(ilustração: Luhan Dias)
“Substância”, o décimo-nono conto do livro Primeiras Estórias (1962; 3ª. edição) de Guimarães Rosa, é uma experiência interessante de conto com um foco único. Como se fosse um quadro, uma pintura, com uma imagem centralizada – e outros elementos irradiando-se a partir dela. Um quadro que é possível apreender com a visão, de golpe, num instante, e depois examinar os detalhes.
“Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes. (p. 152)“Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com efeito...” (p. 152)“Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu” (p. 152)“Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinhos fechados.” (p. 152)“Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos – olhos desses, de outra luminosidade.” (p. 153)“Sua beleza, donde vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão do olhar – doçuras. Se um sorriso; artes como de um descer de anjos.” (p. 153)“Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e de ninguém. Nela homem nenhum tocava.” (p. 154)“Servia o polvilho – a ardente espécie singular, secura límpida, material arenoso.” (p. 154)“Os raios reflexos, que os olhos de Sionésio não podiam suportar, machucados, tanto valesse olhar para o céu e encarar o próprio sol.” (p. 155)“Entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol.” (p. 156)“Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?” (p. 156)
Guimarães Rosa disse, no Grande Sertão, que viver é rasgar-se e remendar-se. Na mesma toada
podemos sugerir que escrever é plantar, colher, moer e purificar. Como Rosa era
notoriamente um estudioso do hermetismo e das ciências ocultas, não há como não
ver no conto alusões alquímicas ao processo de transmutação da matéria, onde
ocorre a fase do albedo, que
corresponde à purificação e decantação da matéria, atingindo pura
espiritualidade.
Primeiras Estórias
é todo composto de histórias assim, e sem dúvida assustou os leitores acostumados
com as obras anteriores. Este livro ganhou um formato-de-conto que Rosa não
tinha explorado até então. Os contos de Sagarana
(1946) são contos longos e largos, que se expandem como um rio correndo
devagar, sem pressa de chegar a lugar nenhum. Contos com 30 ou 40 páginas, e
até mais.
Esse formato se expandiu ainda mais nas 7 noveletas que
compõem Corpo de Baile (1956).
A prosa torrencial do Grande
Sertão: Veredas (1956) é o ponto máximo dessa exuberância narrativa de quem
tem muito o que dizer e quer dizê-lo vastamente.
O grande ponto de inflexão na vida e na obra de J. G.
Rosa, a grande “virada de esquina” em sua vida é justamente no período entre
1956 (publicação de Corpo de Baile e
de Grande Sertão) e 1962 (publicação
de Primeiras Estórias).
São os anos da fama, da consagração e da polêmica, e anos
de trabalho intenso no Itamaraty. O tempo escasseia, os contos encolhem. A
profusão de histórias para contar é a mesma, mas diminuiu o tempo que ele pode
dedicar à literatura, e o tempo de vida que sente ter pela frente. Rosa era
cardíaco, fumante compulsivo, e dizia: “Eu sou médico, e sei muito bem qual é a
minha condição de saúde.”
Ele passou a publicar uma página semanal em O Globo – bem remunerada, certamente – num
espaço com tamanho mais ou menos fixo. Daí que os contos de Primeiras Estórias, que é a reunião
desse material em livro, tenham todos aproximadamente a mesma extensão.
Algo parecido ocorreria depois com seu último livro, Tutaméia (1967), cujos contos tiveram primeira
publicação numa revista médica (Pulso,
RJ) e têm um tamanho-padrão ainda mais curto.
Rosa era um ficcionista “fractal”: cada história sua
contém muitas outras histórias incrustadas. Na reta final da carreira, foi
obrigado a concentrar seu foco criativo num espaço de texto mais estreito e
mais intenso. O que era arco-íris concentrou-se em raio laser.
A vida dá o tom do trabalho, impõe um ritmo e um formato.
Rosa é um estressado, apesar do permanente bom humor. É um consciencioso, um
perfeccionista, um “perseguidor” também – no sentido cortazariano do termo, do
artista que não sabe direito o que está criando enquanto não o cria e o
contempla.
Aproveitando a referência a Julio Cortázar, podemos dizer
que em Primeiras Estórias e em Tutaméia Guimarães Rosa se dedicou a
vencer o embate com o leitor por nocaute, e não por pontos. Adotou, por conta
própria, a fórmula do autor argentino, adepto do conto uni-direcional, do
conto-flecha, do conto que é disparado e leva o leitor consigo como um
trem-bala.
É o contrário, por exemplo, dos contos de Sagarana, que eram contos-caravana,
histórias que têm um destino mas abominam a linha reta, preferem o caminho tortuoso
de quem se desvia para abastecer num oásis, visitar um vilarejo, evitar uma
tempestade.