(ilustração: Molina Campos)
É curioso que o livro
considerado pelos argentinos como a epopéia nacional argentina, a obra canônica
que define a nação de Julio Cortázar, Ricardo Piglia e Jorge Luís Borges, seja
uma espécie de romance de cordel.
O Martín Fierro (1872, 1879) de José Hernández é descrito em geral como
um poema épico, pela sua longa extensão e temática guerreira. Borges, num ensaio
famoso (El “Martín Fierro”, 1953, com
Margarita Guerrero) acrescenta que isso só se dá porque alguém convencionou que
todo povo precisa ter um Ilíada ou
uma Eneida.
Diz Borges que a tradição
homérica cria um senso de obrigação de tal peso que no século 18 Voltaire se
obrigou a escrever a Henriade para
que não faltasse um epopéia à literatura francesa.
Não faltou à argentina. O Martín Fierro foi um enorme sucesso
popular desde 1872, quando foi publicada aquela que é hoje sua primeira parte,
intitulada El gaucho Martín Fierro. A
vendagem impressionante do livro fez o autor publicar sete anos depois A volta de Martín Fierro.
Desde então as duas partes
são editadas em conjunto. O livro de Hernández tornou-se um desses clássicos
compostos de duas partes lançadas com um longo intervalo, como ocorreu com o Dom Quixote de Cervantes, o Fausto de Goethe e os livros da Alice de Lewis Carroll.
O Martín Fierro é uma história de aventuras e desgraças ambientada no
pampa argentino. Fierro é um pequeno agricultor com mulher, filhos e um
ranchinho. É recrutado na marra pelo exército, para combater os índios. Daí em
diante, sua vida nunca mais se apruma. Vira desertor, comete crimes, é preso
pelos índios e passa anos como cativo. Quando volta, muitos anos depois, a
mulher morreu e os filhos contam os problemas por que passaram.
Chamei o livro de
Hernández de “romance de cordel” pelo fato de que esse épico argentino não foi
escrito nos hexâmetros de Homero nem organizado nas oitavas de Camões. É um
poema em sextilhas, basicamente, com raras interpolações de outras estrofes,
como a quadra.
A sextilha de Hernández é
diferente da nossa sextilha cordelesca. Ambas são estrofes de seis versos com
sete sílabas. (Os argentinos dizem que esse verso é octossílabo, mas eles
contam a última sílaba átona, e nós não.) Nossa sextilha nordestina tem o
esquema de rimas ABCBDB, com o segundo, o quarto e o sexto verso rimando entre
si. A sextilha de Hernández segue quase sempre o modelo abaixo (traduzo a
estrofe inicial do poema):
Aqui me ponho a cantar
ao compasso da viola,
que o homem a quem assola
uma pena extraordinária
como a ave solitária
com o cantar se consola.
Seria portanto um esquema
ABBCCB, mas não é preciso muito exame para perceber que esse curioso formato
não passa de uma décima decapitada, uma décima tipo ABBAACCDDC da qual foram
cortados os quatro primeiros versos. Não faço idéia da origem desse formato.
(ilustração: Molina Campos)
Em todo caso, é curioso que esse poema de tema rústico seja aceito pelos eurófilos argentinos como um retrato fiel de sua nação. Talvez seja a eterna ilusão do Bom Selvagem tornado mau pelo atrito com a civilização. Ou aquela dívida atávica de toda cultura urbanóide para com o mundo rural que lhe mata a fome. Ou o fascínio milenar dos versos contendo o que Ariano Suassuna chamava de espírito cavalariano e aventuroso.
Em todo caso, é curioso que esse poema de tema rústico seja aceito pelos eurófilos argentinos como um retrato fiel de sua nação. Talvez seja a eterna ilusão do Bom Selvagem tornado mau pelo atrito com a civilização. Ou aquela dívida atávica de toda cultura urbanóide para com o mundo rural que lhe mata a fome. Ou o fascínio milenar dos versos contendo o que Ariano Suassuna chamava de espírito cavalariano e aventuroso.
Em todo caso, Borges, no
seu livrinho, propõe uma discussão importante sobre o gênero da obra. Diz ele
que não se pode confundir a natureza do poema com as epopéias genuínas, que são
outro tipo de literatura; mas que o MF tem, sim, uma faceta épica, porque
parece mais com as sagas nórdicas e com a Odisséia
do que com os versos de Verlaine.
Ou seja: quem lê o poema o
lê para conhecer as peripécias da história, não para admirar a beleza do
fraseado. O MF é épico porque é narrativo, é aventuroso, é de prender a
respiração e de arregalar os olhos.
E Borges esclarece:
Além disso, a palavra [epopéia] pode nos
prestar outro serviço. O prazer que proporcionavam as epopéias aos primitivos
ouvintes era o que hoje proporcionam os romances: o de ouvir que aconteceram
tais coisas a tal homem. A epopéia foi uma pré-forma do romance. Assim,
descontado o acidente do verso, caberia definir Martín Fierro como um
romance. Esta definição é a única que pode transmitir com exatidão o tipo de
prazer que nos dá e que coincide, sem causar espécie, com sua data, que foi –
quem não o sabe? – a do século novelístico por excelência: o de Dickens, o de
Dostoiévski, o de Flaubert. A épica exige a perfeição dos personagens; o
romance vive de sua imperfeição e complexidade.
(p.
94-95, trad. Carmem Vera Cirne Lima)
Daí minha afirmação, lá no
início, de que o poema nacional argentino é um cordel. Não é por acaso que
chamamos de “romances” os cordéis longos, de histórias aventurosas. Isso nada
tem a ver com o nosso conceito de romance em prosa (Guerra e Paz, Menino de Engenho,
etc.). Tem a ver com os romances em
versos da cultura ibérica, o famoso Romanceiro Popular.
O Martín Fierro é uma dessas narrativas em verso com começo, meio e
fim, ricas de episódios intermediários, narrativas que não têm a ambição
realista, e sim a volúpia da imaginação e da aventura. São realistas por
reflexo, porque revelam de forma quase inconsciente a realidade física e mental
das pessoas que escrevem e leem essas histórias.
José Hernández fez com as
sextilhas dos payadores do pampa o
que um seu contemporâneo, igualmente erudito, como José de Alencar, poderia ter
feito caso dominasse as formas poéticas de outros contemporâneos de ambos, como
os poetas da Escola do Teixeira – Francisco Romano, Silvino Pirauá e outros.
Talvez uma das razões para
a celebridade e o sucesso perene do Martín
Fierro seja o fato de que o povo argentino reencontra ali, entre tantas
outras coisas, a sua poesia oral, inclusive com a realização, na II Parte, de
um desafio de viola, ou payada en
contrapunto, entre Martín Fierro e outro payador.
Aqui, o texto completo
original, com comentários, glossários e ilustrações: