Estava lendo um texto em inglês a respeito
de pessoas que compram uma granja para produção de ovos de galinha. A certa
altura, o texto diz, no depoimento de uma das donas da granja:
When you candle 22.000 eggs and those eggs are worth 2 1/2 cents each to you there is an extra element of satisfaction!
“To candle eggs”? Eu conheço “candle” como substantivo, significando “vela”, mas não tinha visto ainda como verbo. Fui ao pai-dos-burros, o meu manuseado Webster/Houaiss, e lá estava:
candle – (...) vt. examinar (esp. ovos) por transparência à chama de uma vela ou qualquer outra fonte de luz.
Bastou isso para me fazer lembrar as muitas vezes em que vi, no cinema ou na vida real, uma pessoa erguendo um ovo de encontro à luz do sol que entra pela janela, para “olhar por dentro” dele.
Tradutores que gostam de tomar cerveja sabem que tão impossível quanto pedir apenas uma saideira é ir procurar uma palavra no dicionário e olhar apenas aquela. A gente sempre fica curioso em peruar mais alguma coisa.
No caso, fiquei pensando na diferença entre “candle” e “vela” – por que razão a palavra inglesa é tão diferente da palavra em português? É sempre bom pensar nessas coisas. A primeira associação de idéias que me ocorreu foi comparar com outras línguas, e bingo! – está na cara que a palavra supostamente inglesa é de origem uma palavra latina, visto que vela em francês é “chandelle” e em espanhol é “candela”.
Por que do latim e não do grego? – a gente se pergunta às vezes. O indispensável Online Etymological Dictionary apaziguou minha inquietação, informando-me que na antiga Grécia as velas eram desconhecidas, pois aos gregos lhes bastavam as lamparinas a óleo. Foi com os romanos e os etruscos que elas se tornaram comuns.
Como confirmação dessa latinidade, bastou-me lembrar de duas musiquinhas.
“Mon ami Pierrot”
https://www.youtube.com/watch?v=z14y_YjbqVM
A origem da palavra é mesmo o latim, e lembrei mais ainda que no campo da ciência, óptica, eletricidade e áreas afins usa-se o termo “candela” como unidade de brilho para comparar duas fontes de luz.
E dessa raiz latina vieram palavras como “candelabro” (suporte oco onde se enfiam velas para iluminar um ambiente”), “candeia” significando qualquer fonte de luz mediante um pequeno pavio aceso, a qual por sua vez deu origem a “encandear”, esse verbo tão poético e tão nordestino, sinônimo de “ofuscar, tornar momentaneamente cego por um excesso de luminosidade”.
E olha só... Como candelabro em francês é “chandelier” acabei desconfiando (e conferindo) que o sobrenome inglês Chandler, que já consagrou o ator Jeff e o escritor Raymond, significa “fazedor ou vendedor de velas”. Como tantos sobrenomes europeus, tem como origem a atividade de ganha-pão de pessoas humildes.
Certo. Mas, e a nossa palavra “vela”, de onde vem? Curiosamente, vem do latim “vigilia”, o hábito de pessoas passarem a noite acordadas cumprindo um ritual qualquer, seja para encomendar um morto, seja para evitar ser apanhado de surpresa por um inimigo. Com esta última conotação desenvolveram-se do século 16 em diante, a partir do francês, palavras como vigiar, vigilância, vigilante, etc.
Velar, portanto, é ficar acordado, com ou
sem vela acesa, mas é melhor com, para não esquecer os lindos versos da canção
de Chico César, “Onde Estará o Meu Amor”:
Será que vela como eu?Será que chama como eu?
A esta altura eu já estava meio perdido em divagações, e quis lembrar de que ponto tinha partido todo este fio de busca. Era a granja de ovos! E ela me trouxe por associação de idéias os versos inesquecíveis de João Cabral de Melo Neto em “O ovo de galinha” (em Serial, 1959-1961):
Na manipulação de um ovoum ritual sempre se observa:há um jeito recolhido e meioreligioso em quem o leva.Se pode pretender que o jeitode quem qualquer ovo carregavem da atenção normal de quemconduz uma coisa repleta.O ovo porém está fechadoem sua arquitetura herméticae quem o carrega, sabendo-o,prossegue na atitude regra:procede ainda da maneiraentre medrosa e circunspectaquase beata, de quem temnas mãos a chama de uma vela.
Então era isso. Pude traduzir:
Quando você examina 22 mil ovos em contraluz, e cada um desses ovos tem para você o valor de dois centavos e meio, isso traz um elemento extra de satisfação!
É mesmo.