segunda-feira, 28 de setembro de 2020

4625) O primeiro filme de zumbis (28.9.2020)




O “filme de zumbi” virou um dos gêneros mais conhecidos do cinema de hoje. Meio século atrás, era um subconjunto minúsculo do “filme de terror”, ocupando um nicho bem menor do que o “filme de vampiro”, e competindo mais ou menos com “filme de múmia”.
 
Graças a George Romero e seus seguidores, o filme de zumbi tornou-se de certa forma um videoclip de nossa época. Multidões manipuladas, extermínios gratuitos, pandemias mal explicadas, retirantes famélicos invadindo cidades, migrações forçadas, cidades fantasmas entregues a gente que mal sabe de si...
 
Romero é creditado como o desencadeador do gênero, mas muitos historiadores apontam como primeiro filme de zumbi o White Zombie (1932) de Victor Halperin, baseado num romance do excêntrico William Seabrook, tendo Bela Lugosi à frente do elenco.



Vi agora esse filme, que pode ser visto, com legendas em inglês, no YouTube, numa cópia de qualidade surpreendente:
 
https://www.youtube.com/watch?v=NV3B2z0HkKA&ab_channel=PizzaFlix
 
Há vários aspectos curiosos neste filme precursor. A história se passa no Haiti, na propriedade rural de um tal Charles Beaumont (Robert Frazer), personagem que por coincidência tem o mesmo nome de um dos grandes escritores e roteiristas de FC e terror de sua geração. (Beaumont é o roteirista de filmes como As Sete Faces do Dr. Lao, Castelo Assombrado, A Máscara da Morte Rubra e outros, além de numerosos episódios de Twilight Zone.)



O Beaumont do filme é dono de plantações de cana-de-açúcar e em suas terras funciona o engenho de um feiticeiro local, em cujas engrenagens rústicas trabalham negros macambúzios, de olhar fixo e vidrado, movimentos robotizados. Chega a sua casa um jovem casal, Neil e Madeleine, e o fazendeiro se apaixona pela moça. Com o auxílio do feiticeiro, Murder Legendre (Bela Lugosi), ele impede o casamento dos dois, e transforma a moça em zumbi para tê-la em sua mansão como escrava sexual. O noivo descobre tudo e, com o auxílio de um missionário, tenta impedir a consumação do feitiço.


É um filme “B”, de produção paupérrima – foram usados cenários abandonados por outros filmes do estúdio (O Corcunda de Notre Dame, Frankenstein, etc.), num sistema de reaproveitamento cenográfico que Roger Corman iria empregar com mais habilidade duas ou três décadas depois. O diálogo é descartável; é o tipo do filme que se pode ver dublado em dinamarquês sem grande prejuízo. A ação é mecânica, as poucas cenas de luta ou perseguição são banais. O elenco é fraquinho, e Bela Lugosi, com um disfarce que lhe dá ares meio de Fu-Man-Chu, meio de Charlie Chan, diverte-se fazendo caras e bocas ameaçadoras.



Ainda assim, é um filme notável, que se vê com certo proveito. Um aspecto interessante nesses filmes de baixo orçamento é que a deficiência técnica os impede de produzir uma impressão de realidade muito grande. O som ora é alto ora baixo, a iluminação oscila de maneira inexplicável, os cenários não batem uns com os outros num simples atravessar de uma porta, o ator fala para um lado e parece estar olhando para outro...



Esse tipo de non sequitur, de justaposição de coisas aparentemente não-relacionadas, acaba produzindo uma impressão onírica, de incerteza, de insegurança perceptiva, que é um dos encantos do cinema mudo e que se prolongou, no cinema sonoro e colorido, pelo universo do filme “B” feito com um gosto e seis vinténs.

(a moenda)

Os primeiros zumbis que vemos são os negros haitianos que fazem moer o engenho de açúcar rústico, de engrenagens de madeira empurrados à mão. Não deixa de lembrar aqueles filmes bíblicos em que vemos Sansão, cego, escravizado, ajudando outros cativos a empurrar aquelas enormes pedras de moinho para os filisteus.
 
A certa altura, Bela Lugosi apresenta ao fazendeiro seu exército particular de escravos, que ele zumbificou através de uma poção da qual basta uma gota para transformar a pessoa num morto-vivo. E todos são brancos, e pessoas ilustres:


São os meus ex-inimigos. Ledot, o feiticeiro... Já foi o meu mestre. Entregou-me seus segredos sob tortura. Von Gelder, esse porco estufado de riquezas... Lutou até o último instante contra meus encantamentos. É o tipo do guerreiro. Sua Excelência, Richard, ex-Ministro do Interior... Scarpia, chefe dos salteadores locais... Marcquis, capitão da polícia... E este é Chauvin, o carrasco-mor, o que quase me executou!...
 
São os símbolos do poder político e militar, escravizados pelo vudu, agindo mecanicamente sob as ordens mentais de Murder Legendre.


Marina Warner, em seu livro Phantasmagoria (2006), um vasto ensaio sobre as representações tecnológicas do sobrenatural e do espiritual, analisa a figura do zumbi, como mais uma projeção do não-humano sobre o humano ou vice-versa. Ao comentar a sedução hipnótica sofrida pela jovem noiva, neste filme, ela diz:
 
Uma espécie de arraigado interesse próprio leva os realizadores de White Zombie a meditar sobre a escravidão e seus desdobramentos, ao mesmo tempo em que evitam os fatos históricos propriamente ditos desse fenômeno. No entanto, embora no nível mais superficial do enredo a noiva enfeitiçada seja a vítima inocente de uma sinistra magia negra, num nível latente ela cai em desgraça quando entra em contato com as forças que governam as atividades daquela ilha; ela perde a lucidez mas não percebe nem admite tomar conhecimento da opressão. É como se o filme dissesse: “Não olhe. Não pergunte de onde vem seu dinheiro. Você não vai suportar a resposta.”
(p. 363, trad. BT)
 
Os filmes de zumbi são muitas vezes alegorias sobre algo que vemos à distância na TV: multidões massacradas, escravizadas, desumanizadas, reduzidas a farrapos humanos. Sem nome, sem memória pessoal, sem memória coletiva, algum tipo de espírito primordial de vingança as levanta da tumba e as conduz à destruição cega de quem se atravessar na sua frente. George Romero e os demais que vieram depois dele (de Lucio Fulci a Wes Craven, de Dan O’Bannon a Jim Jarmusch) ramificaram essa idéia básica em numerosos sub-temas.
 
Bela Lugosi interpretou o vilão deste filme pouco tempo depois de ter criado seu Conde Drácula (em 1931). Se o vampiro é o morto-vivo típico da aristocracia européia, bebendo o sangue dos camponeses das montanhas e dos bosques da Europa Oriental, o feiticeiro vudu, criador dos zumbis, é o seu equivalente nas florestas tropicais e nos canaviais dos engenhos de açúcar.
 
É curioso que a ambientação do Nordeste açucareiro de Gilberto Freyre e José Lins do Rego, tão pródiga em escravos e em histórias de maus tratos, de mandingas e feitiços, não tenha produzido uma literatura de terror apreciável, na linha do que sucedeu com os zumbis haitianos. Talvez porque aqui não tenha acontecido uma revolta sangrenta como a do Haiti na virada do século 18 para o 19, quando foram passados “no fio da faca” os europeus locais, principalmente os franceses. Alejo Carpentier contou um pouco dessa história em O Reino deste Mundo (1949).
 


 
 
 
 





sexta-feira, 25 de setembro de 2020

4624) As listas de Raymond Chandler (25.9.2020)




Eu sempre aconselho a quem escreve ficção o uso de cadernos (ou arquivos, tanto faz) com listas de detalhes que podem ser convocados sempre que necessário.
 
Nome de personagem, por exemplo. É uma coisa que até hoje me dá problema. Quando estou fazendo o resumo de um conto, eu saio tacando X ou Y, ou A ou B, o tempo todo – para não perder tempo pensando. O resumo fica mais ou menos assim:
 
“Plot: um cara, X, pega um voo e já dentro do avião escuta uma conversa de dois caras em assentos próximos, A e B. Essa conversa é sobre um crime planejado, e desperta a curiosidade dele. Ele resolve seguir os dois quando descerem. Digamos que descem em Congonhas. Lá, ele percebe que A e B se separam. Segue um deles, A, e a certa altura das peripécias descobre que o perigoso era o outro, B.”
 
Quando você tem uma idéia ainda tão nebulosa, nome da pessoa é o que menos importa. Nome, descrição física, idade, profissão, até mesmo o sexo do personagem, tudo isso pode ser definido depois. Nesse momento inicial, são as funções dramáticas que importam.
 
Na hora de escrever de verdade, aí você tem que definir: X pode ser uma mulher, A pode ser um padre, B pode ser um turista chinês... É outro momento, são outras decisões.
 
Somente quando a gente entra na escrita propriamente dita o nome precisa ter um peso sonoro, um peso de significado.
 
Ao se acomodar na poltrona junto à janela e colocar o cinto, ela não deu muita atenção aos dois passageiros que sentaram ao seu lado. Ela sempre ia na janela; sempre fingia dormir, para que ninguém se animasse a puxar conversa, fazer perguntas. Tanto é assim que chegou mesmo a cochilar, acordou de leve na decolagem, cochilou de novo. A certa altura despertou e de olhos fechados ouviu o murmúrio de vozes masculinas ao seu lado, vozes contidas, tensas, sussurrantes. E o que diziam a despertou por completo em dois segundos.
 
A curiosidade era o grande problema na vida de...
 
É aqui que o carro estanca e o motor morre. Como vai se chamar minha protagonista? Maria? Josefa? Sandra? Karen? Juliette? Bernadete? Wyslawa? Tábata Cylene?
 
Cada nome desses tem ressonâncias inconscientes. Nome de personagem precisa ser bem pensado, e muitas histórias minhas (e alheias, estou seguro) morrem na primeira esquina porque a gente parou pra pensar num nome, acendeu um cigarro, resolveu passear nas redes sociais em busca de inspiração, e aquele avião está gastando gasolina mental e não pousou até hoje.



Raymond Chandler era um cara metódico, tinha uma certa cabeça de escriturário, o que lhe valeu a salvação em muitas fases da vida. The Notebooks of Raymond Chandler (New York: Ecco Press, 1976) é um livro que transcreve parte do seu material de anotações que se salvou. Após a morte da esposa Cissy em 1954, Chandler entrou em depressão, passou a beber desbragadamente, e destruiu a maior parte dos seus papéis pessoais, inclusive correspondência.
 
Apenas dois dos seus numerosos cadernos de anotações sobreviveram, e foram organizados por seu biógrafo Frank MacShane nesse livro citado acima.
 
Chandler fazia listas dos seus famosos símiles ou comparações, e os inseria na narrativa quando eram necessários:
 
Silencioso como um dedo entrando numa luva.
Tão sistemático quanto uma madame contando o apurado.
Seu rosto era longo o bastante para dar duas voltas em torno do pescoço.
Tinha tanto sex-appeal quanto uma tartaruga.
Limpo como o pescoço de um anjo.
Um rosto que parecia um pulmão murcho.
 
Ele anotava gírias e expressões de grupos específicos, o que é sempre muito útil, porque nem sempre se tem a chance de convivência contínua com essas pessoas.
 
Gírias da prisão de San Quentin:
 
Beak = juiz
Buried = mantido incomunicável
Broom = desaparecer às pressas
Bonarue (francês) = bom
Box = cofre, fonógrafo
Bank = injeção de droga
Back door parole = morrer na prisão
 
Gírias de Hollywood:
 
Baggage-smasher = pessoa desajeitada
Blinker = câmera
Duchess = garota com grana
Fluff = baby-doll
Footfever = pressa
Garbo = granfino
 
Gírias de marginais:
 
Chicago lighting = tiroteio
Dip the bill = tomar um drinque
Lip = advogado
Kick the joint = entrar na marra
Under glass = na prisão


Há duas páginas somente de anotações sobre jogo de dados, o modo de jogar, de contar pontos, as probabilidades, etc. Há alguns textos longos também, contos que só foram publicados postumamente, como “English Summer: a Gothic Romance”, uma história de amor, ou “A Routine To Shock The Neighbors”, um divertido diálogo de um casal durante uma longa relação sexual.
 
Chandler listava possíveis títulos:
 
The Man with the Shredded Year
All Guns Are Loaded
Choice of Dessert
Uncle Watson Wants To Think
Twenty Minutes’ Sleep
They Only Murdered Him Once
Island in the Sky (para uma coletânea de contos fantásticos que ele nunca chegou a preparar)
Deceased When Last Seen
The Black-Eyed Blonde – usado por Benjamin Black (pseudônimo de John Banville) para uma aventura póstuma de Philip Marlowe
 
Já vi autores profissionais de longas trilogias épicas explicando que é melhor criar os nomes em primeiro lugar, e depois ir extraindo de cada um deles as conotações.
 
É bom ter listas com nomes e sobrenomes de homens, de mulheres, de famílias, de castelos, etc.  Num romance contemporâneo, nomes de lojas, de colégios, de jornais, de tudo que for aparecer na narrativa e que é melhor atribuir a uma entidade fictícia.
 
Chandler escrevia e arquivava itens como “Moda masculina”, “Descrições de mulher” e assim por diante. Lendo os romances, é possível adivinhar quando esse itens entram, porque são parágrafos inteiros, escritos no mesmo tom, no mesmo estilo dos anteriores – a escrita de Chandler, embora idiossincrática, extremamente pessoal, é bastante homogênea – mas a gente percebe que ele já tinha aquele personagem ou aquele ambiente visualizado e posto no papel, antes mesmo de começar a escrever aquela cena.
 
Isso é obrigatório? Isso é proibido? De jeito nenhum. É a técnica de cada um, o processo criativo de cada um. Já vi escritores afirmarem que se o texto não é totalmente espontâneo, não é totalmente improvisado “no calor da batalha”, ou seja, no enfrentamento com o teclado, então não presta. Boa sorte para cada um.
 






terça-feira, 22 de setembro de 2020

4623) Cinco crimes insolúveis (22.9.2020)


(Gahan Wilson)

1 – Os Quatro Prisioneiros
Este é o nome, inadequado, mas que acabou “pegando”, dado ao caso misterioso de quatro homens encontrados mortos numa cova rasa em Wilmington Island (Georgia) em 1994. Os quatro (que nunca foram identificados) eram brancos, idades aproximadamente entre 25 e 60 anos, e de acordo com os exames médicos morreram de causas não determinadas e não-violentas. Todos os corpos vestiam apenas calças jeans, de marcas comuns, sem cuecas, camisas, calçados ou alguma outra peça. Dois dos mortos vestiam calças que visivelmente não eram do tamanho adequado. Nenhum documento; o que foi possível reunir de impressões digitais e material de DNA não bateu com nenhum registro estadual ou federal. O nome do caso, dado pela imprensa, deve-se ao fato de que estavam presos uns aos outros, pela cintura, por correntes finas de metal, novas, de um tipo bastante comum para prender animais, cercas, portões, etc. Foram descobertos por um morador local, que estranhou a terra revolvida no meio do mato e ao cavar um pouco, por curiosidade, encontrou um pé humano. A polícia cercou a área e exumou os corpos, que aparentavam ter morrido, todos ao mesmo tempo, há cerca de uma semana. As investigações não revelaram nenhum movimento estranho naquela área (residencial, pacata, de bom nível aquisitivo) nos últimos tempos. O local era oculto por barrancos e árvores. Havia rastos de pneus nas proximidades. De acordo com o Tenente Paulson, da polícia local: “Era como se quatro indivíduos sem registro civil de qualquer espécie estivessem nus, numa prisão ou coisa parecida, tivessem sido vestidos às pressas, acorrentados, levados para ali, e então morressem todos de parada cardíaca e fossem enterrados sem muita preocupação de ocultá-los. Não faz sentido.” O único outro possível indício, igualmente inexplicável, presente no local, foi um monte de exemplares de diferentes jornais, todos do dia presumível do “crime”, das principais cidades norte-americanas, num total de 22 jornais de 14 cidades diferentes, jogados no chão, no meio do mato, a cerca de dez metros da cova rasa.
 
2 – O Cofre Voador
Outro título dado pela imprensa, desta vez com certa ironia. Em novembro de 2005, em Florianópolis, um cofre com dinheiro, jóias e documentos foi roubado de um escritório de advocacia no centro de Florianópolis. O cofre, um móvel de ferro com mais de 150kg, foi retirado do escritório sem que fossem forçadas a porta da sala interna, onde ele se achava, e a porta que dava para o corredor, sem falar na porta de saída do prédio, onde ficava o escritório, no 4º. andar. O cofre pertencia ao pai de um dos advogados, e estava ali há mais de quarenta anos. O prejuízo foi avaliado na época em mais de 50 mil reais, mas o que intrigou a polícia foi a aparente impossibilidade de retirar um objeto daquelas dimensões sem deixar sinais. A única pista encontrada tornou tudo ainda mais enigmático: uma câmara de segurança registrou, naquela madrugada, a presença do cofre durante cerca de cinco minutos, no corredor, entre a porta do escritório e a escada dos fundos. A certa altura da gravação o cofre aparece de repente, sem a presença de ninguém, e minutos depois desaparece. Para sempre.
 
3 – As Cinco Cabeças
Ao longo de três meses, em 2003, apareceram, na cidade de Madrid, cabeças decepadas de diferentes pessoas, descobertas em lugares públicos, e nenhuma delas jamais foi identificada. Pela ordem, foram: cabeça de um homem de cerca de 40 anos, encontrada na lixeira de um super-mercado. Cabeça de uma menina de cinco anos, no pátio dos fundos de um prédio de escritórios. Cabeça de um homem de seus 70 anos, na mala de um carro abandonado na estrada, roubado meses antes. Cabeça de um rapaz de cerca de 18 anos, no estacionamento de um condomínio residencial. Cabeça de uma mulher de 30 anos, no gramado de um clube social. Todos estavam envoltas em panos semelhantes, e foram cortadas de modo semelhante, tudo levando a crer que pela(s) mesma(s) pessoa(s). Exames de DNA, fotografias, nada adiantou para a identificação. Os corpos não foram encontrados. O caso permanece em aberto.
 
4 – Morte na Estratosfera
Alguns investigadores consideram apócrifo o livro com este nome, atribuído a um tal I. Zulkov, e publicado em edição pirata em Moscou, em 1973, tendo recebido nos anos seguintes traduções para várias línguas e tornando-se uma espécie de “best-seller cult”. O livro relata a morte misteriosa do cosmonauta Vassili V. Kamonov, em 1965, num voo orbital que aparentemente estava indo bem até que o piloto (sozinho na cápsula) perdeu o contato com a base. Quando a cápsula voltou e foi recolhida no Mar Negro, constatou-se que Kamonov tinha sido morto por um tiro de revólver calibre 38, disparado à queima-roupa, que perfurou o traje espacial e varou seu coração. A arma não foi encontrada na cabine, nem poderia ter sido ejetada da cápsula. Várias teorias fantasiosas foram propostas, mas nenhuma das que aparecerem no livro de Zulkov, ou que foram sugeridas depois, explica satisfatoriamente todos os fatos.
 
5 – O Matador das Gertrudes
Uma onda de envenenamentos misteriosos percorreu a região da Bavária ao longo de dois anos e meio. Esforços conjuntos de várias forças policiais foram incapazes de descobrir o(s) autor(es) dos crimes ou os motivos por trás deles, sendo que a tese do homicídio aleatório (em que a identidade da vítima não influi) continua sendo aceita. O mais estranho de tudo é que as nove vítimas (quatro delas fatais) eram mulheres chamadas Gertrud, Gertrudes ou Gertrude. Todas foram envenenadas após consumir produtos industrializados: carne em conserva, refrigerante, açúcar, etc., sendo que em cada caso o veneno encontrado nas amostras era de natureza diferente. Em nenhum dos casos houve envenenamento de outra pessoa; a comida ou bebida afetada foi consumida apenas pela vítima. O primeiro caso ocorreu em Augsburg, em maio de 2003, quando Gertrud Kotzwinkler, 41 anos, morreu após consumir uma lata de sardinhas; o último deu-se em Bayreuth, em outubro de 2005, quando Gertrudes Kuttner, 11 anos, ficou gravemente doente após tomar um refrigerante. Após o quinto caso a imprensa insistiu pesadamente na necessidade de precauções por parte das mulheres com esse nome, embora para as autoridades nada garantisse que esse padrão era obrigatório. A onda de se encerrou tão bruscamente quanto começara.
 
 
 






sábado, 19 de setembro de 2020

4622) A ficção e o entulho de informação (19.9.2020)




(manuscrito de Immanuel Kant)

Que quantidade de informação um romancista deve dar, ao leitor, sobre o mundo que está descrevendo?
 
Depende. Escritores de romances históricos geralmente respondem: “A maior quantidade possível!”. E eu entendo. Passaram anos estudando as Guerras Púnicas, ou o Ciclo da Borracha na Amazônia, ou os reis leoninos da Alta Mesopotâmia.  Leram centenas de livros, fizeram milhares de anotações, e isso tudo vai se perder? De jeito nenhum. O leitor vai ter que pagar com seu tempo o tempo que o escritor consumiu pesquisando.
 
Outros dizem: “Informação nenhuma; não precisa”. Há centenas de romances pós-modernos onde não sabemos sequer em que país se passa a narrativa. Tudo é abstrato. Não sabemos sequer os nomes dos personagens, que são indicados por iniciais.
 
No outro extremo, existem os autores que se acham na obrigação de informar tudo, ou que têm um prazer enorme em informar tudo. Entre os escritores de língua inglesa circula o termo “infodump”, que significa mais ou menos “entulho de informação”. Acontece muito no romance histórico, em que não basta dizer o resultado de uma reunião do Imperador Napoleão com seus generais: é preciso dizer cada plano que foi proposto, debatido, contestado, apoiado, decidido, executado. O autor estudou o tema. Precisa mostrar serviço.
 
Os chamados techno-thrillers de autores como Tom Clancy ou Alastair Reynolds não se limitam a dizer “Fulano puxou a pistola”. Tem que dizer a marca, o calibre, o modelo, o ano, as adaptações feitas pelo personagem, as peculiaridades do mecanismo...
 
Se é um romance de Fantasia Medieval, e alguém mata um porco para uma festa, é preciso explicar (e tome duas ou três páginas falando apenas disso) com que tipo de faca se matava o porco na Escócia de 1450, quantas pessoas eram necessárias para segurar o bruto, como se pelava, como se tratava, com que ervas se temperava, como era preparado cada pedaço...
 
O infodump é a delícia de uns e o pesadelo de outros.


Numa resenha de um livro na revista Locus, Gary K. Wolfe chama a atenção para essa mania de Neal Stephenson (autor que eu muito admiro, aliás):
 
Na reta final do thriller Reamde, a jovem geóloga que é um dos personagens centrais está fugindo desesperadamente de terroristas islâmicos numa floresta do Canadá quando se vê escalando a inclinação de um talude e faz uma pausa para pensar sobre “o ângulo de repouso, que é a inclinação que um determinado monte de material pulverizado adota naturalmente ao longo do tempo, e que explica o formato externo de um formigueiro, de um monte de açúcar, uma pilha de cascalho ou de seixos.” Não é o tipo de coisa em que eu estaria pensando se estivesse sendo perseguido a tiros por terroristas, mas o fato é que eu não sou um personagem de Neal Stephenson.
(“Locus”, # 608, setembro 2011, trad. BT)
 
Stephenson é, dentro da FC norte-americana, um dos campeões indiscutíveis em entender e explicar como a tecnologia do mundo de hoje funciona. Ele estuda e pratica compulsivamente todo tipo de gadget tecnológico que inclui nos seus livros, e são muitos. Eu não diria que ele faz essas coisas “para se amostrar”. Não: ele apenas é um cara que pensa assim, funciona assim, e quando escreve reproduz em sua ficção seus processos espontâneos de pensamento.
 
Só li dois livros dele, ambos excelentes. Um é Snowcrash (1992), publicado no Brasil pela Editora Aleph, com tradução de Fábio Fernandes, lançado numa edição com o título de Nevasca e em outra com o título original. O outro é The Diamond Age (1995), um futuro de ultra-tecnologia onde os chineses reproduzem a Era Vitoriana inglesa nos menores detalhes.
 
O problema com Stephenson é que poucos livros dele têm menos de 900 páginas, e romances de 1.200 páginas não são nenhuma surpresa. É como uma viagem de navio – é agradável, mas você sabe que é um projeto a longo prazo.


Em outro momento, o mesmo Gary K. Wolfe explica, comentando outro romance de Stephenson (Anathem, 2008), sobre uma civilização de eruditos num planeta distante (uma espécie de O Nome da Rosa interplanetário):
 
Em seu aspecto mais ambicioso, ele nos convida para examinar por inteiro o corpo principal da filosofia do Ocidente através do prisma de um mundo inventado; e, embora exista nisso um indiscutível charme de estudante universitário, ficamos pensando se uma parte do entusiástico público leitor de Stephenson não se verá em breve atribuindo a ele a invenção de muitas das idéias que ele recapitula em seu fabuloso “Syntopicon”.
(“Locus”, # 572, setembro 2008).
 
Diga-se desde logo que esses romances de mil páginas não são feitos apenas de digressões enciclopédicas. Stephenson é um narrador compulsivo de aventuras, mestre dos episódios de perseguição, fuga, invasão, conflito, brigas de socos, guerras de exércitos; pode-se dizer que seus romances são videogames de ação e aventura para intelectuais. Personagens com quem a gente se identifica, diálogos espertos, sutilezas psicológicas...
 
Mas o problema continua de pé. É preciso mesmo explicar tantos detalhes assim?
 
A resposta tem que levar em conta que existem pessoas que adoram essas explicações, e outras que não as suportam. Se eu tivesse mais tempo e menos afazeres, leria com imenso prazer, por exemplo, o famoso “Ciclo Barroco” dele, formado por Quicksilver (2003, 944 páginas), The Confusion (2004, 815 páginas) e The System of the World (2004, 915 páginas). 

Mas a vida é curta. O que me aguarda na minha estante, no momento, e de cenho franzido, é o premiado Cryptonomicon (1999, 1.140 páginas).


Lembro-me das aulas do mestre Damon Knight, quando ele dizia às vezes: “Não precisa descrever a espaçonave. Todo mundo já sabe como é uma espaçonave. Mostre somente o detalhe que vai ter importância na história”. É um conselho útil, mas acontece que muitos escritores (e leitores) de FC são engenheiros, sejam profissionais, estudantes, diletantes ou curiosos, e para esses leitores é um pouco frustrante pegar um romance, saber que a espaçonave está indo da Terra para Alfa do Centauro, e não receber um vintém de informação sobre o meio de propulsão utilizado ali.
 
Outra coisa:
 
Não se trata apenas da ficção científica. Vamos dar uma passada nos infodumps dos clássicos brasileiros. Podemos começar com os tratados de geologia e botânica que Euclides da Cunha inseriu em Os Sertões. Ou então pensemos no Romance da Pedra do Reino: basta alguém citar o nome de uma família sertaneja para Ariano Suassuna pegar o leitor e dar uma volta inteira ao quarteirão explicando genealogias e cavalgadas.


Autores regionalistas são usuários aplicados do infodump, porque grande parte do romance regionalista está imbuído de uma missão de retratar, registrar, conservar usos e costumes através da palavra escrita.
 
Daí que nossa ficção rural se dedique a longas digressões sobre cuidados com o gado, sobre novenas e festas tradicionais, sobre o trabalho do vaqueiro ou do agricultor, sobre batuques e festejos... Páginas e páginas onde o autor oitocentista preservou o ambiente que conhecia – e eu, pelo menos, sou agradecido por isto. O livro pode até não ser grande coisa como romance. Ironicamente, é o infodump etnográfico que hoje o torna precioso para nós.



 





quarta-feira, 16 de setembro de 2020

4621) Um escritor de pulp fiction em Paris (16.9.2020)






Existem vários filmes norte-americanos abordando a vida e o meio social dos escritores de pulp fiction, das histórias populares vendidas por um vintém nas bancas. São raros, no entanto, os filmes que mostram esse ambiente em outros países.
 
O Crime de Monsieur Lange (“Le Crime de M. Lange”, 1936), de Jean Renoir, é a história de um escritor de pulp fiction parisiense nos anos 1930.  Vemos nesse personagem aquele misto de idealismo, ingenuidade e persistência de quem cresceu lendo aquele tipo de histórias (ou assistindo-as no cinema) e não pensa em outra coisa.
 
Amédée Lange (René Lefèvre) é um rapaz meio desajeitado, simpático, sonhador, que escreve as aventuras do cowboy Arizona Jim. O filme conta sua trajetória do anonimato para o sucesso... até que uma tragédia corta sua carreira ao meio.
 
Ele assina sem ler um contrato com Monsieur Batala, um editor sem escrúpulos de uma revista de contos policiais, Javert ("Hebdomadário Literário e Policial"), um cara espertalhão, que deve a todo mundo, pega dinheiro de todo mundo, engambela todo mundo. (Eu ia escrever: “engaloba”, mas só os paraibanos me entenderiam.)



Paul Batala, interpretado pelo excelente Jules Berry, é um sujeito melífluo, exuberante, com um sorriso maligno pregado no rosto, cheio de argumentos, cheio de recursos. Mulherengo, dá em cima de todas as funcionárias da editora e da lavanderia que ocupa o mesmo prédio; é aquele canastrão grisalho, cheio de auto-estima, predador de gente indefesa, uma espécie de Michel Temer com o dom da simpatia.


(Lange e Batala, interpretados por René Lefèvre e Jules Berry)

A trama, escrita por Jacques Prévert (um dos grandes poetas franceses de sua época) é leve, de um realismo que se satisfaz com uma coerência de superfície. Jean Renoir era um cineasta daquela linha humanista do cinema francês, um cinema focado em problemas humanos e sociais, sem grandes aprofundamentos psicológicos, sem grandes abismos intimistas (como os que existem em Bergman ou Antonioni).
 
Tinha um olho esperto para o modo como os papéis sociais condicionam as ações das pessoas, de modo que em muitos dos roteiros que filmou a gente vê aquela imprevisibilidade que vem da literatura realista – pensa-se que o personagem vai agir em função do seu “papel social” e ele tem uma atitude independente; ou vice-versa.
 
O Crime de Monsieur Lange é um daqueles típicos filmes franceses dos anos 1930, com personagens “populares”, um tanto rústicos, um tanto espertos, meio ingênuos em termos sentimentais mas nada bobos na vida prática; meio bonachões, meio explosivos, esforçados, determinados, avançando aos tropeções por entre uma sociedade que só valoriza o que eles não têm: dinheiro, sobrenome, sofisticação intelectual.
 
Nesse cinema “humanista”, a câmera de Renoir é um personagem a mais, que se move de maneira tão discreta que não percebemos; acompanha um personagem ou outro, recua para dar espaço a mais gente, afasta-se de lado para revelar um detalhe, percorre o ambiente como se fosse um casal a mais evoluindo num salão de baile, sem esbarrar em ninguém.
 
Este filme tem uma panorâmica famosa, justamente na cena do crime, que ocorre no pátio interno de um desses prédios franceses por onde se entra através de um corredor largo que dá acesso a um pátio ao ar livre, ainda mais largo, de onde se olha para cima e dali se veem as janelas dos apartamentos.


(o plano-sequência do crime)

Na hora do crime, um homem está nesse pátio assediando uma mulher. A câmera os deixa ali e sobe num plano-sequência até o segundo andar, para mostrar através da janela outro homem que sai de uma sala, passa por dentro de outras (sendo mostrado de janela em janela pela câmera que se move na horizontal), desce a escada por dentro do prédio (e a câmera começa a abaixar, do lado de fora). Ele sai pela porta e se encaminha para a direita, onde está o casal; a câmera surpreendentemente vira para a esquerda e descreve um giro quase de círculo completo que se fecha no instante em que ele aborda, de arma em punho, o casal que briga.



(diagrama do movimento da câmera)

A cena me trouxe à memória um uso de espaço bem parecido, na última sequência de O Inquilino (1976) de Roman Polanski, que acontece num pátio exatamente igual; dá a impressão até de ser o mesmo prédio. (Não é; Paris é cheia de prédios assim.) No filme de Polanski, o personagem sobe na janela, ameaçando suicidar-se, e a câmera, mais solta até do que a de Renoir, percorre as janelas, as varandas, os telhadinhos intermediários, onde os vizinhos dele o aplaudem e o encorajam no tradicional “pula, pula!”.
 
Quase todo o filme de Renoir acontece nesse pátio (o título inicial era Sur la Cour, “No Pátio”), pois é um prédio onde funciona a gráfica-editora de Monsieur Batala, uma lavanderia que fornece o contingente feminino (a lourinha Florelle, que faz Valentine Cardès, é de uma vivacidade comovente), e tem alguns moradores envolvidos na trama.


(a redação)

O filme é muito citado nas histórias do cinema por ter sido produzido num esforço conjunto de entidades culturais de esquerda ligadas à Frente Popular. Ao contrário do que seria de se esperar, não tem nenhum comício ideológico, é uma história de gente. O único aspecto político, aliás bem resolvido, é que, quando Monsieur Batala desaparece com a grana da editora e é dado como morto, os trabalhadores se organizam em cooperativa, redobram os esforços, e contam com o valoroso “Arizona Jim” para criar um sucesso editorial sem precedentes.



A pulp fiction é, como dizia Thomas M. Disch revertendo a frase de Shakespeare, “o sonho de que é feito o nosso material”.








domingo, 13 de setembro de 2020

4620) Minhas canções: "Amigo do Rei" (13.9.2020)

 


 
Ter uma música gravada por Tim Maia é melhor do que ganhar um Grammy.
 
(É claro que se eu já tivesse ganho um Grammy diria que é melhor do que ter uma música gravada por Tim Maia.)
 
Melhor ainda é essa música ter sido gravada por ele em dueto com Os Cariocas, que tem umas seis colunas de índice remissivo em qualquer história da Música Popular Brasileira.
 
Houve um tempo em que eu comecei a tentar emplacar músicas em trilhas sonoras de novelas da TV.  Alguns amigos meus, como Dudu Falcão, descobriram o jeito certo, o formato certo, o tom certo de compor. Tem que ser aquelas canções que rolam no áudio enquanto a personagem, em plena desilusão amorosa, caminha ao pôr-do-sol, roçando a ponta dos dedos nas flores que desabrocham à beira da alameda do seu condomínio.
 
É novela? É. A novela é boa, é ruim? Pra mim tanto faz. Como compositor, eu tenho que atender a uma encomenda e um desafio.  É a mesma coisa que, no universo dos cantadores repentistas, alguém lhe dar um mote e você ser capaz de glosar. É um desafio. “Você diz que é bom? Então responda isto aqui.”
 
Alguém dá o mote: “Minha vida é só tristeza / meu mundo é desilusão.” Eu imediatamente gloso: 

“Ando meio desligado 
não sei o que é alegria 
quando começa meu dia 
já estou desanimado. 
Muito triste o meu estado 
e grave a situação! 
Olhe aqui meu coração 
cheio de válvula presa... 
Minha vida é só tristeza 
meu mundo é desilusão.”
 
Alguém se aproxima, cheia de preocupações: “Mas o que foi... por que está desesperado assim?...” E eu digo: “Eu estou alegríssimo. Quem está triste é o mote.”
 
Nas novelas de televisão, o mote é a descrição de um personagem, para que a gente componha a canção que lhe servirá de tema. São dicas que a produção da novela envia aos compositores do seu interesse. O personagem é assim e assado, gosta disto, não gosta daquilo, tem tais problemas na vida, tem tais e tais sonhos, e no roteiro da novela está previsto que vai passar por tais e tais fases... Um raio-X da vida do personagem, e a gente tem que compor uma canção. É aquela canção que toca sempre que o sujeito se debruça, meditabundo, na janela da casinha-de-vila onde ele mora no subúrbio.
 
Não lembro qual era a novela nem quem era o personagem cuja descrição Lenine me trouxe lá das suas reuniões com a cúpula noveleira. Lembro que era um cara sonhador, meio desligadão, sem grandes ambições mas com fé de que um dia tudo vai dar certo. Movido a esperança e estoicismo, sempre pronto a acordar às cinco para pegar no batente às sete, sempre pronto para uma cervejinha e pagode no fim de semana...
 
E era um cara que tinha um amigo importante, de quem podia se valer – daí o enunciado “o amigo do rei”.
 
“Muito bem,” dissemos, “vamos de Manuel Bandeira, vou embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei, quando eu chegar lá eu deito e rolo...”  E lá foi o sambinha brotando.


(Manuel Bandeira)

A música foi feita, mas acho que nem entrou na novela. Ficou uma música massa, e acabou sendo mostrada a quem estava produzindo esse disco em que Tim Maia se juntou a Os Cariocas, e emplacou. Deu até nome ao disco: Tim Maia & Os Cariocas: Amigo do Rei (1997), Vitória Régia Discos.
 
Tempos depois, demos um “última forma!” na composição. Comecei a achar que esse negócio de amigo do rei era uma coisa muito de cupincha, de puxa-saco dos poderosos. Eu posso até ser amigo de um rei, mas dele quero distância, só vou lá se for chamado. Eu queria ser como o Mago Sparrowhawk, que botou o rei no trono de Havnor e quando todo mundo pensava que ele ia ser o Grão Vizir, ele pegou seu barquinho e foi morar na ilha de Gont, onde cria cabras, como Ariano Suassuna. (Leiam Ursula LeGuin; leiam Terramar.)
 
E a letra, que dizia “Pois eu sei desde menino / que eu sou amigo do rei” virou: “Pois eu sei desde menino / que a vida gosta de mim.” Pra não perder o costume, uma tirada de chapéu na direção de outro grande, o inimitável Braguinha, letrista de mão cheia e coração transbordando, que nos ensinava: “A vida só gosta de quem gosta dela”.
 
Tem outra citaçãozinha escondida. A primeira versão da letra dizia “passear na Riviera”, mas isso sempre me incomodou, porque “Riviera” pra mim é um bar de Campina Grande. E naqueles dias eu estava revendo Hiroshima meu Amor de Alain Resnais, e nas cenas em que Emmanuelle Riva namora com um soldado alemão eles dizem: “quando a guerra acabar, vamos passear na Baviera”.
 

 
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A gravação original, com Tim Maia e Os Cariocas:
 
https://www.youtube.com/watch?v=PbIeYHMpCXg&ab_channel=Rog%C3%A9rioBRAGA
 
 
 
AMIGO DO REI
(Lenine / BT)
 
Sonhei a vida...
Não quis acordar...
 
Um dia
vou viver como eu queria;
sei que em toda loteria
sempre cabe um azarão.
Eu sonho
com as varandas de Madri
hora extra no Havaí
mala cheia de cifrão...
Minha galera
vai ter tudo que eu quisera
passear na Baviera
fazer compras no Japão.
 
Eu sou filho de Deus
e devo ser alguém,
por isso eu continuo a confiar;
o tempo vai passando e eu seguindo
sem medo de recomeçar.
 
Juro
eu conheço esse futuro
é por ele que eu procuro
sei que um dia encontrarei...
O meu destino
é tranquilo e cristalino
porque eu sei desde menino
que eu sou amigo do rei...
 
Variante:
Juro
eu conheço esse futuro
é por ele que eu procuro
vou seguir até o fim...
O meu destino
é tranquilo e cristalino
pois eu sei desde menino
que a vida gosta de mim...
 
 
 


 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

4619) "Noites no Circo" de Angela Carter (10.9.2020)



Nós somos as prostitutas do riso, porque, tal como prostitutas, sabemos bem o que somos; sabemos que não passamos de simples mercenários dando duro no trabalho e ainda assim os que nos alugam pensam que estamos numa diversão perpétua. Nosso trabalho é o entretenimento deles, e por isso eles pensam que é nosso entretenimento também. Assim, existe sempre um abismo entre a noção deles, de que nosso trabalho é diversão, e a nossa, de que a diversão deles é a nossa labuta.
(p. 119, trad. BT)
 
Nights at the Circus (1984) é um romance circense centrado na figura da Mulher Alada – sim, uma mulher de verdade com asas de verdade, que passou por mil peripécias na vida. Foi adotada e criada por um bordel inteiro de prostitutas londrinas, até ser a estrela principal de um circo onde esvoaça inacreditavelmente.
 
Sophie Fevvers (pois este é o seu nome) conta na Parte I do livro sua odisséia picaresca até então, tendo como ouvinte o jornalista Walser, que torna-se seu discreto fã. Na Parte II o repórter acompanha o circo, disfarçado de palhaço, até São Petersburgo (a ação se desenrola nos últimos meses de 1899). Há uma Parte III que acontece na Sibéria e é ainda mais anticonvencional do que as outras duas.
 
Angela Carter (1940-1992) é uma das grandes escritoras do Fantástico em língua inglesa. É uma autora que tem um senso de realismo imenso – suas descrições de ambientes e de pessoas são precisas, exuberantes, imprevisíveis, consistentemente verdadeiras. Ao mesmo tempo, tem uma percepção do Fantástico que não se limita à aparição eventual de fantasmas ou monstros. Na realidade da história, descrita por ela com toda nitidez e verossimilhança, essas coisas também existem. Ou podem ter existido. Ou estão a um passo de existir.
 
Os únicos sons que vêm da área reservada aos animais são o contínuo ronronar dos grandes felinos, como um mar distante, e os tinidos distantes dos elefantes de carne e osso do Coronel Kearney, enquanto eles balançam as correntes presas às suas pernas, como fazem o tempo todo, todo o tempo que passam acordados, pois em sua milenária e longeva paciência eles sabem muito bem como, em uma centena de anos, ou em um milhar de anos, ou mais, quem sabe, ou amanhã, ou dentro de mais uma hora, porque tudo não passa de uma aposta, uma chance em um milhão, mas em todo caso existe uma chance de que se eles continuarem balançando as correntes, um dia, algum dia, os fechos de suas algemas irão se partir.
(p. 106)
 
A Editora Rocco fez nos anos 1980 uma força danada para divulgar a obra dela por aqui, creio que por obra e graça da saudosa Vivian Wyler. Publicou “As Máquinas Infernais do Dr. Hoffman”, “A Paixão da Nova Eva” e outros. Acho que nos tempos mais recentes o mais conhecido dela no Brasil é a antologia 103 Contos de Fadas (Cia. Das Letras, trad. Luciano Vieira Machado), ótima compilação de histórias que têm protagonistas femininas e foram colhidas na cultura oral de vários países e continentes.
 
Noites no Circo tem uma prosa exuberante, especialista em botar pessoas de baixa extração social derramando uma prosa de fazer inveja a qualquer Poeta Laureado vitoriano, mas pontilhado de palavrões, metáforas obscenas e humor de ponta-de-rua, para manter o senso de proporção. Numa história que envolve prostitutas, palhaços sádicos, fotógrafos de ectoplasmas mediúnicos, presidiárias lésbicas fugidas de um panóptico, xamãs em transe lisérgico e bandoleiros que assaltam na neve, há uma disparidade confortável de mentalidades e texturas verbais, mas a graça da autora é tornar plausíveis as falas de toda essa galeria de excêntricos, sem nunca sair do tom de sua própria narrativa.
 
A Rússia é uma esfinge. Ó grande imobilidade, antiga, hierática, um quadril escanchado na Ásia, o outro sobre a Europa... que destino exemplar estás tricotando com o sangue e os tendões da história, em teu útero adormecido?
Ela não responde. Os enigmas ricocheteiam em seu costado, pintado em cores tão exuberantes quanto as de uma tróica de camponeses.
A Rússia é uma esfinge; São Petersburgo, o belo sorriso em seu rosto. Petersburgo, a mais adorável das alucinações, miragem tremeluzente nas vastidões desérticas do Norte, que se vislumbra por uma fração de segundo entre a floresta negra e o mar gelado.
Dentro da cidade, a bela geometria de todas as perspectivas; fora dela, a Rússia ilimitada, e a tempestade que se aproxima.
(p. 96)
 
Angela Carter é uma figura única na literatura inglesa. Em alguns departamentos de letras ela é incluída num grupo de críticos demolidores do antigo Império, e em outros ela faz parte de uma geração de escritores de ficção científica que inclui J. G. Ballard e Michael Moorcock. Feminista em inúmeros textos e pronunciamentos, mas igualmente fascinada pelo Surrealismo e pelos visionaristas que influenciaram o movimento, como Sade e Baudelaire. Seu nome é citado muitas vezes como uma representante britânica do “realismo mágico”, pela liberdade de fabulação que ela se permite, recorrendo aos episódios mais escandalosamente fantásticos e depois voltando ao trilho comum do realismo, em que as pessoas pegam o trem, bebem chá, trocam de roupa, escovam os dentes.
 
Como ela mesma diz, ao descrever Sophia Fevvers:
 
Porque, vejam bem, ter asas e não ter braços implica em uma coisa impossível; mas ter asas e ter braços é o impossível duplamente improvável; o impossível ao quadrado.
(p. 15)