quinta-feira, 21 de abril de 2022

4815) Coincidências literárias (21.4.2022)



Existe uma tendência inconsciente da natureza para fazer “rimar” certos fatos dos livros que a gente lê e os fatos da vida real que a gente vive aqui fora?
 
Parece às vezes que os dados viciados do Destino teimam em jogar em cima do feltro verde da existência um 5 e 5, ou um 3 e 3, ou os olhos da cobra (1 e 1) ou as duas caveiras dando risada (6 e 6)...
 
Minha mente racional me diz que não. Diz que é apenas a minha percepção ligada, acesa, que acaba registrando quando, entre mil estímulos sucessivos ou alternados, aparecem dois com alguma coisa em comum.
 
Por exemplo, hoje estou lendo alternadamente um livro da dinamarquesa Karen Blixen (Sete Contos Góticos, 1934) e um do pernambucano Hermilo Borba Filho (Margem das Lembranças, 1976) e em dois dias consecutivos leio, num e no outro, cenas em que na hora de um casamento o noivo “dá no pé”, “capa o gato”, escafede-se, eclipsa-se, celibata-se para sempre e deixa a noiva desmaiada de vergonha diante dos convidados e da congregação. Coincidência? Lugares comuns que se repetem?  É. Pode ser.
 
Num saite dedicado à obra de Philip K. Dick (ele próprio um farejador emérito de recados da Esfera Armilar da Consciência Cósmica) vejo o recado preocupado de um leitor dizendo:
 
Todas as obras de Philip K. Dick têm um modo bizarro de nos fazer pensar que foram escritas tendo em mente você, o leitor, o que por um lado é inquietante, e por outro está totalmente em sintonia com a pulsação de paranóia que lateja no âmago de quase todos os seus romances, de um modo ou de outro. Daí, no mesmo dia em que eu li A Maze of Death eu tinha comprado os ingredientes para preparar um carneiro ao curry (mencionado na página 24), assim como tinha recebido, um ou dois dias antes, a encomenda de uma garrafa de uísque Seagram (página 31). (trad. BT)
 
Mais uma vez, os Amanuenses da Banalidade argumentarão que são comidas e bebidas estatisticamente frequentes no mundo em que Dick e o leitor viviam. Dada a quantidade de pequenos elementos do cotidiano usados nesses romances para lhes dar verossimilhança ambiental (marcas de carros, de bebidas, de eletrodomésticos, nomes de filmes, canções que tocam no rádio, etc.) difícil vai ser colocar um detalhe que não acabe sendo visto como coincidência por algum leitor desses livros. Livros cujas tiragens certamente estão na casa das centenas de milhares de cópias, no mundo inteiro.
 
Comigo acontecem coisas assim o tempo todo.
 
Em novembro, estava eu de banho tomado e roupa trocada esperando um Uber que me levaria para fazer uma palestra em Itaipava (RJ), e ao ler um conto de Ana Rusche vejo uma menção a Itaipava. (A sensação, philipkdickiana, é de que o livro nos pisca o olho e cochicha: “Estou sabendo da sua agenda”.)
 
Dias depois, no café da manhã, li uma citação de Jorge Luís Borges (no livro Curso de Literatura Inglesa) de um verso de um poeta inglês que se referia a “the ghost of a rose”. Algumas horas depois, no mesmo dia, vi uma postagem no Facebook sobre o fotógrafo Jean Manzon. Ele teria penetrado meio disfarçadamente na casa de saúde onde o bailarino Nijinski estava internado (com uma crise psíquica) e para fotografá-lo botou na vitrola o disco de Weber, “Le spectre de la rose”, que Nijinski havia dançado: com isso, extraiu dele uma reação emocional e fez a foto.
 
O Amanuense da Banalidade me explica que eu sou um indivíduo que lê dezenas de páginas por dia, e de quebra ainda passa entre três e cinco horas fiscalizando as redes sociais e as publicações eletrônicas online. Uma pessoa assim entra em contato, todo dia, com milhares de nomes, títulos, marcas, etc.  De vez em quando, duas dessas referências ocorrem no mesmo dia. O espantoso seria se isso nunca acontecesse.
 
Uma anotação de 9 de setembro de 2021 diz (transcrevo):
 
Para minha coleção de coincidências. Ontem à noite eu estava revendo o filme "As 8 vítimas", onde um cara escreve suas memórias na véspera de ser enforcado. Alguém cita para ele a frase do Dr. Samuel Johnson: "Quando um homem sabe que vai morrer no dia seguinte, sua mente se concentra que é uma beleza". Agora à noite, recebi a circular semanal do saite A Word A Day, onde alguém cita a mesmíssima frase. Qual a chance matemática disso acontecer?
 
No conto “A Biblioteca de Babel” (1941), Borges imagina uma biblioteca cujos volumes registram todas as combinações possíveis de letras e números – uma quantidade inconcebível, mas não infinita, de palavras. Se todas essas combinações fossem postas por escrito, cedo ou tarde alguns trechos reproduziriam, ao pé da letra, todos os livros escritos pela Humanidade.
 
A Borges isso não basta – ele postula que caberiam também todas as versões truncadas ou levemente distorcidas de cada um desses livros, todas as versões que diferem entre si em apenas uma palavra ou uma letra.
 
E de vez em quando, no meio de léguas de páginas cobertas com “nsdbdgdt iegsh t2tsdk hrury”  apareceriam palavras como “a cãibra de gesso”, e ficaríamos maravilhados com a coincidência dessas letras surgirem assim, tão bem compostas, parecendo uma coisa intencional.
 
O que é a coincidência? Segundo os filósofos, tudo é coincidência, tudo coincide, uma vez que tudo está presente, lado a lado. O que nos inquieta e nos fascina é a coincidência significativa, a coincidência na qual a mente humana é capaz de projetar um possível significado. Ao Universo, para quem essas coisas são indiferentes, o fato de num banco do metrô sentarem lado a lado dois indivíduos chamados Ademir é um fato irrelevante, uma fatalidade estatística. Para um ser humano, criatura que se move num labirinto onírico de objetivos, finalidades, causas-e-efeitos, isso parece indicar um recado misterioso, uma intenção secreta.