Na infância, Saturnino teve um momento em que, onde
estivesse, agia como uma antena capaz de dissipar tanto a formação de trovoadas
quanto a de discussões. Fazendo uma pergunta a um, interrompendo outros,
pedindo algo a um terceiro. Bastava-lhe isso para controlar a quantidade de luz
que vinha do céu e (uma frase que ele leu uma vez numa revista) “o clamor
furioso dos elementos”. Ou seja, para evitar que festas degenerassem em
confrontos, discussões regredissem a sopapos.
Depois Saturnino teve um período em que desacertou o passo
com o planeta. O emprego que arranjou na oficina gráfica de um jornal (daqui a
pouco vai ser preciso explicar o que é isso) exigia que ele pegasse à
meia-noite e largasse às oito da manhã, com meia hora para almoço. Seu dia
passou a ser assim: acordar, ver o por-do-sol, a noite, a madrugada, o
nascer-do-sol, ir pra casa, sono até o próximo entardecer. Ele fazia cálculos
permanentes, como um turista no estrangeiro convertendo moedas em cada transação
que faz ou que planeja.
Até Picasso teve um período azul, de modo que Saturnino teve
uma fase decadente. Decadentismo sofisticado, carregado de ideologia e de
floreios literários. Experimentou de tudo, riscou cada nome numa lista de
muitas páginas. Encenou bacanais de cem pessoas, num palácio da costa de Dubai.
(Se bem que o decadentismo de Saturnino nunca pisou descalço o asfalto quente
dos fatos: as descrições acima são colhidas nos palavrosos diários que manteve
durante essa época, quando tentou escrever contos em francês.)
Veio por fim uma coisa que ele, anos depois, iria chamar O
Borrão. Uma coisa sem forma, que cada vez que era lembrada era distorcida e
adulterada, e carimbada assim ao ser guardada de novo. O Borrão foi um período
de oito ou dez anos subsequentes ao anterior. “Nada aconteceu”, disse ele
depois numa entrevista, “a não ser que eu fiquei vivo cada minuto desses anos.”