segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

4302) "Martín Fierro": um romance de cordel (8.1.2018)



(ilustração: Molina Campos)

É curioso que o livro considerado pelos argentinos como a epopéia nacional argentina, a obra canônica que define a nação de Julio Cortázar, Ricardo Piglia e Jorge Luís Borges, seja uma espécie de romance de cordel.

O Martín Fierro (1872, 1879) de José Hernández é descrito em geral como um poema épico, pela sua longa extensão e temática guerreira. Borges, num ensaio famoso (El “Martín Fierro”, 1953, com Margarita Guerrero) acrescenta que isso só se dá porque alguém convencionou que todo povo precisa ter um Ilíada ou uma Eneida.

Diz Borges que a tradição homérica cria um senso de obrigação de tal peso que no século 18 Voltaire se obrigou a escrever a Henriade para que não faltasse um epopéia à literatura francesa.

Não faltou à argentina. O Martín Fierro foi um enorme sucesso popular desde 1872, quando foi publicada aquela que é hoje sua primeira parte, intitulada El gaucho Martín Fierro. A vendagem impressionante do livro fez o autor publicar sete anos depois A volta de Martín Fierro.

Desde então as duas partes são editadas em conjunto. O livro de Hernández tornou-se um desses clássicos compostos de duas partes lançadas com um longo intervalo, como ocorreu com o Dom Quixote de Cervantes, o Fausto de Goethe e os livros da Alice de Lewis Carroll.


O Martín Fierro é uma história de aventuras e desgraças ambientada no pampa argentino. Fierro é um pequeno agricultor com mulher, filhos e um ranchinho. É recrutado na marra pelo exército, para combater os índios. Daí em diante, sua vida nunca mais se apruma. Vira desertor, comete crimes, é preso pelos índios e passa anos como cativo. Quando volta, muitos anos depois, a mulher morreu e os filhos contam os problemas por que passaram.

Chamei o livro de Hernández de “romance de cordel” pelo fato de que esse épico argentino não foi escrito nos hexâmetros de Homero nem organizado nas oitavas de Camões. É um poema em sextilhas, basicamente, com raras interpolações de outras estrofes, como a quadra.

A sextilha de Hernández é diferente da nossa sextilha cordelesca. Ambas são estrofes de seis versos com sete sílabas. (Os argentinos dizem que esse verso é octossílabo, mas eles contam a última sílaba átona, e nós não.) Nossa sextilha nordestina tem o esquema de rimas ABCBDB, com o segundo, o quarto e o sexto verso rimando entre si. A sextilha de Hernández segue quase sempre o modelo abaixo (traduzo a estrofe inicial do poema):

Aqui me ponho a cantar
ao compasso da viola,
que o homem a quem assola
uma pena extraordinária
como a ave solitária
com o cantar se consola.

Seria portanto um esquema ABBCCB, mas não é preciso muito exame para perceber que esse curioso formato não passa de uma décima decapitada, uma décima tipo ABBAACCDDC da qual foram cortados os quatro primeiros versos. Não faço idéia da origem desse formato.

(ilustração: Molina Campos)

Em todo caso, é curioso que esse poema de tema rústico seja aceito pelos eurófilos argentinos como um retrato fiel de sua nação. Talvez seja a eterna ilusão do Bom Selvagem tornado mau pelo atrito com a civilização. Ou aquela dívida atávica de toda cultura urbanóide para com o mundo rural que lhe mata a fome. Ou o fascínio milenar dos versos contendo o que Ariano Suassuna chamava de espírito cavalariano e aventuroso.

Em todo caso, Borges, no seu livrinho, propõe uma discussão importante sobre o gênero da obra. Diz ele que não se pode confundir a natureza do poema com as epopéias genuínas, que são outro tipo de literatura; mas que o MF tem, sim, uma faceta épica, porque parece mais com as sagas nórdicas e com a Odisséia do que com os versos de Verlaine.

Ou seja: quem lê o poema o lê para conhecer as peripécias da história, não para admirar a beleza do fraseado. O MF é épico porque é narrativo, é aventuroso, é de prender a respiração e de arregalar os olhos.



E Borges esclarece:

Além disso, a palavra [epopéia] pode nos prestar outro serviço. O prazer que proporcionavam as epopéias aos primitivos ouvintes era o que hoje proporcionam os romances: o de ouvir que aconteceram tais coisas a tal homem. A epopéia foi uma pré-forma do romance. Assim, descontado o acidente do verso, caberia definir Martín Fierro como um romance. Esta definição é a única que pode transmitir com exatidão o tipo de prazer que nos dá e que coincide, sem causar espécie, com sua data, que foi – quem não o sabe? – a do século novelístico por excelência: o de Dickens, o de Dostoiévski, o de Flaubert. A épica exige a perfeição dos personagens; o romance vive de sua imperfeição e complexidade.
(p. 94-95, trad. Carmem Vera Cirne Lima)

Daí minha afirmação, lá no início, de que o poema nacional argentino é um cordel. Não é por acaso que chamamos de “romances” os cordéis longos, de histórias aventurosas. Isso nada tem a ver com o nosso conceito de romance em prosa (Guerra e Paz, Menino de Engenho, etc.). Tem a ver com os romances em versos da cultura ibérica, o famoso Romanceiro Popular.

O Martín Fierro é uma dessas narrativas em verso com começo, meio e fim, ricas de episódios intermediários, narrativas que não têm a ambição realista, e sim a volúpia da imaginação e da aventura. São realistas por reflexo, porque revelam de forma quase inconsciente a realidade física e mental das pessoas que escrevem e leem essas histórias.

José Hernández fez com as sextilhas dos payadores do pampa o que um seu contemporâneo, igualmente erudito, como José de Alencar, poderia ter feito caso dominasse as formas poéticas de outros contemporâneos de ambos, como os poetas da Escola do Teixeira – Francisco Romano, Silvino Pirauá e outros.

Talvez uma das razões para a celebridade e o sucesso perene do Martín Fierro seja o fato de que o povo argentino reencontra ali, entre tantas outras coisas, a sua poesia oral, inclusive com a realização, na II Parte, de um desafio de viola, ou payada en contrapunto, entre Martín Fierro e outro payador.

Aqui, o texto completo original, com comentários, glossários e ilustrações: