sexta-feira, 14 de novembro de 2025

5207) Quem é Susan? (14.11.2025)



 
É um meme que circula por aí há muito tempo, e cada ver que emerge na tela eu solto uma gargalhada. O texto é em inglês. Alguém aplica uma prova para crianças, com problemas simples de Matemática. 
 
O problema destacado na foto diz: 
 
Jane tem 12 lápis, e Kim tem 7 lápis. Quantos lápis Susan tem a mais do que Kim? 
 
E no espaço para a resposta a criança escreveu: 
 
Quem é Susan? 
 
Este pequeno episódio gera tantas idéias que chega dá uma vertigem. 
 
A primeira coisa que me ocorre é: a resposta da criança foi considerada certa? A criança perdeu o ponto? Sei de muitos colégios, e já vi muitos exemplos, em que uma criança questiona uma pergunta-de-prova. Questiona de uma maneira totalmente aceitável, mas perde o ponto e ganha uma repreensão. 
 
(O que, no-fundo-no-fundo, é muito mais educativo do que passar-lhe a mão na trunfa e proclamá-la inteligentinha. A punição por questionar a autoridade avisa: “Filhota, o mundo funciona assim, caia na estrada e perigas ver.”) 
 
A segunda coisa é a pena que eu tenho da professora que elaborou a prova. Esse texto deve ter sido preparado tarde da noite, após um dia estafante, um jantar conflituoso ou às pressas, uma pilha de provas para corrigir, outra prova para preparar, e chega um momento em que as perguntas envolvem tantas “Susans” e “Marys” e o escambau... Não há como não errar, e como não ter pena de quem erra. 
 
A terceira coisa é a quebra existencialista. A criança está crescendo, aprendendo a ler, a escrever, a fazer contas, e é nesta fase que começa a ser-lhe vendido, em suaves e eternas prestações, o enorme Falso Bilhete Premiado da Loteria que é a entrada no mundo adulto. “Estude, pra se formar, arranjar um bom emprego, ganhar dinheiro e casar.” E a venda desse bilhete depende terrivelmente da idéia de que a vida é bela, o mundo é justo, o país vai pra frente, a felicidade é para todos, a honestidade é recompensada... 
 
Enfim: é uma cartela inteira de bilhetes que a criança está comprando com seu esforço. 



 
E de repente, no meio daquilo, aparece o equivalente à cara de um palhaço estirando a língua, botando os polegares nos ouvidos e agitando os dedos. Tem um erro na prova. A realidade está bugada. O mundo é falso. Os professores erram. Os padres pecam. Os jornalistas mentem. A polícia comete crimes. 
 
Quem é Susan? 
 
Esta Susan invisível e intrusa é o sexto lado do Pentágono, a terceira margem do rio? Algo que não podia existir, mas está ali? 
 
Por trás de uma contazinha aritmética inofensiva (12 – 7 = 5) foi introduzida uma serpente daninha e perniciosa no Éden da Matemática: o elemento humano. Enquanto se tratasse apenas de Jane e de Kim, que por definição já faziam parte do problema, tudo se resumia a fazer as contas, de forma impessoal e não-envolvida. Você tem tantos, e você tem tantos. Mas de repente aparece um nome não previsto na equação. Um elemento humano intruso, não-convidado, que não estava na ficha técnica do mundo. 
 
Os problemas escolares de Matemática são assim: não admitem o elemento humano, que está ali só para ilustração. “Joãozinho comprou 50 melancias na feira, mas no trajeto perdeu 8; quantas melancias Joãozinho trouxe para casa?...” Ninguém ousará perguntar: “Mas para que Joãozinho queria tantas melancias? E ele estava sozinho? Ele trouxe as melancias num carrinho, num táxi, num cesto?...”  Essas questões são proibidas. A única função da existência do hipotético Joãozinho é ajudar a entender que 50 – 8 – 42. 
 
Quem é Susan? 
 
Susan é um clinâmen, um salto quântico inesperado, uma mutação não prevista. Alguém que não estava nos cálculos mas de repente irrompeu problema adentro, estraçalhando tudo com sua existência intrusa. 
 
É o “J. Pinto Fernandes” que não estava na história mas chega de repente e arrebata consigo a sapeca Lili, no poema de Carlos Drummond (“Quadrilha”). 
 
Ou então é alguém parente do sujeito que vai passando na rua e alguém lhe grita: “Manuel, tua mulher está passando mal na tua casa em Niterói!...” e ele dispara na carreira, pega um táxi, e quando está no meio da ponte pensa consigo: “Mas... espere aí... eu não me chamo Manuel, eu sou solteiro, e eu não moro em Niterói!...”. 
 
Georges Perec (a quem devo a dica do conceito de clinâmen, já comentado aqui no blog) dizia que o uso de uma “contrainte” na literatura, ou seja, o uso de uma regra auto-imposta pelo autor, deve sempre permitir uma exceção. O sujeito pode dizer: “Vou escrever um texto em que todas as palavras começam pela letra C”, e ele deve ser capaz de obedecer a essa regra; mas no final, depois do texto impecavelmente pronto, ele deve (diz Perec) inserir discretamente, sutilmente, uma palavrinha que não obedece à regra. Uma exceção proposital, que ele poderia perfeitamente ter evitado. Por que? 
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/search/label/clin%C3%A2men
 
Respondo: para contaminar de realidade e de imprevisto esse “constructo” artificial que é a literatura. Para contar (digamos, hipoteticamente) a história completa da família Buendía, com seus prenomes maniacamente repetidos, mas poder, a certa altura, dizer algo como: 
 
Nesse instante, bateram na porta da frente, a avó Úrsula disse: “Aureliano, tem gente batendo, vá ver quem é”. Aureliano abriu a porta para uma moça loura, de olhos azuis. “Quem é a senhorita?”, perguntou. E ela disse: “Eu sou Susan”.