segunda-feira, 15 de maio de 2023

4942) O erro traz uma idéia (15.5.2023)



(Brian Eno)
 
O erro é um parceiro, não um inimigo. O músico Brian Eno já preconizava: “Valorize seu erro, trate-o como se fosse uma intenção oculta”.
 
Estou eu agora à noite procurando um livro qualquer em minhas estantes. Olhando numa prateleira lá no alto, avisto uma lombada com o título O Diário da Ratazana
 
Muitos septuagenários se queixam da miopia crescente. Eu não me queixo. Para mim, é uma janela-aberta-número-dois, trazendo-me idéias que não me ocorreriam de outro modo. Porque ao estender o braço e puxar o volume misterioso... é apenas O Desatino da Rapaziada, o saboroso memorial histórico de Humberto Werneck sobre a literatura mineira da primeira banda do século passado. 
 
Aqui neste blog eu volto de vez em quando a este tema: uma frase é entendida erradamente, e acaba resultando numa frase completamente outra. 
 
Um exercício constante, praticado desde os meus dezoito anos, é o do “erro proposital”. Produzir uma frase surrealista a partir da sonoridade ou da grafia de uma frase banal. Inspiração de André Breton e de Raymond Roussel. 
 
Pego, por exemplo, a frase inicial deste artigo, “o erro é um parceiro”. Basta uma pequena torção para transformá-la em “o Eros é um pacote”. Juro: nunca pensei nessa frase antes. E ela significa o quê? Bem, freudianamente poderíamos dizer: o impulso erótico humano não é um mero detalhe, é um pacote inteiro. Ou você aceita seu erotismo (sua sexualidade pessoal) com tudo que ela inclui, necessita e acarreta... ou então vá pastar. 
 
Posso fazer o mesmo com uma frase de logo depois: “o músico Brian Eno já preconizava”. Isto pode me render o quê? Vejamos: “o mágico Billy The Kid já procrastinava”. Sim, posso deixá-la assim, meio surrealista, meio selvagem de sentido. Mas posso escavacar um pouco em busca de algum grão de história. 



 
Digamos um mágico de salão, como no filme O Grande Truque (“The Prestige”), de Christopher Nolan. Seu grande número é vestir-se de cowboy e duelar com um assistente em pleno palco. O truque é encenar esse duelo-de-faroeste e na hora de sacar as armas os dois sacam igual, atiram igual... e as balas se chocam em pleno ar! 
 
Terminado o número, o espectador mais incrédulo é chamado ao palco para recolher as duas balas, amassadas uma de encontro à outra, e ainda quentes do disparo. 
 
Todo o número é filmado do palco, de vários ângulos, e depois a imagem é passada em câmara lenta no telão: vemos as balas se chocando, tendo ao fundo a platéia ali presente (isto elimina a hipótese de imagem pré-gravada). 
 
Nosso Mágico, entretanto, está passando por uma crise.  Digamos que (o leitor sempre aprecia um pequeno e confortável elemento de melodrama) justamente esse seu Assistente está tendo um caso com a esposa dele, e o Mágico é ciumentíssimo, possessivo, feroz. 
 
Ao apresentar no palco esse número, o Mágico o faz preceder por um black-out no teatro, e as luzes voltam a se acender muito lentamente, ao som de uma trilha sonora bem morricone, com guitarras plangentes, vigorosos assobios. 



Ele e o Assistente emergem de extremos opostos do palco, vestidos a caráter. O Mágico costuma, nas apresentações rotineiras, contar ali a história de um homem cujos pais foram mortos por um pistoleiro. O menino cresceu treinando a arte do saque, da pontaria, do disparo.  E agora, depois de adulto, ele finalmente localizou, escondido num rancho em Abilene ou em Tombstone, o assassino de sua família. 
 
E aí ocorre o confronto entre os dois, separados por uns dez metros de palco, aquele silêncio insuportável (a música é bruscamente cortada) enquanto os dois se encaram, olho no olho. 
 
Antes, o Mágico mencionou meio casualmente à platéia a regra básica do duelo do faroeste: se “A” sacar primeiro e matar “B”, é condenado à forca por homicídio; mas se “A” sacar primeiro (configurando a agressão) e “B” sacar depois e conseguir matá-lo, isto será visto como legítima defesa. 
 
A arte, portanto, está em deixar o outro sacar primeiro, sacar depois, acertar antes. 
 
Ora; o número do Mágico é famoso na cidade, a imprensa já derramou rios de tinta a respeito. E os tablóides de fofocas têm divulgado, insistentemente, de umas semanas para cá, os passeios aparentemente inocentes onde as câmeras registram os abraços, os sorrisos, e os momentos olho-no-olho entre o Assistente e a Esposa do Mágico. 
 
Todo mundo já sabe: o Mágico está sabendo. E todo mundo ali comprou ingresso excitado, tenso, na expectativa do que pode acontecer. Do que certamente vai acontecer. 
 
Por isso, nessa noite de sábado, com o teatro botando gente pelo ladrão, o Mágico inicia o número (enquanto o Assistente, paramentado de pistoleiro, já o aguarda na outra ponta do palco) recontando o texto-padrão da morte dos pais, etc., mas nesta noite ele adiciona um elemento a mais. 
 
Ele afirma: esse vilão não apenas matou seus pais, mas roubou o amor da sua mulher, da única paixão de sua vida. E começa a descrever a sordidez desse adultério por baixo de sete capas, dessa dupla traição, a da Mulher Amada e a do Melhor Amigo. 
 
A platéia se remexe, inquieta, não suporta mais o nervosismo. 
 
E o Mágico fala, fala, fala incansavelmente. Passam-se minutos, passa-se meia hora, uma hora de tensão incontida em plano palco. Senhoras desmaiam, e ele falando. Homens impacientes protestam em voz alta e se retiram. Gaiatos apupam da fileira do fundo. E ele falando. 
 
Ele fala, fala, remexe os detalhes sórdidos daquela traição, descreve as patifarias praticadas pelo casal de judas quando a sós no motel. Bolas de papel chovem sobre o palco, chapéus, sapatos. A vaia começa a se alastrar. E o Mágico fala, fala como um tatarana, fala como um iauaretê, fala como um mister-smith qualquer resolvido a filibusterizar o teatro, a cidade, o mundo inteiro até se sentir em condições de travar o combate final, um combate “belo como o encontro de uma bala de revólver com um coração sobre o palco de um teatro”. 

Ufa.

Vejam como o Surrealismo é útil como fator desencadeante! Fui dar um simples exemplo aleatório, mexendo numa frase randômica; e o exemplo virou um conto. Um continho, um contito, reconheço, mas mesmo assim uma situação interessante, na qual devo ambientação e personagens a Christopher Priest (autor do livro The Prestige, fonte do filme de Nolan), e à técnica narrativa (chamo-a de “presente indireto”) onde a gente narra no presente, de forma sintética, distanciada, sem descer a detalhes, um fato fictício supostamente passado. Técnica na qual Roberto Bolaño (que eu estava lendo hoje de tarde) é um mestre consumado, tendo-a aprendido, é claro, com Jorge Luís Borges, o qual por sua vez deve tê-la estudado nas sagas norueguesas, sei lá onde. 
 
E por enquanto, é isto – agora tenho que ver como vou me virar com O Diário da Ratazana.