("A Solidão do Cariri", de Flávio Tavares)
Estava trocando mensagens com o cineasta Marcus Vilar, eu
no Rio, ele em João Pessoa. Toquei no assunto de mudança de residência, o
transtorno, a trabalheira. Ele trouxe uma comparação típica da tradição oral:
“Quando eu morava em Campina eu mudava tanto de endereço que quando chegava no
quintal as galinhas levantavam os pés pra amarrar.”
A linguagem popular é cheia dessas imagens, que eu
considero literatura pura.
Claro que para muita gente literatura é alguma coisa
escrita assim:
“Capítulo 1 – Quando o sol despontou no horizonte com as róseas
radiações do alvorecer, a passarada pipilava em festa por todas as veredas do
vergel, enquanto as gotas iridescentes de orvalho tremulavam na borda das
folhas que as haviam recolhido ao rocio da madrugada...”
Cada um com sua literatura. A minha é aquela ali, das
galinhas.
Ezra Pound via uma das riquezas expressivas da poesia (e
eu vejo, por extensão, na prosa) no recurso da fanopéia, termo grego que eu traduzo aproximadamente por “criação
de uma imagem”. A criação de uma imagem sensorial através de palavras.
“Sensorial” envolve os cinco sentidos e também uma outra
coisa que os envolve, uma certa percepção gestáltica (=de conjunto) de uma
situação. Aquilo que a gente percebe numa fração de segundo quando abre uma
porta e “fotografa” uma cena.
O povo fala assim: “Fui pedir explicação a Fulano sobre
ontem de noite, mas quando cheguei na casa dele e toquei no assunto ele ficou
mais desconfiado do que cachorro em bagageiro de bicicleta”.
O que diz uma imagem como essa? É uma percepção não
apenas sensorial, ou sociológica. É meio difícil decifrar sociologicamente o
que se passa na mente de um cachorro. Mas parece haver uma certa telepatia
mamífera, primordial, entre nós e essa
rapaziada. Todas as vezes que eu vi um cachorro sendo levado no bagageiro de
uma bicicleta vi que ele estava incomodado, pouco à vontade, amedrontado mas
estóico, suportando aquilo sem uma percepção clara do por quê.
Ao contrário dos gatos, que são criaturas líquidas e
quase imateriais, os cachorros são bichos sólidos, rígidos, que se acomodam com
dificuldade até num tapete liso. Quanto mais no bagageiro de uma bicicleta em
movimento!
É isso mesmo? Não
é? Pergunte ao cachorro.
Chamo isso de imagem literária porque, diferentemente da
descrição científica de um fenômeno (mesmo uma descrição “de Humanas”) é algo
que depende da memória, da observação, da sensibilidade e da imaginação de quem
registra e descreve.
Gente do povo não descreve as situações da vida de
maneira científica, embora muitas vezes demonstre capacidade notável de
observação, objetividade e síntese. Que seriam, em tese, as qualidades da boa
observação científica. É uma ciência, mas uma ciência empírica, intuitiva, uma
ciência do concreto. A ciência da descrição aguda, perceptiva, mas presa demais
ao exemplo, uma “ciência do concreto” como Lévi-Strauss via em certos povos.
O valor dessas comparações está em que descrevem casos ou
situações extremamente específicos, mas que todo leitor reconhece. (OK, nem
todo – mas isso vale para toda imagem literária, sem exceção.)
O nordestino diz de vez em quando: “O técnico desse time
está tão desorientado quanto cachorro que caiu da mudança”.
Todos nós conhecemos, de viver, de ver ou de ouvir falar,
essas mudanças de pobre, complicadas, num caminhão velho de um primo, os móveis
amarrados com cordas, as caixas de papelão sacolejando, e lá em cima um
cachorro perdidão, olhando as calçadas que passam. Quando o caminhão dá um
solavanco maior, ele cai lá de cima, se machuca, se atrapalha, o caminhão vai
embora. E agora?
“Fulano está mais perdido do que cego em tiroteio”. Não
precisa de muita imaginação para absorver uma imagem poética (sim, é uma imagem poética) de tamanho impacto.
Pode-se dizer que a linguagem popular se baseia em duas
coisas: visualidade e exagero? “Fulano é tão avarento que se cair nágua morre
afogado, pra não abrir a mão”.