segunda-feira, 29 de agosto de 2016

4151) A arte de reescrever o passado (29.8.2016)



São dois temas bem antigões, que parecem não ter muito a ver um com o outro, mas têm:

1) A possibilidade tecnológica de fazer uma pessoa desaparecer de um documento, de uma lista, de um arquivo, de uma foto, de mil registros ao vivo em televisão.

2) A escolha entre uma decisão rigidamente técnica (baseada em provas concretas) e outra decisão que é jogo-de-cinturalmente política (baseada em opiniões). A distância entre uma cultura onde tudo fica registrado, o preto no branco, o cinzel na pedra, a tinta no papel, e uma cultura sem documentos, oral, maleável, baseada apenas na memória e no testemunho do momento.

Diz um personagem de Ted Chiang, em “The Truth of Fact, the Truth of Feeling” (2013):
Antes de adotar o uso da escrita, uma cultura tem os seus conhecimentos transmitidos exclusivamente de forma oral, e pode facilmente revisar sua própria história. Isto não é proposital, mas é inevitável: pelo mundo inteiro os bardos e os griots vêm adaptando seu material poético às platéias para quem cantam, e assim vão gradualmente ajustando o passado às necessidades do presente.

Essa é a idéia geral por trás da noção de que a História é escrita e ensinada pelos vencedores, de que são os vencedores que contam a sua versão dos fatos. “História” neste caso inclui até mesmo as epopéias, rapsódias, ou que nome tenham as obras de grande porte contando um episódio glorioso do passado.

O melhor relato de uma batalha tanto pode ser de um escritor do lado vencedor quanto de um escritor dos vencidos; e ambos serem igualmente grandes e necessários. E, mais uma vez, não há determinismo prévio nessas escolhas. Os Sertões de Euclides da Cunha foi uma obra encomendada pelos vencedores mas que acabou celebrizando o heroísmo dos vencidos.

De novo Ted Chiang:
A idéia de que relatos do passado não podem ser modificados é um produto da reverência que as culturas alfabetizadas têm com relação à palavra escrita. Os antropólogos nos dirão que as culturas orais entendem o passado de maneira diferente: para elas, suas histórias precisam menos de ser factualmente exatas do que de validar o entendimento que a comunidade tem sobre si mesma. Desse modo, não seria correto afimar que suas histórias não merecem confiança; suas histórias fazem o que eles precisam que elas façam.

Em 1984 de George Orwell temos uma das primeiras obras mais consistentes, na literatura distópica, na tentativa de imaginar como seria uma língua do totalitarismo. Orwell chegou a criar alguns termos que são usados hoje em qualquer contexto, como Novilíngua (Newspeak) etc. Sua visão do futuro, apesar de muito pessoal, parece uma tentativa de sintetizar precursores variados como Metropolis (1926) de Fritz Lang, Nós (1921) de Yevgeni Zamyátin, sem falar nas ditaduras judiciárias de Kafka (O Processo (1925), Na Colônia Penal (1919) etc).

No livro de Orwell o protagonista, Winston Smith, passa dias inteiros reescrevendo notícias da imprensa dando uma versão diferente de cada fato do passado, no mesmo número de linhas, para que novas páginas do jornal sejam reimpressas.

Nas fotos clássicas dos politburos stalinistas, um trio de líderes vira um quarteto, ou o contrário. A parede nem se altera. Na política, pelo mundo afora, uma chapa eleita numa entidade qualquer manda eliminar um indesejável dos arquivos, da fototeca, de tudo. De pincéis habilidosos a manipuladores digitais, hoje (a partir de hoje) é possível fabricar do nada uma prova incontestável de alguma coisa.

No mundo do Grande Irmão existe (tendo como combustível emocional o uso de jargão, de rituais de ódio coletivo a poder de slogans) a reescritura constante do Passado. Nas casas, nas escolas e no trabalho a mensagem é uma só. E se alguém tivesse motivação suficiente para recorrer a arquivos e bibliotecas, só encontraria confirmações variadas da versão oficial.

José Saramago brincou um pouco com essa noção de interferência em coisas já acontecidas com seu personagem historiador em História do Cerco de Lisboa (1989), que insere um não antes da narração de um fato num livro e muda a História. Tal como os viajantes no Tempo de Isaac Asimov em O Fim da Eternidade (1955), eternamente saltando de século em século para preservar a linha temporal para a qual trabalham, impedindo que o passado, sempre instável, possa lhes fugir ao controle.

Esses crono-agentes têm às vezes a missão de voltar a um século qualquer para entrar num avião, abrir o compartimento de bagagem em cima de uma poltrona, e empurrar uma pasta para  longe do alcance de alguém. Quando a pessoa procurar a pasta ali, não a encontrará, e vai imaginar que já a guardou em segurança. Com isto, inverte-se o resultado de uma importante reunião.

O minimalismo dessa coreografia (viajar séculos para empurrar um objeto quarenta centímetros para além de onde estava) confirma uma porção de teorias do Tempo que concordam todas com o chamado efeito “som de trovão”, devido ao conto de Ray Bradbury: a morte de uma borboleta pode reverter o resultado de uma eleição presidencial.

Um dos aspectos da guerra pelo Poder é a guerra pela narrativa da guerra. A guerra pelo futuro Saber, pelo futuro da informação. Na frase famosa de Orwell: “Aquele que controla o passado controla o futuro. E aquele que controla o presente controla o passado”.

Essa guerra ganhou agora uma dimensão maior no contexto vídeo-digital-eletrônico: um contexto fluido, impalpável, imaterial, muito parecido ao das culturas orais pré-alfabeto, pré-escrita. 

O tempo agora é de registros pós-papel, pós-Gutenberg, pós-documento com firma reconhecida.

Todo grupo centralizador, autoritário, quando se apossa do Poder dá início a uma completa desconstrução do Passado e reconstrução para confirmar sua narrativa das coisas.

Essa batalha nunca será dada como “ganha e perdida”, para usar a frase da bruxa do Macbeth. Essa batalha existirá enquanto existirem política humana, linguagem humana e memória humana.









quinta-feira, 25 de agosto de 2016

4150) Geneton (25.8.2016)



Um mês  atrás compartilhei no Facebook um pedido de doação de sangue para o jornalista Geneton Moraes Neto, que estava hospitalizado. Acendi a luz amarela de alerta, mas não houve novidade nos dias seguintes e acabei esquecendo. Não tínhamos contato direto (mais por culpa minha, que hoje sou um anacoreta com direito a redes sociais). Eu o via por acaso – fosse num corredor da Globo (nas vezes em que trabalhei lá), num lançamento de livro, ou algo assim. Nosso último papo tinha sido antes da sessão de lançamento do filme Brincante de Walter Carvalho e Antonio Nóbrega, aqui no Rio.

Geneton, como tantos de nós, era um Mágico de Oz comandado de dentro por um cineclubista. No caso dele, um cara moreno, barbudo e enfezado, que fazia uns filmes despirocantes no Recife, no meio de uma turma que incluía Jomard Muniz de Britto, Paulo Cunha, Amin Stepple – este último de Campina Grande, amigo meu de geração, que me apresentou aos demais. Quando Amin e Geneton surgiam caminhando lado a lado na calçada me lembravam Dom Quixote e Sancho Pança, um longilíneo e encurvado, o outro atarracado e hirsuto.

O superoitista virou jornalista. Acompanhei muitas das grandes entrevistas que ele fez para a TV Globo, e ver Geneton entrevistar era um pouco como ver alguém montar num boi brabo. Ao vê-lo formular certas perguntas a um ex-presidente ou a um general, minhas mãos se cobriam de suor frio. Eram perguntas que eu tinha vontade de fazer, mas morreria e não faria mesmo que por trás de mim, me bancando, estivessem não apenas a Rede Globo, mas o Pentágono, a KGB e os duzentos jagunços de Augusto Santa Cruz.

Perguntar é a arma do repórter (o que GMN foi na medula, ao fim e ao cabo; o que se orgulhava de ser), mas uma arma de alto risco, cuja bala pode inclusive inverter a direção depois de disparada. O entrevistado pode até ter um acesso apoplético (como o general Newton Cruz esteve a ponto de ter diante das câmeras) e não responder. Mas a pergunta pressupõe que existe uma resposta, que existe a questão; que existe, na multidão silenciosa que o repórter representa, a necessidade de ficar sabendo.

E não me refiro às perguntas sensacionalistas dos escândalos miúdos, das pegadinhas onde são feitas perguntas infantilóides, canalhamente indiscretas, perguntas que não passam de fofocas ou maledicências encomendadas.

São perguntas como (me deem licença para um exemplo provinciano) o jornalista Chico Maria fazia no seu programa “Confidencial” da TV Borborema de Campina Grande, olhando nos olhos do ex-prefeito Plínio Lemos e perguntando: “Por que o senhor mandou matar o vereador Félix Araújo?”, ou para Luís Carlos Prestes, e dizer: “Por que o senhor apertou a mão de Getúlio Vargas, que entregou sua esposa Olga Benário aos nazistas?”. (Ver aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/06/1123-confidencial-20102006.html).

É a pergunta feita de pessoa para pessoa – o respondedor carregando consigo o peso do passado, e o perguntador trazendo o peso do presente. A pergunta (agora num exemplo em escala nacional) da escola de Joel Silveira, mestre de Geneton, repórter batedor de perna na calçada, questionador, atrabiliário, pavio curto, cuja frase era uma guilhotina.

E, curiosamente, no trato pessoal Geneton desmentia a imagem de enfezado que passava num primeiro contato, porque era meio retraído e sempre afável, discreto como um verdadeiro cineclubista, um “prestador de atenção” na expressão de Jessier Quirino. Tinha o humor escarninho do recifense, mas nunca se alterava.  Entrevistando, era incisivo sem ser hostil, mesmo quando a gente sabia que ele não gostava do entrevistado.

O lado cinéfilo era o outro prato da balança que o fazia escapar das tentações do “furo de reportagem” como valor absoluto. O amor à Arte equilibrava nele o amor à Verdade. Feliz de quem (principalmente quem tem talento e/ou poder) consegue equilibrar Arte e Verdade, essas duas coisas aparentemente próximas, e na prática incomensuravelmente distantes, e em última análise apenas duas faces de uma coisa maior que ninguém enxerga.

Dos trabalhos de Geneton nos últimos anos vi apenas seu documentário sobre o tropicalismo, Canções do Exílio (comentei aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2481-labareda-que-lambeu-tudo.html), e sua longa entrevista com Geraldo Vandré (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/10/2364-entrevista-de-vandre-4102010.html).

Pesco aqui um trecho de um longo post de Sérgio Rodrigues no Facebook, citando Geneton: “Não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado.“ Vale para a literatura, vale para tudo.







segunda-feira, 22 de agosto de 2016

4149) Ainda o "Manifesto Incompleto" (22.8.2016)




(ilustração: Chaval)


Bruce Mau é um arquiteto e designer canadense, que em 1998 criou um manifesto artístico a que chamou “An Incomplete Manifesto for Growth” (Um Manifesto Incompleto pelo Crescimento). Uma série de dicas inspiradoras, ou de auto-ajuda criativa, desse tipo que não resolve nenhum problema específico, mas proporciona um clima intelectual positivo para o surgimento de novas idéias e novas práticas. Já postei aqui alguns itens desse manifesto (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/07/2620-incomplete-manifesto-2872011.html).

Hoje comento mais alguns.

Esqueça o “bom”. “Bom” é algo que já se sabe o que é.  “Bom” é tudo aquilo que a gente já concorda. O crescimento não é necessariamente bom. O crescimento é a exploração de recessos ainda não-iluminados que podem ou não render algo para nossa pesquisa. Enquanto você continuar preso ao que é “bom” nunca terá um crescimento verdadeiro.
BT: O bom é a repetição do que já foi testado e aprovado. A indústria vive disso, vive do que comprovadamente funciona e dá lucro. Mas toda indústria (eletrônica, mecânica, o escambau) tem o seu setor de pesquisa, onde se trabalha justamente com o que não foi testado ainda. Os artistas servem como uma espécie de setor de pesquisa, porque a indústria cultural trabalha somente com o “bom”, o testado e aprovado. Na televisão, por exemplo, a única maneira de fazer uma coisa radicalmente nova é convencendo os executivos (mentindo, de forma convincente) de que aquilo já foi feito antes e deu certo, ou seja, aquilo é “bom”.

Dizemos que os executivos de TV são burros, são bitolados, não têm cultura, etc., mas a verdade é que eles não querem botar a cabeça na guilhotina para defender uma coisa diferente, que eles não têm condições de saber se é “boa” ou não. Eles defendem o “bom”. Mas se você não é um executivo, se você é (ou imagina que é, ou tem ambição de ser) um artista, tem que esquecer esse critério. Talvez até surja um futuro conceito de “bom” a partir desse trabalho novo que está sendo criado. O excêntrico, o anticonvencional e o chocante de hoje podem se tornar o “bom” de daqui a 10 ou 20 anos.

Ou, como disse o poeta Chacal: “Só o impossível acontece. O possível apenas se repete.”

Colha idéias. Edite aplicações. Idéias precisam de um ambiente dinâmico, fluido, genroso, capaz de mantê-las vivas. As aplicações dessas idéias, por outro lado, precisam ser aperfeiçoadas pelo rigor crítico. Você tem que produzir um número de idéias muito grande em relação às aplicações.
BT: Existem muitas formulações diferentes desse princípio básico. A mais divertida é a de Hemingway: “Escreva bêbado, revise sóbrio”. O processo criativo tem esses dois movimentos. O primeiro é de expansão, quando procuramos fazer jorrar o maior número possível de idéias. O segundo é de contração, quando vamos podando aquele matagal até dar-lhe uma forma que nos agrada. No cinema, por exemplo, existe uma antiga lei chamada de “Lei dos 8 por 1”, em que para cada minuto de filme na tela é preciso filmar oito e cortar sete. No primeiro momento, deve predominar o entusiasmo, a alegria de inventar, a disponibilidade para incorporar o acaso, as venetas, os improvisos. No segundo momento, deve predominar o senso crítico, o equilíbrio, o olho voltado para o público.

Fique acordado até tarde. Coisas estranhas acontecem quando você vai longe demais, fica acordado por tempo demais, trabalha duro demais, e se separa do resto do mundo.
BT: O “ficar acordado até tarde” não precisa ser levado muito ao pé da letra. Para algumas pessoas, onze da noite já é o máximo da vigília. A idéia dessa sugestão é que um certo grau de cansaço físico e mental é necessário para que a mente faça tentativas mais vigorosas de ter as idéias necessárias. O conforto e o bem-estar nem sempre geram boas idéias. Um certo grau de cansaço faz algumas mentes (algumas, porque esses conselhos, claro, não sevrem para 100% da população) produzirem suas melhores idéias.

Já me aconteceu estar trabalhando num novo capítulo de um livro das 11 da noite até as 3 da madrugada, e na hora em que terminei estava tão cansado que quando apareceu a mensagem: “Deseja salvar as alterações neste arquivo?” eu cliquei “não”, e o arquivo foi pro espaço.

Eu estava tão cansado que pensei, drummondianamente, “amanhã recomeço”. Mas logo em seguida pensei: “amanhã terei esquecido tudo”. E refiz o capítulo todo em uma hora e meia, e ficou muito melhor do que antes, porque tudo ainda estava vívido na minha memória. O cansaço e a concentração se juntaram para “limar” tudo da mente e deixar só o essencial.

Pausas para cafezinho, corridas de táxi, salas de espera. O verdadero crescimento das idéias acaba se dando do lado de fora de onde o programamos, naquilo que o Dr. Seuss chamava “o lugar da espera”. Hans Ulrich Obrist organizou certa vez um simpósio sobre Arte e Ciência, com toda a infraestrutura de um simpósio (as festas, os bate-papos, os almoços, os traslados entre aeroporto e hotel) mas sem nenhuma conferência. Ao que parece, foi muito bem sucedido e deu origem a muitas colaborações fecundas.
BT: A experiência de Obrist é radical, e não duvido que tenha dado certo. Mas vamos tirar o foco do exemplo e trazer para o conceito abstrato. Num ambiente criativo (estúdio de cinema ou de música, laboratório, ensaio teatral ou de dança, etc.) é preciso que existam lado a lado o espaço oficial e o não-oficial, o tempo oficial e o não-oficial, e que as pessoas sejam estimuladas a se sentir à vontade nos dois. Quando fiz faculdade, aprendi muita coisa na sala de aula, mas aprendi mais ainda na biblioteca e na cantina. Durante filmagens ou gravações de TV, muitas soluções aparecem quando a gente “pede tempo”, anuncia uma pausa de meia hora e vai na padaria da esquina. Basta a mudança de contexto externo para os cérebros darem uma revirada no contexto interno e alguém erguer o dedo dizendo: “Que tal se...?”

Este conselho serve para equilibrar o anterior, o de ir até o limite da exaustão. Mudar de ares, fazer uma pausa, tudo isto também funciona. Basta ter em mente que nem toda pessoa é produtiva da mesma forma; e que até a mesma pessoa pode render melhor num dia sendo submetida a um tipo de esforço, e no dia seguinte, ou no ano seguinte, a outro tipo. O trabalho criativo é imprevisível. Se você faz um trabalho burocrático pode calcular (eu fazia isso quando trabalhava em escritório) quantos ofícios vai poder datilografar em uma hora. Mas não pode prever, se é escritor, quantas cenas ou quantos parágrafos vai produzir naquele dia, a menos que você ache que produzir duas páginas de bom texto e duas páginas de besteira equivalem ao mesmo rendimento.





sexta-feira, 19 de agosto de 2016

4148) O clichê narrativo da TV (19.8.2016)



("A Sucessora")

Quando falamos de realismo narrativo (seja na literatura, cinema, teatro, TV, etc) muitas vezes estamos contrapóndo esse realismo a histórias claramente fantásticas, absurdas, que não podiam acontecer no mundo como o conhecemos, desde As Sete Viagens de Sindbad até Godzilla, desde Alice no País das Maravilhas até Harry Potter. Todas estas histórias são não-realistas, mostram coisas que não poderiam acontecer no nosso mundo.

Toda narrativa realista, no entanto, é sempre em certa medida anti-realista, porque tem um grau inevitável de artificialidade. Não basta evitar coisas impossíveis (pessoas voando, gente virando bicho, etc.). Seria preciso também, para um estrito realismo, não usar certas convençõezinhas que vão se cristalizando com o passar do tempo, detalhes com alto grau de artificialismo e improbabilidade, mas que a gente aceita porque já fazem parte das regras do jogo.

Downton Abbey, por exemplo: é ou não uma história realista?

Digressão para quem não assiste a série da Netflix: ela conta a história de uma família aristocrática inglesa e seus criados, a partir de 1912. A vida de luxo dos patrões entrelaçada à vida modesta dos serviçais, as intrigas, os amores e os ódios.  Ambição, traição, política, sexo, casamentos por interesse, heranças milionárias disputadas a ferro e fogo, crime, guerra.

Downton Abbey é uma mistura de novela de época da Globo e filme de James Ivory. Realismo de terno e gravata. Tudo em sua dramaturgia tem uma preocupação de ser o mais conservador possível, o mais mainstream possível, sem desvios do que há de mais básico em matéria de roteiro, diálogo, montagem, cenários.

É um novelão que se vale desse quadradismo para impor seu verniz de realidade. É realista pelo fato de nada haver de fantástico, sobrenatural, impossível dentro dela. Fora isso, é totalmente artificial. Ou seja: não realista.

Um recurso comum destas séries, em cenas de jantares, festas, etc., é vermos dois personagens lado a lado, conversando na mesa algo que, pelas circunstâncias físicas (e acústicas) do momento seria impossível não ser ouvido pelas pessoas vizinhas ou do lado oposto da mesa. E no entanto eles o fazem sem que ninguém pareça escutá-los.

É um pouco como aquele recurso clichê da farsa teatral, do vaudeville, em que dois atores estão sentados lado a lado num sofá e um dos dois finge estar distraído enquanto o outro comenta para o público: “Essa agora foi boa! Como é que eu vou convencer esse idiota de que estou falando a verdade?!”, e a platéia aceita que ele não está sendo ouvido pelo outro cara ali, a centímetros de distância.

Ou seja: em momentos assim a conveniência narrativa (a necessidade de passar uma informação ou comentário para o público) se sobrepõe ao realismo.

Gêneros populares (os velhos melodramas teatrais, as comédias, os esquetes cômicos de TV-de-auditório, etc.) são cheios de pequenos truques assim, de pequenas fórmulas para resolver situações. O público habituê vai formando também seu repertório de experiências, e este vira um repertório de expectativas.

O uso desse tipo de clichê cria uma cumplicidade, uma espécie de piscadela entre o diretor/autor e o público.

Daí que, quanto mais um gênero vai se firmando junto a um público, menos realista ele é. “Firmar-se” implica em propor convenções narrativas que o público primeiro aceita, e depois passa a esperar (ou até a exigir). O gênero se torna maneirista, formulaico, ou que outro rótulo alguém queira dar.

Downton Abbey, apesar de toda sua pompa arquitetônica, gastronômica e sartorial, não é menos useira e vezeira dessas fórmulas do que qualquer novelão do SBT. 

As mesmas velhas figuras de linguagem do melodrama mexicano ou cubano estão todas ali.

A chegada repentina, em plena festa, do herói dado por morto.

O casal que vive às escaramuças mas vê-se que os dois migram irresistivelmente na direção um do outro.

A noiva abandonada diante do altar.

A pessoa que entra num aposento já falando em voz alta com alguém que imagina estar ali, e se interrompe quando vê alguém inesperado.

O beijo proibido que, nem bem começa a acontecer, a câmera já corrige o ângulo para mostrar alguém olhando pela vidraça da janela. (E sua contrapartida: o beijo triunfal com a câmera descrevendo um círculo completo em torno dos beijantes.) 

Clichês narrativos são sempre úteis. Mas (que coisa curiosa) acho que são mais úteis num filme de um maluco como Alejandro Jodorowsky ou dos Irmãos Coen do que num novelão-das-oito como Downton Abbey.

Quando Jodorowsky usa, em filmes como El Topo, Santa Sangre, A Montanha Sagrada e outros, alguns clichês do cinema popular, isso ajuda o espectador, meio perdidão no meio de uma performance surrealista, a pegar de volta a estrada principal da narrativa. Em histórias assim o clichê surge como se fosse uma fala em nosso idioma no meio de uma algaravia em língua estrangeira.  “Ufa, que bom, isso eu entendo, agora já posso me situar.”

Downton Abbey ou as novelas das 7 não precisariam disso. Tudo ali já é contado numa língua que qualquer um entende. Por que, então, a novela de TV recorre tanto ao clichê?  Não é para trazer o público de volta, é para impedir que ele se afaste um milímetro sequer. O clichê narrativo é um ritual milenar no qual autores e espectadores se refestelam na zona-de-conforto do lugar comum.

Narrativas assim tornam-se engessadas num círculo vicioso de pequenos cacoetes que não têm mais nada a ver com o realismo ou naturalismo propriamente ditos (= histórias onde tudo acontece como na vida).

Claro que a arte é o contrário da vida – a habilidade consiste em dar a impressão de que é a vida que está ali, e não uma porção de atores dizendo falas decoradas.

É nessa área que surgem as queixas tão frequentes dos espectadores de novelas brasileiras sobre a ausência de olho-mágico nas portas, sobre o fato de todos os personagens se cruzarem “casualmente” sempre na mesma lanchonete, sobre a mania das pessoas irem discutir na casa das outras ao invés de telefonar.

É fórmula, é artificialismo, é tudo para facilitar o trabalho do autor. Mas é nesses momentos que a dramaturgia se revela como um gato escondido com rabo de fora.








terça-feira, 16 de agosto de 2016

4147) O apologista Giuseppe Baccaro (16.8.2016)



Perdemos na semana passada a pessoa única e inimitável de Giuseppe Baccaro, falecido aos 86 anos num hospital do Recife.

Para a imprensa em geral, nos obituários que li agora, ele era um artista, um marchand e colecionador de artes, italiano, radicado no Brasil desde os vinte e poucos anos, um sujeito ligado desde sempre ao mundo das artes plásticas. Passou uma longa temporada em São Paulo, e se fixou por volta de 1970 em Olinda, onde criou a Casa das Crianças de Olinda, uma entidade assistencial.

O outro lado de Baccaro é a sua ligação com o cordel, a cantoria de viola, a xilogravura, outras formas de poesia popular.

Foi por essa via que nos conhecemos, por volta de 1976, quando ele realizava (praticamente sozinho) um festival de violeiros em Olinda e eu trabalhava no Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Ele nos visitou certa vez, para ver o Congresso, e começamos aí um diálogo que durou muito tempo.

Havia uma certa hierarquia na relação. Baccaro era 20 anos mais velho do que eu, que não passava de um estudante universitário, um diletante que sabia preparar bons motes. Ele tinha o poder econômico, mas, muito mais do que isso, tinha “a Força”. Aquela energia inexplicável e fascinante que leva certos indivíduos a realizarem coisas, compulsivamente, passando por cima de pau e pedra, dobrando os outros à sua vontade, visando um objetivo maior.

Incansável, mandão, impaciente, afável, risonho, onipresente, era aquele tipo de cara capaz de armar sozinho a lona de um circo.

O eterno sotaque italiano brotava com força a cada contratempo; “Ma no é possível!”. E arregaçava as mangas, pegava a gente pela orelha e levava pra consertar.

Nossa convivência se consolidou em 1979, quando ele me chamou para participar da Viagem dos Poetas ao Brasil, uma excursão de cantadores patrocinada pela Prefeitura de Olinda, na gestão de Germano Coelho.

Eu quase endoideço, porque Baccaro ficava me incumbindo de uma maratona de tarefas para as quais eu era totalmente despreparado. Se sou tímido e desorganizado hoje, imagina 40 anos atrás.

Durante menos de um mês, um ônibus cheio de repentistas realizou shows sucessivos em (nesta ordem) Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belém, São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa e Olinda.

Entre as duplas que fizeram a viagem, estavam Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio; Lourival Batista e Lourival Bandeira; Otacílio Batista e Oliveira de Panelas; Luís Campos e Luís Antonio; Zé Vicente e Manuel Estêvão; Pedro Bandeira e Daudeth Bandeira; e vários outros.

Eu fui junto, como uma espécie de assessor de imprensa, e levei comigo minha irmã Inês e minha esposa na época, Arly Arnaud, “Lili”. As duas frequentavam cantorias comigo há anos e eram amigas da maioria dos poetas. Ajudavam a vender os folhetos e xilogravuras, a apartar as brigas.

Baccaro mexia em tudo, se preocupava com tudo: a ordem das duplas que iam cantar, o som, a iluminação, o palco, os temas a serem sorteados. Era tempo da ditadura, governo Geisel, e ele insistia: “Vamo falar de política!  Vamo soltar o verbo!” Eu ponderava: “Baccaro, e se prenderem o grupo inteiro?”  E ele: “Ah! Melhor! O mundo todo fica sabendo dessa patifaria que tem aqui!”.

Não prenderam ninguém, embora tivéssemos aqui e ali uns arranca-rabos – quando cantamos nos degraus do Teatro Municipal de São Paulo, às quatro da tarde, parando o trânsito, a polícia veio cortar o nosso som.

Fizemos apresentações em palco ao ar livre para multidões gigantescas na Praça da Sé (SP), na Feira de São Cristóvão (Rio, numa manhã chuvosa de domingo), no Campo Grande (Salvador).

Quando chegamos em Brasília, Baccaro anunciou que no dia seguinte iríamos ser recebidos pelo Ministro da Educação, ao qual ele entregaria um manifesto pela poesia popular. Sempre interessado em qualquer chance para produzir frases bombásticas, perguntei se precisava de alguma coisa. “Só que no me atrapalhe,” disse Baccaro, e passou a noite batucando o manifesto numa máquina de escrever emprestada.

Alguns anos depois ele repetiu a Viagem, e desta vez não fui. Inês foi, e talvez seja a única pessoa da equipe a ter participado das duas.

Quando sentávamos para conversar, Baccaro sempre deixava clara sua impaciência com o descaso com que o Brasil tratava a poesia popular.

Eu tinha menos de 30 anos e ainda estava numa fase meio deslumbrada, só pensava em rimas, em motes, em inventar novos gêneros. Baccaro passava a mão pelo cabelo meio longo e deblaterava contra a estupidez das autoridades, a burrice dos intelectuais, a desinformação da imprensa, os preconceitos da classe média.

“São uns idiotas, uns imbeciles,” bradava ele. “Têm a poesia mais viva do mundo, os poetas mais geniais, e não dão valor.” Acho que herdei dele (espero ter herdado) esse inconformismo com a imbecilidade oficial brasileira. Principalmente os nordestinos, tão deslumbrados com o folclore do Sudeste.

Nas gráficas da Casa da Criança publiquei meu folheto Cantoria: Regras e Estilos, que distribuíamos de graça na “Viagem” de 1979, e em 1981 ele me deu de presente uma tiragem enorme de Cabeça Elétrica, Coração Acústico, com letras de minhas canções.

Era um convertido, um desses estrangeiros que renascem ao descobrir o Brasil. Como o francês Raymond Cantel, criador da maior biblioteca de cordel da Europa, que entrevistei no Hotel Tambaú e depois levei à “Estrella da Poesia”, a editora de Manuel Camilo dos Santos, de quem ele era o maior fã. Como Idelette Muzart, a francesa que uma magia de cordel transformou em paraibana por amor à poesia popular. Como o holandês Joseph M. Luyten, que editou na Hedra uma excelente coleção de antologias de cordel (eu organizei a de Raimundo Santa Helena). Como Claude Sicre, o rapper dos ”Fabulous Trobadors”, que ao ressuscitar na Provença o idioma occitano descobriu o coco-de-embolada do Nordeste. Como tantos outros que tiveram de vir de longe para nos mostrar a poesia que se produzia ao nosso redor.

Era artista plástico, marchand, colecionador, mecenas, empresário? Para mim era e será Baccaro, apologista da cantoria de viola.







sábado, 13 de agosto de 2016

4146) O tradutor e o autor (13.8.2016)



Ao se traduzir autores considerados clássicos, respeitados, conhecidos, há uma mistura interessante entre coerção e liberdade.

Um autor clássico, famoso, best-seller é em geral um autor que se pode consultar em várias traduções. Um crítico, um professor, um colega, têm outros exemplos para comparar com a tradução que estão examinando. Por clássico entendo tanto Shakespeare quanto Agatha Christie: autores para os quais não faltam versões no mercado.

Isso é uma coerção porque o novo tradutor sabe que seu trabalho provavelmente vai ser comparado com o trabalho dos que o antecederam. O que era para ser um labor-de-afeto feito no silêncio e na solitude acaba se transformando numa competição pública.

Por outro lado, pode ser uma liberdade, porque o novo tradutor dispõe de precedentes, de traduções anteriores que ele pode consultar. Uma vez um amigo se horrorizou ao me ver traduzindo e tendo ao lado uma pilha de traduções antigas do mesmo livro. “Você está colando?!”, perguntou ele, horrorizado diante daquela contravenção escolar.

Há várias maneiras de responder a isto. Uma é dizer que você não está preguiçosamente copiando a solução que um colega adotou vinte anos atrás: está justamente se comprometendo consigo mesmo a encontrar uma solução tão boa quanto a dele.

Outra é pensar que todos os tradutores estão produzindo um gigantesco corpo de notas de pé de página ao texto original. Consultar o que os outros já disseram nos desobriga de repeti-los. E nos libera para a repetição, quando consideramos que estamos apenas repetindo o óbvio, naqueles casos inevitáveis em que the book is on the table.

E nem mesmo essa proliferação de precedentes quebra todos os nossos galhos. Já me vi diante de uma palavra ou expressão inacessível a tudo: dicionários, Google, forums de tradutores. Consultei então duas traduções brasileiras do mesmo livro, uma portuguesa, uma espanhola e uma francesa: cada uma delas cortava o nó górdio de uma maneira totalmente diferente. O que fiz? Inventei também.

Trabalhamos com um olho no público que vai ler o livro (e que precisa ter nas mãos um livro legível) e com um olho no autor (que precisa ser respeitado; é ele, em última análise, o patrão a que devemos obediência).

Muitas vezes é útil saber, da própria boca ou pena desses autores, o que eles mesmos consideravam menos relevante na própria obra.

Garcia Márquez pode se dar o luxo de afirmar que não sabe manejar bem o diálogo, por isso sua narrativa é geralmente uma narrativa distanciada, sem o ping-pong verbal de muitos autores.

Raymond Chandler podia dar de ombros, com azedume, e dizer, o enredo, dane-se o enredo, o que eu procuro é outra coisa.

Borges podia pedir desculpas a gerações sucessivas de leitores pela reiteração dos próprios clichês: espelhos, espadas, tigres, labirintos...

Aceitar os limites ou os cacoetes do autor significa acompanhar seu modo de expor, sua notação, sua mecânica pessoal de narrativa. Nesse caso, o tradutor precisa seguir a voz do texto original. É como se fossem dois tapetes mágicos voando juntos, num voo quase sincronizado, o autor dando guinadas imprevistas e o tradutor tentando acompanhá-lo sem perder o ritmo.

O tradutor tem que acelerar quando o original acelera, retardar quando retarda, ser nítido ou meio incoerente sempre que o original for assim.

Uma questão interessante que se coloca é quando o tradutor acha que o autor foi kitsch (brega, naïf, etc), algo que em tese deveria ser evitado. Que tipo de comentário a tradução pode fazer? Ressaltar que o autor teve ingenuidade e mau gosto? Procurar pensar como ele, e produzir em português uma imagem que dê essa mesma impressão, e mais a de sinceridade, de quem estava dizendo aquilo e achando que estava arrasando?

E quando o autor erra, o tradutor tem o direito de corrigir? Ou pelo menos sugerir uma nota explicativa? Já localizei erros bobos em edições recentes de livros que vêm sendo publicados há meio século. Troca de um nome por outro, erro autoral que poderia ser corrigido editorialmente, na revisão.

Mas, e quando o autor fala bobagem? Se o autor Fulano, referindo-se a outro, afirma que ele era irlandês, quando na verdade era nativo da Escócia, a gente corrige e fica na moita? Deixa o autor famoso em erro? Escreve para a editora original? Bota asterisco e nota? Faz de conta que não sabia?

Em geral quem decide isso é mesmo o editor, que é aonde vão todas as fichas que não caíram. O tradutor dá seus palpites, mas a decisão é mais acima, porque há um problema com o original, não com a tradução.

Deve sair em breve minha tradução de A Irmãzinha de Raymond Chandler, o quarto volume na série da Alfaguara/Objetiva.

Nesse volume incluí uma carta de Chandler para a agente literária Bernice Baumgarten, queixando-se dos numerosos erros que ele encontrou em poucos minutos nas páginas iniciais de uma edição italiana de um livro seu. Ele explica todas as coisas erradas que, mesmo falando pouco italiano, ele consegue perceber. Vê-se claramente que era uma edição mais que descuidada e uma tradução cheia de pequenos equívocos.









quarta-feira, 10 de agosto de 2016

4145) A arte de intitular um livro (10.8.2016)



Dar título a um livro é como dar nome a uma pessoa, com a diferença de que os nomes de pessoa são geralmente escolhidos dentro de um repertório já existente.  Mesmo com a tendência brasileira para inventar nomes exóticos (Wandergleyson, Carlúcia, Keirrison, Francicleide) a maioria dos nomes vem desse dicionário coletivo. 

Já o nome de um livro tem que ser inventado pelo autor e precisa refletir de algum modo o conteúdo da obra, intensificando-o, comentando-o, fazendo uma alusão, etc. 

Jacques Derrida disse que “um título é sempre uma promessa”, e eu completaria observando que muitas vezes o leitor nem sabe direito o que lhe está sendo prometido, mas fica disposto a pagar para ver. Um editor, desses bem pragmáticos, diria que um título é sempre uma isca.

Ao intitular um livro, o autor é um pouco como um publicitário.  Ele sabe que precisa dar ao editor, ao livreiro e ao leitor (nesta ordem) uma idéia clara do que é a obra, para evitar mal-entendidos.  Por outro lado, ele obedece também a um impulso que lhe diz para ser diferente, inesperado, a fim de que seu título não seja demasiado feijão-com-arroz e passe a imagem de autor pouco criativo. 

Livros práticos precisam ter títulos objetivos.  Se vemos numa lista livros intitulados Manual Prático de Carpintaria, História da Revolução Francesa, Dicionário de Artes Gráficas, etc., nossa tendência é deduzir que o conteúdo corresponde exatamente ao que foi anunciado.

A situação se complica quando obras puramente literárias imitam esses títulos, como fizeram Jorge Luís Borges na sua História Universal da Infâmia ou Richard Brautigan em A Pesca da Truta na América, que são obras de ficção, ou Manoel de Barros com seus livros de poesia intitulados Compêndio para Uso dos Pássaros ou Gramática Expositiva do Chão.  A estranheza no conteúdo já é discretamente anunciada no título, mas muitas vezes essas obras vão parar na estante errada da livraria.

Antigamente, os títulos eram muito mais longos e explícitos do que hoje.  O primeiro livro impresso no Brasil intitulava-se (na grafia da época) Relação da Entrada que fez o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste presente Anno de 1747, havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de sua Magestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta Diocesi.  É um desses títulos que quase tornam supérflua a leitura da obra.

Uma vez, numa mesa de bar, surgiu uma aposta para ver quem achava o título mais curto da literatura brasileira. Todo mundo já ia fechando questão no Eu de Augusto dos Anjos quando alguém lembrou o É... de Millôr Fernandes, que mesmo sendo uma peça teatral ganhou o prêmio (uma rodada de cerveja bebida em sua honra.)

Um título muito esquisito pode ser um sinal de que o conteúdo é mais esquisito ainda.  Se o leitor freqüenta sebos, procure as seguintes raridades, e veja se não tenho razão:

Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros de Gramiro de Matos

729 o Varal Biográfico Embananado de Leopoldo Lima

Uma Vitória Dentro de uma Derrota que não tive: esta Derrota foi a Vitória do meu Livro de José Américo II

Ufa, Ufo! Tem um Disco Voador na Minha Radiola de Max de Figueiredo Portes. 

A literatura de gênero promete (e seus títulos frequentemente refletem isto) a repetição de uma experiência estética, com um mínimo de variação e uma larga base de familiaridade. 

Os livros de Edward S. Aarons sobre Sam Durell, um agente da CIA, têm todos este formato de título: Missão Budapeste, Missão Stella Marni, Missão Lili Lamaris, Missão Ankara... 

Erle Stanley Gardner criou o advogado-detetive Perry Mason, cujas obras obedecem a um mesmo padrão de títulos: O Caso da Lata Vazia, O Caso do Relógio Enterrado, O Caso das Garras de Veludo, etc.  No original em inglês, alguns livros da série usavam o gimmick adicional de repetir a letra inicial das palavras principal do título: The Case of the Borrowed Brunette, The Case of de Grinning Gorilla, The Case of the Spurious Spinster, e assim por diante.

Às vezes, curiosamente, o truque da repetição não vem da obra original, e sim da tradução. Os romances de espionagem da escocesa Helen MacInnes The Salzburg Connection, The Venetian Affair, North from Rome etc. receberam no Brasil os títulos Aconteceu em Salzburg, Aconteceu em Veneza, Aconteceu em Roma e assim por diante. É uma decisão editorial que procura faturar em cima dos livros de maior sucesso da autora, dando-lhes um sentido de “série” mais marcado do que no original.

Títulos assim garantem ao leitor a experiência do “um pouco mais daquilo mesmo”, que é justamente o que ele procura. E, do ponto de vista mercadológico, fornecem aquilo que todo vendedor sonha: uma mercadoria que pode ser identificada numa fração de segundo.

A literatura contemporânea tem valorizado títulos em frases longas, que parecem estar ali por acaso: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios de Marçal Aquino, Agora fiquem esperando pelo ano passado de Philip K. Dick, A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora de Gregório Duvivier, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto de Rubem Fonseca, Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace.

Muitas vezes uma única palavra, uma palavra nova, desconhecida, basta para produzir um título cheio de alusões, de mistério, de atração e de promessa.  Neuromancer de William Gibson; Avalovara de Osman Lins; Valis de Philip K. Dick; PanAmérica de José Agrippino de Paula, etc.  Um título assim tem a vantagem adicional de fazer com que essa palavra emblemática fique para sempre associada ao autor que a inventou ou que primeiro lhe deu visibilidade. 

Muitos livros hoje famosos por um triz não receberam títulos completamente diferentes dos que se consagraram:

O Mundo Cheio de Penas de Graciliano Ramos (Vidas Secas)
Under the Red, White and Blue de F. Scott Fitzgerald (The Great Gatsby)
O Vento e o Tempo de Érico Verissimo (O Tempo e o Vento)
The Dead Un-Dead de Bram Stoker (Dracula)
Melancholia de Jean-Paul Sartre (La Nausée)
The Kingdom by the Sea de Vladimir Nabokov (Lolita)
Mandala de Julio Cortázar (Rayuela)
The Last Man in Europe de George Orwell (1984)
Contos de Guimarães Rosa (Sagarana)
First Impressions de Jane Austen (Pride and Prejudice)
Tomorrow is Another Day de Margaret Mitchell (Gone With the Wind)

Há sempre uma discussão (ociosa, mas interessante) sobre a questão de como teria sido a recepção inicial do livro com o título que foi descartado. Em alguns casos, uma recepção indiferente poderia ter condenado o livro a uma carreira muito diversa da que de fato teve.







segunda-feira, 8 de agosto de 2016

4144) Eu me lembro 9 - Bahia (8.8.2016)




(pátio do ICBA)

Eu me lembro de um dia, no Corredor da Vitória, em que dois carros se cruzaram, indo em direções opostas, e os motoristas pararam para conversar durante um minuto, enquanto as duas filas de carros esperavam atrás deles, sem dar uma buzinada sequer.

Eu me lembro das batidas de fruta do Diolino, no Rio Vermelho.

Eu me lembro de um histórico comício pela redemocratização com Ulysses Guimarães, no Terreiro de Jesus, com a PM dando prensa.

Eu me lembro de uma noite estar tomando cerveja com uma turma e alguém vir nos chamar para assistir “o enterro da cabeça de Corisco”.

Eu me lembro de ir ver um show de Moraes Moreira e a abertura do show era com um tal de Djavan, que eu nunca tinha ouvido falar, mas quando começou eu reconheci umas dez canções que eu não sabia de quem eram.

Eu me lembro de estar várias vezes no Canela ao anoitecer, com sacolas de supermercado, e o ônibus do Engenho Velho de Federação passar com gente pendurada na porta e mesmo assim eu conseguir entrar.

Eu me lembro do angu incubado que eu ia comer toda semana na Cantina da Lua.

Eu me lembro de quando começou pela primeira vez a tocar reggae com-força nas festas do Restaurante Universitário e da Escola de Teatro.

Eu me lembro de um campinho de pelada que tinha no caminho da Rodoviária e que tinha um enorme toco de árvore bem no meio.

Eu me lembro da feijoada na casa de Maria Edna, feita com feijão mulatinho e uns temperos preternaturais, e que eu já comia chorando de saudade.

Eu me lembro das temporadas do “Oxente gente, cordel” no Vila Velha, quando a gente ficava se aprontando no camarim e perguntando o tempo todo à bilheteria se já tinha vendido mais ingressos do que o número de atores da peça (éramos uns quinze).

Eu me lembro de um show certa vez no jardim do ICBA, quando de repente um cara branco, de meia idade, saltou lá para a frente e dançou como se o mundo fosse se acabar, e no fim do show descobrimos que ele era grego.

Eu me lembro de pedir um suco no balcão de uma lanchonete num domingo de tarde e um dos balconistas, encostados num rádio ligado, dizer: “Espera terminar o primeiro tempo”, e eu esperei.

Eu me lembro do Congresso da UNE, onde a multidão votava erguendo na mão a credencial vermelha, e uns espertos erguiam um maço de Hollywood.

Eu me lembro dos atentados do Homem do Canivete, atacando as mulheres de calças justas em plena rua, e eu acabei fazendo um samba.

Eu me lembro da primeira vez em que entrei numa padaria, pedi cinco pães, e o cara perguntou: “Vara ou cacetinho?”.

Eu me lembro do Beco, ao lado do Teatro Castro Alves, onde tinha um bar cujas mesas eram máquinas de costura.

Eu me lembro de passar tardes inteiras estudando cinema na biblioteca Walter da Silveira, perto da Praça da Sé.

Eu me lembro das empresas de Ônibus Vibemsa e Vidusa (“a Duran”).

Eu me lembro de ir com Homero de Carvalho filmar as catadoras de lixo no lixão, e aquele cheiro ficou nas minhas narinas por uma semana.

Eu me lembro das famosas “coletivas musicais” do final dos anos 1970, quando a regra era “duas músicas pra cada um”, e reclamavam que minhas letras eram quilométricas.

Eu me lembro de uma vez estar cantando com violão na calçada do elevador Lacerda, para divulgar uma peça, e João Paulo, ex-artilheiro do Treze, ia passando e parou pra me dar um abraço.

Eu me lembro das doses de cachaça com açúcar e canela na borda do copo, no Quintal do Raso da Catarina, o bar do Franco.

Eu me lembro do caixa de um banco onde fui descontar um cheque nominal e ele observou que estava faltando o “Neto”no meu nome (“Tecnicamente, este cheque é para seu avô”), mas me pagou assim mesmo. Valeu!






quinta-feira, 4 de agosto de 2016

4143) Importe-se com o personagem (4.8.2016)



(ilustração: Neurocomic)

Os norte-americanos são imprescindíveis ao mundo pela sua capacidade de encontrar formas simples para dizer verdades elementares. Os teóricos da complexidade podem dizer o que quiserem sobre os fenômenos psicológicos que ocorrem na mente durante a leitura de um texto de ficção, ou a visão de um filme, mas eles matam a charada numa formulazinha deste tamanho.

A mecânica básica disso, para o pessoal dos EUA, é: “Faça com que o leitor (o espectador) se preocupe com o personagem, se importe com seu destino, se envolva com o que lhe acontece”. É mais ou menos esse o sentido da expressão “to care about the character”. É essa “com + paixão” que a arte quer, esse compartilhamento de paixão com um mero agregado de letras.

O que é uma grande injustiça com o conceito de personagens, o conceito de história de ficção, porque eles não são meros agregados de letras. Os textos, como dizia Damon Knight, são conjuntos de sinais onde deciframos as instruções. As palavras impressas no livro são instruções. A história é o que acontece em nosssa mente durante a leitura delas.

Quem quiser estudar a arte da narrativa (livro, cinema, teatro, HQ, etc.) tem que prestar atenção ao modo como os norte-americanos a praticam. Não é o único modelo, mas é um modelo importante, e é o modelo prevalente em nossa cultura, queiramos ou não.

O modelo de narrativa que os ianques cultivam teve força bastante para botar de pé Hollywood inteira, indústria de quadrinhos e games, vários mercados editoriais, o escambau. A arte popular norte-americana foi e é capaz de criar inumeráveis modelos, reflexos, cenários hipotéticos das relações humanas. Vemos uma porção de manchas pretas sobre superfície branca e aquilo nos evoca memórias que até então talvez nem existissem.

O que faz a gente se importar com um personagem? Talvez esse tipo de empatia precise ser cultivado desde muito cedo, ou seja, o livro ou o filme devem se tornar desde cedo uma parte importante do crescimento imaginativo, fabulatório, do jovem futuro consumidor. Algumas pessoas têm mais empatia do que outras, se envolvem mais, é como se acreditassem de fato que aquelas pessoas existem. São os espectadores que choram nos filmes, etc. A reprodução das imagens foi capaz de, com sua concretude, fazê-los suspender temporariamente não só a descrença, mas a distância.

Podemos dizer que para bem apreciar por dentro, intimamente, o Fantástico, é preciso ter uma suspensão voluntária da descrença; e para apreciar nessa mesma medida o Realismo é necessária uma suspensão voluntária da distância.

É preciso acreditar no personagem. Quanto mais acreditamos, mais essa hipotética “glândula da empatia” nos deixa aparelhados para fabular o outro. Para dialogarmos com o outro – para convivermos na vida real. Mais preparados para imaginar situações vividas pelo outro, para nos colocarmos no lugar do outro. Nem todo mundo é capaz disso. Vemos por aí, o tempo inteiro, pessoas que só pensam no seu próprio umbigo, que não arredam pé do seu centro nem por um segundo, talvez por acharem que fazendo assim desaparecerão como bolha de sabão.

Preocupar-se com um personagem é preocupar-se, em última análise, com alguém que não tem como nos devolver esse favor; é de certa forma o mais altruísta dos sofrimentos.

Em seu livro Sherlock Holmes Was Wrong (2008) o autor e psicanalista Pierre Bayard analisa o movimento generalizado de tristeza e revolta dos leitores das aventuras do detetive quando Conan Doyle contou sua morte em “O Problema Final” (1893). Diz ele:

O que acontece neste caso o faz parecer como se os leitores tivessem estabelecido residência no mundo da ficção e não pudessem ser arrancados de lá senão com um sofrimento insuportável. (...) Existe entre o mundo da ficção e o mundo “real” um mundo intermediário que é único para cada pessoa. (...) O desaparecimento [de Holmes] não apenas privou esses leitores do prazer da leitura. Ele constituiu uma intrusão violenta no seu mundo intermediário, num espaço íntimo onde eles habitam e que faz parte deles. Assim, o que esses leitores experimentam é um sofrimento psíquico autêntico, tornado ainda maior por ser compartilhado com outros leitores.

Um personagem de filme está ali, como no alto de uma tela de drive-in, inexistente mas gigantesco, imaterial mas resplandescente, sem cordas vocais mas tonitruante. É a tela, é a bola de cristal retangular e luminosa onde se lê o passado, o presente e o futuro das classes médias do mundo inteiro. São os fantasmas de Hollywood, do Monte Olimpo eletrônico-digital, o panteão de heróis, semideuses e titãs, só que agora produzidos em escala industrial por equipes de roteiristas assalariados.

Nas oficinas literárias, nos cursos de escrita criativa, nas guidelines fornecidas pelas revistas de FC aos candidatos a autor, nos manuais, nos guias, nos passo-a-passos de auto-ajuda profissional, esse mantra sempre retorna: “Faça o leitor se preocupar com o que acontece com seus personagens”. E funciona. Mesmo eu, que imagino ler mais por prazeres estilísticos ou para comparações teóricas, de vez em quando sou agarrado por um conto, uma série de TV, um quadrinho, um curta no YouTube, um romance antiquado – simplesmente porque acreditei nos personagens e agora vou ter que ver até o fim, porque estou angustiado ou curioso, e não quero ir embora sem saber se A conseguiu tirar o marido da cadeia, se B deu um jeito de escapar daquele acidente, se C estava mesmo dizendo a verdade a D, se E vai descobrir o criminoso...

Em alguns casos existe um envolvimento simbólico. Digamos que eu sou nordestino, então o personagem nordestino X ou Y “me representaria”. Mas nem é isso. É antes o poder da narração em si, do momento vivido pelo leitor. Esse momento é mais poderoso até do que conceitos de classe, de simbolismo social, etc., a não ser naquelas pessoas que fazem disso uma prioridade absoluta.

Numa pessoa comum, é aquilo que Hitchcock sabia usar como ninguém, e que nos fazia torcer pelo vilão no momento de maior suspense. É aquilo a que Raymond Chandler se referia ao dizer que a visão da imaginação emotiva é curta mas é intensa. Essa intensidade faz com que o parágrafo que estamos lendo seja mais real do que o resto do livro. Se ele nos arrebata, não adianta a Voz da Razão ficar lá atrás dizendo: “Isso é mentira, viu? Não aconteceu não...”

A narrativa é sempre uma experiência vicária, é algo que estamos conhecendo apenas com a mente, que depende de nossa imaginação visual, de nossa capacidade de engendrar ambientes e situações.

Imaginação, memória e emoção são vasos comunicantes. Se somos capazes de sentir uma breve emoção humana por um personagem, isso quer dizer que não somos totalmente insensíveis. Já ouvi pessoas dizendo que se emocionavam com livros porque no livro ele tinha certeza que o personagem estava dizendo a verdade, e isso na vida real é geralmente impossível, em se tratando de sentimentos íntimos, inacessíveis, pessoais. Fantasiar emoções por meio dos personagens, numa história que nos explica com clareza os fatos, nos ajuda a projetar sentido na vida real, que nada nos explica. Nem explicará.





terça-feira, 2 de agosto de 2016

4142) A alma e o corpo do cordel (2.8.2016)





Minha relação com o cordel é primeiro que tudo uma relação de leitor e de poeta. O interesse de estudar a fundo, de pesquisar a história, de saber quem eram os poetas, como era o mercado editorial onde o cordel surgiu – tudo isto veio muito depois.

Os folhetos de cordel eram cantados por minha mãe, quando éramos pequenos. Meu pai, que escrevia sonetos e versos em geral, me ensinou ainda muito cedo as regras de métrica, rima, estrofe, aplicáveis a todos os gêneros. Nada disso era “estudo”. Recitar versos, lá em casa, era algo como contar anedotas, ou contar histórias na hora de dormir. Fazia parte das relações do dia a dia.

Um pesquisador acadêmico se surpreende às vezes com o modo como poetas populares que não sabem ler nem escrever (um número cada vez menor, porque a cada geração aumenta o grau de escolaridade dos poetas) metrificam impecavelmente, “sem nem saber explicar o que é uma sílaba”.

Quem precisa saber o que é uma sílaba, para ser poeta? Quem precisa saber o nome de uma nota musical, para cantá-la?

É um erro comum entre as pessoas que não têm o hábito de falar poesia em voz alta, e de ouvir poesia. Ninguém precisa saber contar sílabas em poesia. O poeta obedece a uma cadência, e o ouvinte o acompanha. Contar sílabas vem depois (eu faço isso o tempo todo, porque me dá prazer).

O cordel é primeiro que tudo uma literatura oral, uma das “literaturas da voz” cuja importância vem sendo recuperada nas últimas décadas por pesquisadores como Paul Zumthor, sem falar em pesquisas antigas e cruciais como as de Alfred B. Lord e outros, que investigaram os métodos e o material dos rapsodos da Europa Oriental. O cordel é feito para ser recitado em voz alta, em grupo, não para ser lido a sós e em silêncio.

Comparo um folheto de cordel a um livro com uma peça teatral, um livro comprado na livraria: Macbeth de Shakespeare ou o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. É um livro? É, mas não foi feito para ser lido como um livro comum de versos ou como um romance. Foi feito para ser dito em voz alta diante de pessoas atentas que escutam.

O texto que aparece impresso é apenas um meio, uma mídia, uma tática para preservar e passar adiante algo que só existe de verdade quando é produzido pelas cordas vocais de A e atinge os tímpanos dos ouvidos de B.

É preciso lembrar que uma coisa é o texto literário, e outra coisa é o suporte físico através do qual acessamos esse texto.

Chamamos de “literatura de cordel” todo esse corpo literário publicado nos folhetinhos de feira, de papel-jornal, 11 centímetros por 16, em formatos básicos de 8, 16 ou 32 páginas, com xilogravura na capa.

Mas eu posso publicar, num folheto assim, até mesmo uma obra em prosa: um conto de Hemingway. Ou um trecho de um romance de Marcel Proust. Ou um discurso de Juscelino Kubitschek. Ou um editorial do saudoso “Diário da Borborema”. Ou uma propaganda de Biotônico Fontoura.  Tudo isso cabe num folheto. Isso é literatura de cordel?

“Literatura de cordel” é uma descrição editorial, não literária. Descreve um estilo de publicação, um formato gráfico e nada mais. Tecnicamente, é como dizer “livro de bolso”, ou como dizer “volume em papel couché, encadernado, lombada gravada a ouro”. Diz tudo sobre a aparência, nada sobre o conteúdo.

Geralmente confundimos duas coisas importantíssimas: um formato gráfico a que chamamos “folheto de cordel”ou “folheto de feira”, e um corpo de obras poéticas que poderíamos chamar, como sugeriu Ariano Suassuna, de Romanceiro Popular Nordestino.

Os dois “se casaram”desde a década de 1890 quando Leandro Gomes de Barros, no Recife, começou a publicar nos folhetos os poemas do Romanceiro que ele próprio escrevia. Os dois já existiam. Folhetos eram publicados em Portugal e vendidos no Brasil há muitíssimo tempo. Personagens de Machado de Assis compram folhetos da Princesa Magalona na calçada do Rio de Janeiro (releiam “Uns braços”, ambientado em 1870).

Quanto aos poemas do Romanceiro, antes do folheto eles eram copiados à mão, fartamente, repetitivamente, prazerosamente, naquele século 19 em que não havia à disposição dos poetas impressoras, xerox, mimeógrafo, fotografia, nada, nada, nada – havia apenas moças de letra bonita que preenchiam suas longas noites de ócio e cativeiro doméstico, à luz de lampiões, orgulhosamente e caprichadamente copiando tudo que lhes davam para reproduzir: poemas, salmos e orações, receitas culinárias.

Essas cópias manuscritas eram o que Manuel Diegues Jr. chamou de “versos de traslado”. Era assim que iam passando de mão em mão e de família em família as produções poéticas daquele tempo. Os copistas especializados não existiam apenas nos mosteiros medievais. Copistas existiram onde quer que houvesse a necessidade de preservar e difundir, antes do acesso à imprensa, textos de qualquer natureza.

Foi só no fim do século 19, com Leandro, que esses versos chegaram ao folheto. Porque folhetos já existiam, e não só em Portugal. Havia a littérature de colportage da França, os pliegos sueltos da Espanha, os chapbooks da Inglaterra e por aí vai. O mesmo fenômeno editorial do cordel brasileiro: o livro para o editor que não pode publicar livros e para o leitor que não pode comprá-los. O livro vagabundo, no melhor sentido do termo: livre, errante, solto, produto invisível da economia informal. O livro dos que não têm direito ao livro.

Para usar uma metáfora bem no espírito leândrico, o Romanceiro é a alma, o folheto-de-cordel é o corpo. Como todo corpo, é uma reencarnação provisória. Os corpos passam, o espírito vai em frente. Se temos hoje acesso às tragédias gregas e aos poemas romanos, não é apenas porque alguns espécimens dos seus corpos originais foram salvos nos museus. É porque foram transpostos para outras línguas, outros formatos.

Hoje, grande parte do que um dia já foi papiro ou pergaminho está gravado em pendraives, em agadês, em nuvens.  São novas encarnações para textos que (cruzemos os dedos) não morrerão jamais.

Daqui a cem anos, caso nossa civilização sobreviva, estaremos lendo desde a Chegada de Lampião no Inferno de José Pacheco até a Divina Comédia de Dante Alighieri em formatos físicos que seus autores jamais imaginariam. Hologramas quânticos, implantes semióticos, écrans-de-contato, recitação por sintetizadores? Não importa: serão novos corpos para prolongar a vida desses espíritos feitos de palavra.

No princípio (antes de existirem tinta, pena, papel) era o Verbo. A palavra poética, “gritada à queima-pele”.  No fim, também será.