domingo, 8 de setembro de 2013

3286) As fases de Saturnino (8.9.2013)




Na infância, Saturnino teve um momento em que, onde estivesse, agia como uma antena capaz de dissipar tanto a formação de trovoadas quanto a de discussões. Fazendo uma pergunta a um, interrompendo outros, pedindo algo a um terceiro. Bastava-lhe isso para controlar a quantidade de luz que vinha do céu e (uma frase que ele leu uma vez numa revista) “o clamor furioso dos elementos”. Ou seja, para evitar que festas degenerassem em confrontos, discussões regredissem a sopapos.

Depois Saturnino teve um período em que desacertou o passo com o planeta. O emprego que arranjou na oficina gráfica de um jornal (daqui a pouco vai ser preciso explicar o que é isso) exigia que ele pegasse à meia-noite e largasse às oito da manhã, com meia hora para almoço. Seu dia passou a ser assim: acordar, ver o por-do-sol, a noite, a madrugada, o nascer-do-sol, ir pra casa, sono até o próximo entardecer. Ele fazia cálculos permanentes, como um turista no estrangeiro convertendo moedas em cada transação que faz ou que planeja.

Até Picasso teve um período azul, de modo que Saturnino teve uma fase decadente. Decadentismo sofisticado, carregado de ideologia e de floreios literários. Experimentou de tudo, riscou cada nome numa lista de muitas páginas. Encenou bacanais de cem pessoas, num palácio da costa de Dubai. (Se bem que o decadentismo de Saturnino nunca pisou descalço o asfalto quente dos fatos: as descrições acima são colhidas nos palavrosos diários que manteve durante essa época, quando tentou escrever contos em francês.)

Veio por fim uma coisa que ele, anos depois, iria chamar O Borrão. Uma coisa sem forma, que cada vez que era lembrada era distorcida e adulterada, e carimbada assim ao ser guardada de novo. O Borrão foi um período de oito ou dez anos subsequentes ao anterior. “Nada aconteceu”, disse ele depois numa entrevista, “a não ser que eu fiquei vivo cada minuto desses anos.”

Depois do Borrão (diz seu primeiro biógrafo) veio um período que para Saturnino não é nada especial, mas ele, o biógrafo, chama A Avataridade. É a condição das pessoas capazes de deixar atrás de si uma figura, uma fisionomia, um jeito de andar e de falar, um jeito talvez de vestir, ou de que forma se divertir, ou se amar. Antigamente perguntava-se se o cinema tinha alma. Hoje pergunta-se: Saturnino é uma pessoa, é uma sucessão de pessoas, é uma sucessão de personagens? Ele é como as megaestrelas pop, os políticos confraternizadores e dionisíacos, os rostos da publicidade ou do talk-show  - os quais são avatares, sims, com uma vida mais rasa mas com maior perspectiva de permanência a longuíssimo prazo do que a carne fraca que os criou.

3285) Pedro Cancha (7.9.2013)



Um dos melhores filmes do recente VIII Comunicurtas, em Campina Grande, foi o documentário de Luciano Mariz, Cancha – antigamente era mais moderno, sobre uma das figuras mais lendárias de Campina, Pedro Souto Guimarães, o famoso “Pedro Cancha”. É um documentário que mergulha sem receio no mundo do personagem, dando-lhe asas para voar na própria imaginação, além de ter um equilíbrio de alta qualidade em direção de arte, fotografia, iluminação, edição.

Em 1967, o costureiro recifense Marcílio Campos sugeriu que num clima tropical o uso do saiote seria uma boa opção para os homens – mais arejado, mais higiênico. (E, como cantou Luiz Gonzaga sobre a minissaia feminina, “facilita”.) Uma teoria que já tinha sido defendida por Gilberto Freyre e por Flávio de Carvalho (que em 1956 desfilou de saiote pelas ruas de São Paulo). A matéria deu o que falar em Campina, mas o episódio modernista/paulista andava esquecido. A turma do Calçadão propôs: E se a gente saísse na frente, com alguém usando isso? Campina, como se sabe, sente-se na obrigação de estar sempre na vanguarda de tudo.

O problema é que precisavam de um voluntário para usar a indumentária, e quem teria coragem? Alguém lembrou de Pedro Cancha, que morava em Zé Pinheiro e era dono do cabelo mais comprido da cidade, numa época em que cabeludo era insultado e escarnecido nas ruas (eu mesmo o fui, inúmeras vezes), e mesmo apedrejado e perseguido. Pedro Cancha era rude, brabo, musculoso, e tinha um cabelo maior do que o de Benito de Paula. Foi procurado. Topou. Alguém correu em casa e trouxe um saiote da mulher ou da filha. Levaram Pedro para a escada da redação do “Diário da Borborema” (onde eu trabalhava). Fotografaram-no em “contre-plongée”, de baixo para cima (a foto está no filme).

No dia seguinte o jornal saiu com a foto de Cancha na capa, e esgotou edições sucessivas. Mais uma vez, Campina se equiparava às grandes capitais! Foi organizado um desfile em carro aberto pela Maciel Pinheiro, diante de uma multidão dividida (como toda multidão) entre o aplauso entusiasmado e a vaia rancorosa. Pedro, de saiote, em pé no carro, gritava: “Juventude campinense! O mundo está mudando! Viva a liberdade!”. Algo assim.

Vieram novos tempos e novas modas, e o assunto foi morrendo. Em 1997, trinta anos depois do histórico desfile, Rômulo Azevedo fez uma reportagem de TV sobre o fato, e redescobriu Pedro Cancha, ainda morando em algum lugar remoto de Campina Grande. Recordaram o fato, comentaram, e por fim Rômulo perguntou o que ele achava do “mundo de hoje”, tantos anos depois. E Pedro Cancha respondeu, desalentado: “O passado era mais moderno”.