Quando eu tinha uns dez anos, era exibido às visitas que
iam lá em casa como um pequenino prodígio, porque meus pais se orgulhavam de
qualquer besteira que eu dissesse. Houve um tempo em que eu vivia mergulhado em
livros como História das Invenções de
Hendrik Van Loon e As Grandes Invenções e
Descobertas, cujo autor não lembro, mas o Google acaba de me trazer numa
bandeja de reluzentes pixels.
Uns amigos de meu pai foram beber lá em casa. Um deles
perguntou: “O que é que você vai ser quando crescer?”. Respondi: “Vou ser
inventor.” Ele: “Ah, é mesmo? Que bacana. E o que é que você vai inventar?” E
eu, dialético avant la lettre: “Não
sei, porque não existe ainda.”
Vou me reportar ao título desse livro citado, porque
existe sempre uma zona-cinza, imprecisa, mal definida, entre o que é invenção e
o que é descoberta. Em princípio, inventar
é produzir algo que nunca existiu, e descobrir
é perceber algo que sempre esteve ali e ninguém soube. O telescópio é uma
invenção; o cálculo da velocidade da luz (e a percepção de sua invariabilidade)
é uma descoberta.
Um fator comum às duas, porém, é o fato de a gente
geralmente ainda não saber o que vai inventar ou o que vai descobrir.
Claro que às vezes sabe: “quero saber que bactéria causa
a doença tal”, ou “quero inventar algo capaz de ampliar um sinal elétrico
transmitido no aparelho tal”. Existe um fim em vista, embora ainda não se saiba
o que vai ser exatamente.
Outras vezes, o inventor (ou descobridor) está apenas
fazendo experiências variadas, em muitas direções. Ele pega uma coisa (um
composto químico, um conjunto de lentes ópticas, um tipo de motor, um programa
de software) e fica vendo mil maneiras diferentes de fazê-lo funcionar, em
condições diversas. E aí descobre, “do Nada”, uma utilização que nunca
imaginou.
Essa é a ciência experimental – aquela que muita gente
chama de “perda de tempo”, “gasto desnecessário”, “vagabundagem”, “balbúrdia”. E
o fato de que muitos cientistas têm prazer nessa atividade pesa muitas vezes
contra ela. O burocrata de plantão fala: “Olha só, ele está se divertindo, ele
tem prazer em fazer isto! Pois não vou dar um tostão para ele ter prazer às custas
do erário.”
(Bob Brown)
Bob Brown (1886-1959) foi um inventor e escritor a quem
se atribui uma das primeiras idéias sobre a criação do e-book, ou livro
eletrônico. Ele publicou em 1930 um manifesto, hoje modestamente famoso,
intitulado “The Readies”. Assistindo uma das primeiras sessões dos filmes
falados, que na época eram chamado de “the talkies” (“os falantes”), ele se
entusiasmou com o futuro e fez este manifesto.
“The Readies” é mais difícil de traduzir. Poderia ser “os
Lentes” (do verbo “ler”, mas fica uma palavra fora de foco), “os Leiturantes”,
(meio desconchavado), “os Legíveis” (meio legislativo)...
Enfim: mais importante é a idéia que animou Bob Brown, e
que transcrevo da Wikipedia:
“Uma máquina de leitura bastante simples, que eu possa conduzir comigo,
levar para toda parte, plugar em qualquer tomada elétrica comum e ler romances
de 100 mil palavras em dez minutos se eu quiser – e eu quero.”
A idéia de Brown, contudo, estava muito mais focalizada numa reforma da
ortografia e do vocabulário do que no seu suporte físico. “Está na hora,” dizia
ele, “de liberar o gargalo e deixar passar uma verdadeira revolução da
palavra”. Ele propunha a introdução de uma grande quantidade de símbolos
“portemanteau” (combinando 2 idéias numa só) para substituir palavras comuns, e
pontuação para simular ação ou movimento; de modo que não fica muito claro se a
sua idéia se encaixa ou não na história dos e-books.
(Wikipedia)
É uma coisa muito comum na história das invenções que as
primeiras idéias a respeito de uma engenhoca qualquer venham cobertas de idéias
secundárias que depois não deram em nada, pelo menos naquele caso. Brown
pensava naquilo que hoje temos em forma de smartphone, kindle ou tablet, um
livrinho eletrônico que pode arquivar bibliotecas inteiras e ser lido em
qualquer canto. Mas o impulso imaginativo dele já o levava a, no mesmo fôlego,
sugerir a “leitura dinâmica” (um romance inteiro em dez minutos, mania
universal dos tecnófilos impacientes) e a “pontuação expressiva” (mania
universal dos vanguardistas dos anos 1910-1920).
Num momento assim, o inventor não está preocupado com o
lado pragmático (“Como o texto será codificado? Que tipo de mini-baterias será
usado”, etc.) e sim com as possibilidades que se abrem em todas as direções.
(Edison e o fonógrafo cilíndrico)
É famoso o caso de Thomas Edison ao inventar o Fonógrafo.
Ele fez uma lista de todas as utilidades possíveis para o uso da voz humana
gravada em ranhuras na superfície de cilindros (depois, discos) giratórios e
uma agulha reproduzindo o som original via alto-falantes. Para Edison, a
utilização mais importante disso era “aprendizado de idiomas estrangeiros”. A
comercialização de canções populares, uma indústria que movimentou trilhões de
dólares nos últimos cem anos, não foi o primeiro uso que lhe ocorreu.
Voltando ao nosso amigo Robert Carlton “Bob” Brown: ele
chegou a produzir uma “máquina de leitura” para a qual adaptou textos de
Gertrude Stein (de quem foi amigo, quando morou na Europa), Ezra Pound,
Marinetti e outros. Brown conviveu com esses vanguardistas em Paris no período
entre-guerras, tentou unir a sua invenção mecânica às invenções linguísticas
dos companheiros. Para isso, ele criou uma mini-editora, a Roving Eye Press.
Esses esforços, que na época passaram muitíssimo despercebidos, foram
pesquisados e publicados depois pelo Prof. Craig J. Saper, considerado o grande
conhecedor desse movimento.
Quem se interessar por um mergulho mais profundo nas
inquietudes criativas desse pessoal e puder desembolsar 95 libras esterlinas
por um arquivo PDF, corra sem perda de tempo ao link abaixo:
https://edinburghuniversitypress.com/book-readies-for-bob-brown-s-machine.html
Os menos abastados podem se contentar, como eu me contentaria,
se precisasse levar mais longe minha pesquisa atual (que é sobre outra coisa –
Bob Brown é uma simples nota de pé de página) com o livro abaixo:
Deixo aqui esta dica, principalmente, para as pessoas
interessadas em descobrir, em termos brasileiros, alguma coisa desse
norte-americano que viveu e atuou no Brasil por pelo menos duas vezes. A
primeira delas foi na década de 1920, quando ele criou no Rio de Janeiro a
revista Brazilian American:
https://www.davidanthembookseller.com/pages/books/02107/robert-carlton-and-rose-brown/brazilian-american-the-business-builder-of-brazil-vol-9-no-222-january-26-1924
A segunda foi nos anos 1940, quando ele morava na
Califórnia e produtores de Hollywood o mandaram para a Amazônia, a fim de
pesquisar algum material para filmes com temática brasileira, na linha do It’s All True que Orson Welles estava
rodando no Brasil. Fico só imaginando as dissertações de mestrado, os roteiros
de documentário e as matérias jornalísticas que uma história como a de Bob
Brown pode produzir em 2021.
Outro aspecto interessante, e que ainda não vejo com
muita clareza, é que os Brown são sempre mencionados como um trio: eram Bob,
sua esposa Rose e sua mãe Cora, que viajavam juntos e, aparentemente,
compartilhavam o trabalho criativo.
Se você mora nos EUA, saiba que os papéis e todos os
documentos da carreira literária e inventorial de Bob Brown estão depositados (e
acessíveis ao público) na Universidade de Maryland, em College Park, a poucos
quilômetros de Washington D.C. O saite
com informações mais detalhados pode ser acessado aqui:
https://archives.lib.umd.edu/repositories/2/resources/101
E aqui pode-se acessar o PDF de um livro onde a obra de
Brown é analisada, inclusive com a transcrição de uma “Story To Be Read On The
Reading Machine”:
https://monoskop.org/images/e/e8/Brown_Bob_The_Readies.pdf