Ninguém o cita muito hoje em dia, e não sei como ele é
visto pelos jovens, se é como um dramaturgo de vanguarda, um poeta e desenhista
gay, um cineasta surrealista...
Há meio século, Cocteau, para mim, era menos um escritor
importante do que uma figura folclórica, como Salvador Dali. Os dois podiam até
ser de fato grandes artistas, quando estavam trabalhando, mas a imprensa (pelo
menos a imprensa brasileira, a única de que eu tinha referências aos quinze
anos) os tratava como figuras meramente folclóricas.
Dali era um excêntrico. Cocteau era uma figura menos
excêntrica do que ele. Tinha o lado pitoresco do artista em evidência, autor de
espetáculos, livros ou projetos que causavam algum impacto e polêmica. Sempre
rendia uma notinha, uma frase com legenda espirituosa.
Era também um desses artistas sempre meio em xeque por
serem gays num tempo em que essa palavra nem era usada para isto. Ele era
daquele faixa que demarca seu terreno com inteligência e verve. Era um poeta,
mas era também um Desconstrutor Surrealista, muitas vezes um Rei do Paradoxo
Aforístico, um convidado capaz de tornar uma noitada social inesquecível com
meia dúzia de frases, como também foram Oscar Wilde ou G. K. Chesterton.
Cocteau era para mim o poeta e pintor francês cujos
versos e linhas lembravam os de Garcia Lorca. Só deixou de ser quando vi pela
primeira vez seu filme Orfeu. É um
surrealismo mitológico que só Cocteau acertou a fazer, muito diferente do
absurdo feroz de Buñuel, e com efeitos bem originais para produzir o sonho, o
fantástico.
É o mito de Orfeu: a morte da esposa, a descida aos
infernos, a solução negociada, a olhada para trás, a perda final. Cocteau
reconta essa história na Paris de 1950, tendo como centro um Café des Poètes.
Na sequência inicial do filme acontece uma briga nesse café, uma daquelas
coreografias executadas com prazer pelos extras. (O cinema inventou esse
conceito: a briga feliz.)
Quem nos mostrou esse filme foi o padre Massote, na
Escola de Cinema de BH, onde ele e professores como Paulo Pereira e Hélio
Gagliardi tinham grande admiração pelo diretor. Os truques de espelho, de água,
de tela transparente, são todos convincentes. Sabe-se que Buñuel tinha pouca
paciência com a técnica e a filmagem; Cocteau devia gostar muito de cinema, das
soluções técnicas.
Cocteau é um nome distante hoje em dia, mas acabou de
sair a tradução para o inglês de uma daquelas biografias-de-mil-páginas sobre
ele, resenhada aqui:
Pouco tempo atrás percebi, lendo a correspondência de
Julio Cortázar com seus amigos portenhos (Cartas
a los Jonquières, 2010), que Cocteau foi uma de suas grandes influências.
Cortázar diz aos amigos que irá ver pela primeira vez um show de Louis
Armstrong (ele já mora em Paris; o ano é 1952) daí a poucos dias, e comenta:
“Imaginarás, creio, o que é isto para mim. Sei que Louis está velho, e naturalmente não espero dele o que me deu em seus discos durante tantos anos. Mas ele foi uma das grandes paixões da minha juventude, e vê-lo em cena me parece como uma homenagem, algo como o que senti nesse mesmo teatro quando vi Cocteau abraçado a Stravinsky depois de Oedipus Rex. Pouco a pouco vou encontrando em meu caminho os meus deuses de adolescência. É um sinal de morte e de velhice, mas que importa. Me faltam Duke Ellington, Colette, Earl Hines, Picasso. Talvez me seja dado vê-los um dia.”
Paixões de juventude, deuses de adolescência: talvez seja
essa mentalidade meio de fandom que
faz alguns críticos considerarem Cortázar, hoje, um autor imaturo. Mas essas cartas
são registros de impressões endereçadas a amigos muito próximos, que
dificilmente não entenderão alusões ou ironias propositais. Cortázar, nessa
época com 38 anos, tinha o cacoete de falar de morte e de velhice, figura de
linguagem endêmica em gente como ele.
Em agosto de 1955 ele escrevia aos amigos:
“Ontem completei quarenta e um anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema que hás de recordar, e o dizia com tanta tristeza como eu.”
Só mesmo um virginiano para dizer isso. Em 1966, dentro
dos cinquenta e dois, ele lembrava Cocteau num contexto mais brincalhão, ao rechaçar
os elogios descabelados de alguns conhecidos após o sucesso de O Jogo da Amarelinha (1962):
“Voltando àquela nota de Arroyo: é divertido que ele divida o tempo literário em a.C. e d.C., o que é absurdo, mas vá lá. Suponho que minhas iniciais o ajudaram a organizar esse novo calendário, mas diga a Rocco, se é amigo de Arroyo, que eu sempre me senti mais próximo de Jean Cocteau do que de Jesus Cristo, no que diz respeito a iniciais.”
Cocteau desenhista tinha um pequeno detalhe de estilo que
eu chamo ”desenho de guardanapo”, onde cada vez que a caneta se detém num ponto
produz um pequeno borrão. Isso aparece nos letreiros de abertura do Orfeu, aqui:
Foi um desses artistas que mexem em tudo (cinema,
desenho, poesia, teatro, pintura, etc.) e tudo que fazem é parecido, tem o carimbo
de uma maneira única de ver e de dizer.