Dois documentários em exibição no Netflix são tão
parecidos que poderiam ser vistos como os dois episódios iniciais de uma série.
São filmes diferentes, porém, feito por pessoas diferentes e abordando dois
assuntos distintos.
O primeiro é The
Tinder Swindler (Felicity Morris, 2022), sobre um picareta que se fingia de
milionário no Tinder para arranjar namoradas ricas e engalobar o dinheiro
delas.
O segundo é Fyre:
The Greatest Party that Never Happened (Chris Smith, 2019), sobre um
festival de música pop numa ilha distante, onde nada deu certo. Prejuízos
milionários foram causados a um monte de gente, e o organizador de tudo acabou
na cadeia.
Esses dois filmes poderiam ser vistos e pensados em
conjunto com uma porção de outros que venho comentando esporadicamente aqui no
blog: The Corporation (Mark Achbar
& Jennifer Abbott, 2003), TrabalhoInterno (“Inside Job”, Charles
Ferguson, 2010), Capitalismo, UmaHistória de Amor (Michael Moore, 2009), MarginCall – O Dia Antes do Fim (“Margin Call”, J. C. Chandor, 2011)... E chega, né?
São muitos, e aconselho todos estes.
Minha mãe dizia, do alto de sua sabedoria caririzeira,
que “tudo demais é veneno”. Isso vale para o dinheiro, também. O mundo
neo-liberal de hoje (ao qual nosso país está atrelado) está bêbado de dinheiro,
envenenado de dinheiro, e esse dinheiro nem é tão volumoso assim – ele apenas
está concentrado numa lasquinha mínima da população. E isso permite a
ocorrência de todos os absurdos descritos nos filmes acima.
Para ser justo, afirmo também que livro demais é veneno,
café demais é veneno, cerveja demais é veneno, tudo demais é veneno.
James Joyce, num dos melhores contos de Dublinenses (“After the Race”, 1914),
afirmou com lucidez profética: “Rapid
motion through space elates one; so does notoriety; so does the possession of
money.”
Joyce estava escrevendo no contexto da febre nascente do
automobilismo, e das primeiras corridas de carros, aquelas baratinhas
tossideiras e sacolejantes do começo do século passado. O movimento rápido
através do espaço deixa uma pessoa inebriada; o mesmo acontece com a fama; o
mesmo acontece com a posse de muito dinheiro.
Imagine as três coisas juntas.
Simon Leviev era um rapaz pobre de Israel, que ainda
adolescente migrou para os Estados Unidos. Desde cedo começou a dar pequenos
golpes. Quando entrou para o Tinder, o aplicativo de encontros, começou a se
dar bem. Apresentava-se como filho de um bilionário dos diamantes em Israel. Logo
no primeiro encontro, levava as mulheres para restaurantes de luxo onde o maître
e os garçons o tratavam com atenção e familiaridade. Dirigia carros caríssimos,
pagava passagens de avião – era aquele tipo do cara que diz para a namorada: “Londres
está muito chata, hoje. Vamos jantar em Roma?...”
As mulheres caíam com gosto na conversa dele, que era
bonitão e descolado. Aí começavam os problemas. “Sou um homem visado,
perseguido por inimigos”, explicava ele, porque o ambiente dos diamantes
envolve bilhões, interesses políticos, interesses escusos. “Estou sendo
seguido... estão grampeando meu celular...”
Além do romance amoroso, as pretendentes estavam vivendo
um romance de aventuras e se dispunham a tudo para ajudar um cara tão bacana, tão
resoluto, perseguido por capangas, precisando de guarda-costas. Não há como não
lembrar A Identidade Bourne, em que
uma moça se mete numa intriga internacional porque simpatizou com Matt Damon.
E começavam os pedidos: “Bloquearam meu cartão de
crédito... Você pode me emprestar 20 mil dólares? Te pago segunda-feira”. O
resto está no Netflix.
(Billy McFarland)
O “Fyre Festival” é outra história envolvendo muita grana
e muita cara de pau. O protagonista neste caso é Billy McFarland, um investidor
jovem que botou alguns milhões no bolso com projetos bem sucedidos na área de
cartões de crédito, passou a circular nas “altas rodas” e a sonhar “com coisas
que o morro não tem”.
Billy gabava-se de que sua empresa, Fyre Media, tinha
valor de mercado de 90 milhões; as autoridades descobriram depois que ela tinha
um faturamento de 60 mil dólares.
De qualquer modo, Billy circulava com cantores, atletas,
modelos, socialites... Diga-se dele o que se quiser, mas tinha um carisma
irresistível. Pessoas que foram arrastadas para um buraco financeiro insolúvel
diziam: “Eu sempre acreditei nele, ele passava uma alegria, uma auto-confiança
enorme, sempre dizia, vamos acreditar, vai dar certo sim, vamos conseguir o que
ninguém conseguiu...”
O festival de música ia ter lugar numa ilha remota das
Bahamas. A divulgação maciça incluiu um filme promocional com modelos lindas e
caríssimas do mundo inteiro, e começou poucos meses antes. Tudo maravilha,
embora o pessoal da técnica dissesse que teria sido necessária uma antecedência
de um ano para produzir aquilo num local sem muita estrutura. (Sem água
potável; sem eletricidade; sem internet – pra começo de conversa).
Movido a carisma, otimismo e cartões de crédito, Billy
vivia de jatinho pra cima e pra baixo, arrumando 30 mil dólares aqui, 50 mil
acolá, enquanto centenas de trabalhadores montavam palcos, tendas, vilas, som,
luz, o escambau. E no dia do Festival, com gente do mundo inteiro desembarcando no
aeroporto (depois de pagar com antecedência) tinha sido montado, quando muito,
um terço da estrutura necessária.
O resto está no Netflix.
O dinheiro embriaga, principalmente quando em vez de ser
contado em moedas de ouro é contado em zeros eletrônicos. A velocidade
embriaga, a velocidade dos jatinhos, do café da manhã em Oslo, o almoço em
Amsterdam, o jantar em Paris. A fama embriaga: o selfie tirado com atrizes
californianas, modelos russas, magnatas alemães, príncipes sauditas.
Não é nenhuma novidade do mundo internético. Joyce fazia
seus rapazes dublinenses perderem rios de dinheiro numa mesa de jogo com
pessoas de quatro ou cinco países; Machado de Assis contava o mesmo, em escala
mais modesta, com seus playboys da Rua do Ouvidor, filhinhos de fazendeiros
ricos ou de políticos (“Vinte anos! Vinte anos!”, 1884); Berilo Neves, em Século XXI, fazia suas socialites da
Confeitaria Colombo encomendarem compras na Lua e marcarem chás-das-cinco em
Saturno.
A única novidade, talvez, é que as pessoas que pensam
assim nunca tiveram tanto dinheiro, nunca tiveram tanta liberdade, nunca
tiveram tanto poder.