(Brian Eno)
O erro é um parceiro, não um inimigo. O músico Brian Eno
já preconizava: “Valorize seu erro, trate-o como se fosse uma intenção oculta”.
Estou eu agora à noite procurando um livro qualquer em
minhas estantes. Olhando numa prateleira lá no alto, avisto uma lombada com o
título O Diário da Ratazana.
Muitos septuagenários se queixam da miopia crescente. Eu
não me queixo. Para mim, é uma janela-aberta-número-dois, trazendo-me idéias
que não me ocorreriam de outro modo. Porque ao estender o braço e puxar o
volume misterioso... é apenas O Desatino
da Rapaziada, o saboroso memorial histórico de Humberto Werneck sobre a
literatura mineira da primeira banda do século passado.
Aqui neste blog eu volto de vez em quando a este tema:
uma frase é entendida erradamente, e acaba resultando numa frase completamente outra.
Um exercício constante, praticado desde os meus dezoito
anos, é o do “erro proposital”. Produzir uma frase surrealista a partir da
sonoridade ou da grafia de uma frase banal. Inspiração de André Breton e de
Raymond Roussel.
Pego, por exemplo, a frase inicial deste artigo, “o erro
é um parceiro”. Basta uma pequena torção para transformá-la em “o Eros é um
pacote”. Juro: nunca pensei nessa frase antes. E ela significa o quê? Bem, freudianamente
poderíamos dizer: o impulso erótico humano não é um mero detalhe, é um pacote
inteiro. Ou você aceita seu erotismo (sua sexualidade pessoal) com tudo que ela
inclui, necessita e acarreta... ou então vá pastar.
Posso fazer o mesmo com uma frase de logo depois: “o
músico Brian Eno já preconizava”. Isto pode me render o quê? Vejamos: “o mágico
Billy The Kid já procrastinava”. Sim, posso deixá-la assim, meio surrealista,
meio selvagem de sentido. Mas posso escavacar um pouco em busca de algum grão
de história.
Digamos um mágico de salão, como no filme O Grande Truque (“The Prestige”), de
Christopher Nolan. Seu grande número é vestir-se de cowboy e duelar com um
assistente em pleno palco. O truque é encenar esse duelo-de-faroeste e na hora
de sacar as armas os dois sacam igual, atiram igual... e as balas se chocam em
pleno ar!
Terminado o número, o espectador mais incrédulo é chamado
ao palco para recolher as duas balas, amassadas uma de encontro à outra, e
ainda quentes do disparo.
Todo o número é filmado do palco, de vários ângulos, e
depois a imagem é passada em câmara lenta no telão: vemos as balas se chocando,
tendo ao fundo a platéia ali presente (isto elimina a hipótese de imagem
pré-gravada).
Nosso Mágico, entretanto, está passando por uma
crise. Digamos que (o leitor sempre
aprecia um pequeno e confortável elemento de melodrama) justamente esse seu
Assistente está tendo um caso com a esposa dele, e o Mágico é ciumentíssimo,
possessivo, feroz.
Ao apresentar no palco esse número, o Mágico o faz
preceder por um black-out no teatro, e as luzes voltam a se acender muito
lentamente, ao som de uma trilha sonora bem morricone, com guitarras plangentes,
vigorosos assobios.
Ele e o Assistente emergem de extremos opostos do palco,
vestidos a caráter. O Mágico costuma, nas apresentações rotineiras, contar ali
a história de um homem cujos pais foram mortos por um pistoleiro. O menino
cresceu treinando a arte do saque, da pontaria, do disparo. E agora, depois de adulto, ele finalmente
localizou, escondido num rancho em Abilene ou em Tombstone, o assassino de sua
família.
E aí ocorre o confronto entre os dois, separados por uns
dez metros de palco, aquele silêncio insuportável (a música é bruscamente
cortada) enquanto os dois se encaram, olho no olho.
Antes, o Mágico mencionou meio casualmente à platéia a
regra básica do duelo do faroeste: se “A” sacar primeiro e matar “B”, é
condenado à forca por homicídio; mas se “A” sacar primeiro (configurando a
agressão) e “B” sacar depois e conseguir matá-lo, isto será visto como legítima
defesa.
A arte, portanto, está em deixar o outro sacar primeiro,
sacar depois, acertar antes.
Ora; o número do Mágico é famoso na cidade, a imprensa já
derramou rios de tinta a respeito. E os tablóides de fofocas têm divulgado,
insistentemente, de umas semanas para cá, os passeios aparentemente inocentes onde
as câmeras registram os abraços, os sorrisos, e os momentos olho-no-olho entre
o Assistente e a Esposa do Mágico.
Todo mundo já sabe: o Mágico está sabendo. E todo mundo ali
comprou ingresso excitado, tenso, na expectativa do que pode acontecer. Do que certamente vai acontecer.
Por isso, nessa noite de sábado, com o teatro botando
gente pelo ladrão, o Mágico inicia o número (enquanto o Assistente, paramentado
de pistoleiro, já o aguarda na outra ponta do palco) recontando o texto-padrão
da morte dos pais, etc., mas nesta noite ele adiciona um elemento a mais.
Ele afirma: esse vilão não apenas matou seus pais, mas
roubou o amor da sua mulher, da única paixão de sua vida. E começa a descrever
a sordidez desse adultério por baixo de sete capas, dessa dupla traição, a da
Mulher Amada e a do Melhor Amigo.
A platéia se remexe, inquieta, não suporta mais o
nervosismo.
E o Mágico fala, fala, fala incansavelmente. Passam-se
minutos, passa-se meia hora, uma hora de tensão incontida em plano palco.
Senhoras desmaiam, e ele falando. Homens impacientes protestam em voz alta e se
retiram. Gaiatos apupam da fileira do fundo. E ele falando.
Ele fala, fala, remexe os detalhes sórdidos daquela
traição, descreve as patifarias praticadas pelo casal de judas quando a sós no
motel. Bolas de papel chovem sobre o palco, chapéus, sapatos. A vaia começa a
se alastrar. E o Mágico fala, fala como um tatarana, fala como um iauaretê,
fala como um mister-smith qualquer resolvido a filibusterizar o teatro, a
cidade, o mundo inteiro até se sentir em condições de travar o combate final, um
combate “belo como o encontro de uma bala de revólver com um coração sobre o
palco de um teatro”.
Ufa.
Vejam como o Surrealismo é útil como fator desencadeante!
Fui dar um simples exemplo aleatório, mexendo numa frase randômica; e o exemplo
virou um conto. Um continho, um contito, reconheço, mas mesmo assim uma
situação interessante, na qual devo ambientação e personagens a Christopher
Priest (autor do livro The Prestige, fonte
do filme de Nolan), e à técnica narrativa (chamo-a de “presente indireto”) onde
a gente narra no presente, de forma sintética, distanciada, sem descer a
detalhes, um fato fictício supostamente passado. Técnica na qual Roberto
Bolaño (que eu estava lendo hoje de tarde) é um mestre consumado, tendo-a
aprendido, é claro, com Jorge Luís Borges, o qual por sua vez deve tê-la estudado
nas sagas norueguesas, sei lá onde.
E por enquanto, é isto – agora tenho que ver como vou me
virar com O Diário da Ratazana.