1 de março de 2009

0859) Liberdade versus segurança (17.12.2005)




Se você perguntar a uma pessoa se ela prefere a liberdade ou a prisão, ela vai dizer que prefere a liberdade. Se você lhe perguntar se ela prefere a segurança ou a insegurança, ela vai preferir a segurança. 

É muito fácil fazer escolha quando uma alternativa é claramente boa e a outra claramente ruim. As escolhas cruciais entre duas alternativas se dão quando temos que optar pelo lado positivo de A ou o de B, ou pelo lado negativo de A ou o de B. O que você preferiria experimentar? A liberdade ou a segurança? A prisão ou a insegurança?

Quanto mais liberdade temos, menor é a nossa segurança, e vice-versa. Quando eu tinha vinte anos, um amigo meu, da mesma idade, me confessou que nunca dormira fora de casa. Desde que nascera tinha vivido com os pais, e nunca, jamais, em tempo algum, fizera uma viagem ou passara uma noite na casa de um parente. 

Alguns anos depois, hospedei em meu apartamento um andarilho meio hippie, o qual me disse que há mais de cinco anos só dormia em casas alheias ou na rua, e que nunca se demorava mais que uma semana em cada cidade; dormiu três noites lá em casa e sumiu. A esta altura, deve estar quase esgotando a lista de cidades disponíveis. 

Estes dois caras sempre foram para mim símbolos de opções de vida opostas, que secretamente suspiram de inveja uma da outra.

Liberdade e segurança são duas coisas opostas, mas complementares. São os pontos extremos numa escala que, digamos, vai de 1 (máximo de segurança) a 100 (máximo de liberdade), e ao longo dessa escala tem um ponteiro que ficamos o tempo todo movendo numa direção ou na outra. 

Trabalhamos onze meses numa repartição, assinando ponto e pegando o contracheque; estamos empurrando o nosso ponteiro rumo a um máximo de segurança e só um tiquinho de liberdade. Chega dezembro, tiramos um mês de férias, botamos uma mochila nas costas e vamos escalar vulcões nevados no Chile: lá se vai o nosso ponteiro na direção oposta.

Isto se aplica também à sociedade. 

Queremos um país mais livre, onde cada um pode fazer o que lhe dá na telha, ou um país mais seguro, onde as autoridades vigiam cada pessoa bem direitinho, pra não fazer bobagem? 

Queremos criar nossos filhos soltos na rua, aprendendo a se virar por conta própria, ou queremos mantê-los a salvo de perigos e seguindo cada instrução nossa? 

Queremos liberdade de imprensa onde todo mundo pode fazer propaganda de suas próprias idéias (inclusive nazistas, satanistas, pornógrafos, etc.), ou queremos uma imprensa politicamente correta onde ninguém tem o direito de ofender as idéias alheias?

Tudo que ganhamos numa direção perdemos na outra. Nunca poderemos ter 100% de liberdade e 100% de segurança, porque a cada ponto que avançamos na direção de uma estamos nos afastando da outra. O que precisamos é, em cada situação, saber mover o ponteiro para um ponto ideal onde podemos conciliar o máximo de cada uma. É difícil, mas se fosse fácil não tinha graça.






0858) Superstições da informática (16.12.2005)



Dizem os sociólogos que o advento da tecnologia extingue o misticismo, o animismo, a superstição. Pois eu acho o contrário. O misticismo e seus correlatos funcionam como uma enorme jângal amazônica, e cada tecnologia nova que é deixada no meio dela acaba sendo absorvida sem muitos problemas digestivos. O exemplo clássico disto é a pegada que o astronauta Neil Armstrong deixou na areia da Lua ao pisar nela pela primeira vez. Armstrong desceu a escada do módulo lunar de forma a pisar na Lua com o pé direito. Seguro morreu de velho.

A convivência com os computadores tem me sugerido algumas superstições novas, que nada têm a ver com gato preto ou espelho quebrado. Comecei a acreditar em aura, por exemplo. Não se trata de uma aura espiritual (embora, na minha idade, a prudência me aconselhe a não descartar hipótese alguma), mas de uma aura eletromagnética emitida por meu corpo e essencial ao funcionamento do PC. A prova disto está em que, todas as vezes que clico ou digito um comando e me afasto para ir buscar café ou atender o telefone, na volta encontro na tela uma mensagem de erro. Percebi que, abandonado aos seus próprios recursos, computador cai mais do que teco-teco. Por quê? Porque os seus circuitos acostumaram-se a trabalhar com uma determinada intensidade de campo energético, que é a soma do dele próprio com o meu. Quando me afasto... queda de voltagem, e ele não consegue arremeter sozinho.

Comecei a acreditar também numa coisa que antes me parecia pertencer apenas ao domínio da ficção científica: a memória individual das máquinas. Creio firmemente que os computadores, como os gatos e os cachorros, acabam se amoldando aos seus donos, aprendendo seus hábitos, adaptando-se a eles. Toda vez que uma pessoa estranha vem à minha casa e precisa usar meu PC, alguma coisa errada acontece. Ele trava, ou fica inexplicavelmente lento, ou manda tela-azul a cada tentativa. É sabido que cada pessoa tem seus próprios caminhos para abrir e usar os programas, e os computadores se acostumam com o estilo de cada qual. Eu, por exemplo, assim que ligo o PC abro o Windows Explorer, cuja árvore de pastas e arquivos é meu guia indispensável. Me formei na época do DOS e do X-Tree Gold, e só sei caminhar por entre meus milhares de arquivos (texto, som, imagem) usando estes utilíssimos índices. Quando alguém chega e quer abrir um arquivo usando outro sistema, a máquina pula, corcoveia, refuga, sacode-se toda até expelir o peão intruso que ousou acessar-lhe a sela.

As máquinas estão vivas. O escritor de FC Fábio Fernandes ganhou dos amigos o apelido de “Cybergeist” (Poltergeist Cibernético), porque bastava-lhe botar a mão num PC para que alguma catástrofe lhe sucedesse. Já lhe ocorreu perder um arquivo de forma tão radical que até o disquete de backup que guardava noutro cômodo da casa foi reformatado. Supersticioso, eu? Não, amigos. Preparem-se para o mundo do futuro, a Era dos Ciber-Simbiontes.

0857) O sol de Austerlitz (15.12.2005)


("Austerlitz", quadro de Mazurovsky)

Napoleão Bonaparte foi um dos meus ídolos da infância. Digo da infância porque, numa idade em que meus colegas liam Luluzinha e Mickey eu estava lendo Os Miseráveis de Vitor Hugo e me deleitando com a magnífica descrição da batalha de Waterloo, além de devorar os dois volumes de contos de Conan Doyle com as divertidas aventuras do Brigadeiro Gérard, um oficial napoleônico exuberante, fanfarrão, conquistador, ingênuo e suicidamente bravo, magnífico personagem que no cinema poderia ser interpretado por seu xará Gérard Depardieu. Por falar em cinema, não posso esquecer de ter comparecido ao Babilônia para ver Marlon Brando em Désirée, o amor de Napoleão e, já adolescente, ao Capitólio para ver Audrey Hepburn em Guerra e Paz (foi quando Napoleão sumiu do mapa, e Audrey passou a reinar soberana sobre meus hormônios – a Natureza é sábia).

Dias atrás, cerca de 4 mil sujeitos de mais de 20 países se reuniram no interior da República Tcheca para reconstituir a batalha de Austerlitz, ocorrida em 2 de dezembro de 1805, e que portanto estava completando dois séculos. Em Austerlitz o pequenino imperador teve uma das maiores vitórias militares de sua carreira, comandando um exército de 75 mil homens contra os 95 mil da coligação austro-russa. Napoleão fez umas manobras estratégicas cuja sutileza me escapa, e causou 25 mil baixas nos inimigos, fazendo-os bater em retirada.

Hoje, os parisienses comemoraram na Place Vendôme, onde há uma coluna feita com o bronze dos 180 canhões inimigos capturados em Austerlitz. E no local da batalha, quatro mil fãs (se há outra palavra, desconheço) da batalha encenaram o movimento das tropas, num clima de confraternização internacional e de reverência pelos milhares de mortos.

Posso estar enganado, mas se existe algum tipo de evolução na História da Humanidade (coisa de que não estou certo) ela está no fato de que a violência tende a se diluir e se sublimar em “encenações substitutivas da violência”. Socorram-me os leitores freudianos, mas parece-me que existe de fato um mecanismo qualquer em nossas mentes individuais e coletivas que contribui para que a guerra possa ser preservada em seus aspectos simbólicos, sem que haja necessidade de violência física e perda de vidas humanas. Seria mais ou menos o mesmo que ocorre com atividades como a esgrima e a capoeira, que se transformaram numa mistura de esporte, jogo, coreografia – uma mistura inofensiva, onde a beleza e a agilidade da luta original são preservadas, sem que seja preciso tirar sangue de ninguém. Há algo deste mesmo espírito no videoclip “Beat It” de Michael Jackson, onde duas gangues urbanas se defrontam e em vez de uma luta a cena se transforma num balé. Os defensores dos vídeo-games usam o mesmo argumento: a violência virtual pode eventualmente conduzir à violência verdadeira, mas na grande maioria dos casos ela a substitui, com evidentes vantagens sociais.

0856) A sabedoria das massas (14.12.2005)



Vemos o tempo todo propagandas dizendo: “Dez milhões de pessoas já viram este filme... dez milhões de pessoas não podem estar erradas!” Dezenas de milhões de pessoas aceitam plenamente este argumento, e vêem nele a expressão da verdade. Se dez milhões de pessoas compram uma coisa, essa coisa é necessariamente boa. As multidões não erram. A voz do povo é a voz de Deus.

A falácia da pseudo-sabedoria das multidões é proporcional à falácia oposta, a da pseudo-sabedoria das elites. “Isto aqui não é pra todo mundo – é pra quem sabe”, é uma forma igualmente eficaz de engambelar um besta. “Tenha acesso ao universo exclusivo dos usuários do MerreCard”. “Isto foi feito para pessoas especiais como você”. E assim por diante. Parte-se do princípio de que só quem sabe o que é bom é um grupinho seleto de indivíduos privilegiados.

Millôr Fernandes definiu Esquerda e Direita desta maneira: quem acredita na sabedoria do Povo é de esquerda, e quem acredita na sabedoria das Elites é de direita. Posições políticas, intrigas de governo e oposição, troca-troca de partidos, discussão teórica de manuais, tudo isto, se fervido e filtrado, se resume a essas duas crenças opostas e fundamentais.

Diz-se por aí que Democracia é “o governo do povo”. Na verdade, democracia é o governo que tenta fazer uma síntese precária entre as tendências da Direita e da Esquerda. No regime democrático, a Multidão elege uma Elite para governar em seu nome. Teoricamente, teríamos aí as duas “sabedorias” reunidas: a massa anônima escolhe algumas centenas de representantes (teoricamente, como sempre, aqueles mais capazes, mais brilhantes, mais carismáticos, etc.) e estes se tornarão a elite governante.

O que acho mais interessante nisso tudo é perceber como é reconfortante, para algumas pessoas, pensar que estão fazendo algo certo pelo simples fato de estarem indo na mesma direção que vai a boiada. Eu entendo esse sentimento. Ele nos dá uma sensação de paz, nos envolve numa aconchegante nuvem de oblívio e de abdicação, anestesia aquele pedaço do cérebro que tanto nos incomoda – o que é responsável pela tomada de decisões, pela aceitação de responsabilidades. Juntar-se à massa é transferir para ela o poder de decidir por nós. A gente vira uma rolha de cortiça, pula dentro do rio e deixa-se levar em suas águas. É a sedução da unanimidade, que nos dispensa de justificar esta ou aquela escolha.

O elitismo, por mais que conduza a distorções (desde a auto-suficiência dos eruditos até a prepotência das ditaduras) pelo menos envolve a vontade de tomar decisões, mobiliza a vontade, exprime uma intenção clara de fazer isto e não aquilo. As elites sabem o que querem, e arregaçam as mangas para consegui-lo. E o perfil de nossa época, formatada por esta patética “democracia” para a qual não temos um substituto melhor, é este: massas eletronicamente doutrinadas delegando o Poder às elites que as manipulam.

0855) O sorteio da Copa (13.12.2005)



George Gamow tinha um livro onde provava por A+B que numa festa de aniversário com 50 pessoas era extremamente provável que um dos convidados também aniversariasse naquele dia. Para ele, era uma alta probabilidade decorrente da mera quantidade de pessoas envolvidas. O sorteio dos grupos para a fase inicial da Copa do Mundo, realizado sexta-feira passada, comprova esta lei. Qualquer que fosse o arranjo determinado pelo acaso do sorteio, coincidências iriam pipocar aqui e ali, esse tipo de coincidências que no futebol fazem os adeptos das "teorias da conspiração" bradarem: "Não tô falando? É tudo combinado!"

Dois técnicos foram vítimas da mesma cruel coincidência. O sueco Eriksson, que treina a Inglaterra, vai enfrentar a Suécia; e o brasileiro Zico, que treina o Japão, vai enfrentar o Brasil. Parece de propósito, não é mesmo? Será que existem outros técnicos entre as 32 equipes cujos países de origem também estejam disputando a Copa? Se forem só estes dois, então, sim, é uma enorme coincidência que ambos tenham de enfrentar justamente o seu país natal.

A Copa costuma colocar em campo países que são ou foram adversários recentes na política ou no campo de batalha. Numa das últimas Copas, EUA e Irã se enfrentaram, e os jogadores deram um belo exemplo de sensatez, posando para as fotos misturados e abraçados uns aos outros. Na Copa de 1986 houve o confronto entre Argentina e Inglaterra, que tinham se enfrentado pouco antes na Guerra das Malvinas. O jogo (vencido pela Argentina) foi excelente, e proporcionou a Maradona um dos gols mais fantásticos de sua carreira. Pois agora quem vai estar frente a frente na próxima Copa são Portugal e Angola, colonizador e colonizado, e não há dúvida de que nesses momentos a História pesa, a política pesa, principalmente quando toca o hino e sobe a bandeira.

Confrontos mais sutis irão envolver o Paraguai e a Inglaterra (que financiou a derrubada de Solano López), e Alemanha e Polônia (alguém se lembra das fotos dos poloneses a cavalo marchando contra as divisões Panzer de Hitler?). França e Suíça, que se bateram até a exaustão nas recentes eliminatórias, voltarão a se encontrar logo na primeira fase do torneio ("Não agüento mais ver esses caras na minha frente").

O Brasil não pegou um grupo-mamata como da vez passada (Turquia, China e Costa Rica). Pegamos um adversário forte, a Croácia, terceiro colocado em 1998, um time talentoso e muito encardido pra se derrotar; o Japão de Zico, aquela agitação entomológica e meio sem direção, mas que por isso mesmo acaba atordoando nossos jogadores, acostumados a enfrentar ou o talento ou a porrada; e a Austrália, geralmente um time de estivadores de olhos azuis que resolve tudo na base do bufo-bufo e do esbarrão, como fez agora com o Uruguai. O primeiro jogo é o mais difícil, como aliás foi o jogo com a Turquia na Copa passada. Somos favoritos, mas quando o juiz faz "pí!" e a bola rola, todo favoritismo se evapora.

0854) Meus Ateneus (11.12.2005)



Uma coisa que me chama a atenção nos colégios de hoje é o fato de que os garotos estudam sempre em turmas da mesma faixa etária. Um garoto ou garota de 13 anos que esteja na 6a. série, por exemplo, estuda ao lado de outros cuja idade varia de 12 a 14 anos, não muito mais do que isto. Um aluno de 15 ou 16 anos numa turma assim já seria considerado uma anormalidade. É claro que, no colégio como um todo, as idades se misturam no pátio, no recreio, nas atividades em geral. Mas dentro de cada sala de aula, onde passam a maior parte do tempo, é todo mundo “do mesmo tope”, como paraibanamente dizemos.

Pois, por falar em Paraíba, eu me lembro que quando eu tinha essa idade e cursava essa série (que então se chamava “segundo ano ginasial”) eu fazia parte de turmas onde havia alunos de 18 ou até 20 anos de idade. Por que isto? Há algumas razões sociológicas. Carência de escolas no interior, e quando as famílias se mudam para a cidade grande o filho está defasado. Índice de repetência alto: o sujeito leva dois anos na primeira série, três anos na segunda, os outros da mesma idade seguem em frente e ele fica estudando com garotos mais novos. E assim por diante.

Isto fazia com que nossas turmas se dividissem em dois grupos (os próprios professores usavam estes termos): “os grandes” (cerca de 20% a 30% da turma) e “os pequenos”. Com doze ou treze anos de idade eu disputava espaço (e comparava minhas notas escolares) com sujeitos que já tinham servido o Exército, que já trabalhavam, que tinham noiva, que freqüentavam a Zona, que bebiam, que fumavam... Muitos deles eram gente boa. Outros eram brutamontes que se impunham aos “pequenos” na base da ameaça física. Os recordistas de repetência tinham problemas com as matérias. Uns exigiam “cola” na hora da prova (“Me passa as respostas, senão vou te pegar na saída”); outros chegavam na véspera e pediam: “Vem cá, tu que sabe, me explica esse negócio aqui...”

Ouso afirmar que essa convivência me foi mais educativa do que as matérias em si, ensinando-me o mundo real, o jogo de política, violência e esperteza que eu iria encontrar na vida adulta. Sempre fui um dos “pequenos” e agradeço aos “grandes” as lições que recebi, mesmo sob a forma de um soco na cara. Foram úteis, e não foram esquecidas. Aprendi como o mundo funciona. Também tive lições de amizade, da parte de sujeitos tarimbados e malandros que juntavam os “pequenos” para explicar-lhes os mistérios da vida, desde o sexo até a bebida, desde ganhar a vida por conta própria até entrar sem pagar no campo do Treze. A convivência masculina nos colégios de então era mais áspera, por causa dessa mistura entre os profissionais calejados e os dentes-de-leite. Eu não a trocaria pelos guetos etários dos colégios de hoje, por mais que os educadores me convençam de que a fórmula atual é a mais indicada. Nos colégios em que estudei, vigorava a lei da Rua, ensinavam-se as lições da Rua, e sou-lhes grato por isto.