Meu nome é Sonntag, e sou
bombeiro. Meu pai o foi também, e queimou muitos livros. Quando começou a
salvá-los às escondidas, foi descoberto e morto pelas forças de segurança.
Cresci ouvindo este exemplo ameaçador. Tornei-me bombeiro para conhecer essas
obras proibidas, mesmo correndo o risco de ser executado. Enganava-me. Hoje em
dia o Sistema balança, racha-se em fendas; a corrupção impera. Encontram-se
livros à venda nos mercados negros de armas, de próteses, de venenos.
Minhas
leituras fervorosas e às escondidas são alimentadas por essa rede escusa de
delinquentes, que fervilha nas favelas, nas ruínas ocupadas, nos casebres de
beira-rio. Não se consegue saber de onde extraem esses tesouros.
Há boatos sobre bibliotecas
soterradas, mas a verdade é que livros já não são impressos há mais de dois
séculos. O papel é descartável, perecível. Cada exemplar merece ser preservado,
porque tudo que está impresso é precioso. O que foi confiado ao papel constitui
o esqueleto, a estrutura da existência humana; os pixels coloridos da TV são
mera distração ou adorno.
Daí que cada folha impressa valha uma pequena
fortuna: trechos de romances dos quais não sabemos título nem autoria, mas que
por isso mesmo tornam-se mais cheios de mistério e de valor. Não direi que
entendo tudo que leio, mas nesses momentos sinto-me compartilhando um ritual
místico de transcendência, ainda que numa língua que me é desconhecida.
Muito ouvi falar em
Shakespeare; para mim, são onze páginas arrancadas não sei de onde e costuradas
umas às outras, pelas quais paguei uma pequena fortuna, no meu tempo de
estudante.
Tornei-me bombeiro e aumentei meu capital. Em menos de dois meses na
corporação reuni exemplares completos de obras como “Meu Nome é uma Bala”,
“Férias de Amor”, “Apólogos Edificantes”, “As Libertinas”, “Anais da Câmara de
Vereadores”. Tornei-me capitão, e entrei para um grupo de jovens oficiais
progressistas que lutam discretamente pelo fim do banimento.
Visados pelo Governo, temos que
dobrar nossas precauções para que não encontrem nossos tesouros. Compro tudo
que me aparece pela frente. Somente nesta semana um traficante vendeu-me vinte
páginas de um livro do célebre Nabokov, a história marítima da caça a uma
baleia; outro, um conto de Baudelaire intitulado “O poço e o pêndulo”; de um
terceiro adquiri sonetos de Homero.
Nomes que evocam memórias de um tempo
mítico em que a cultura era acessível a todos. Tesouros que guardo num cofre por
trás de uma parede secreta, feliz em saber que por mais que as ditaduras
massacrem a cultura e o saber não há como destruir as grandes obras do
pensamento humano.