sábado, 31 de outubro de 2009

1339) Prêmio de “Melhor Depoimento” (28.6.2007)


(Eduardo Coutinho)

Tenho visto muitos documentários ultimamente, de curta e de longa metragem, e fico pensando nas pequenas coisas que fazem do documentário uma arte totalmente diversa da arte do filme de ficção. Nos festivais que envolvem filmes de ficção, por exemplo, dá-se prêmio para Melhor Ator, Melhor Atriz, etc. Prêmios cuja justificativa é óbvia: cabe aos atores e às atrizes encarnar a condição humana naquelas histórias, passar para nós toda a complexa urdidura de emoções em que a história se revela, e assim por diante. Se existem “prêmios técnicos” como Melhor Fotografia, Melhor Montagem e assim por diante, poderíamos dizer que os prêmios para os atores são os “prêmios humanos” de um Festival.

Pois quando existem documentários envolvidos, a coisa muda de figura. Ali não há atores, há pessoas de verdade relacionando-se com a câmara e mostrando, da maneira que podem e que o diretor orienta, a sua verdade pessoal. Sugiro, portanto, que nos festivais de cinema onde concorrem documentários seja criada uma nova categoria de premiação: Melhor Depoimento.

Porque, ao fim e ao cabo, muitos documentários bons não são outra coisa senão um longo e editado depoimento. Uma câmara e um gravador ligados, um cineasta sugerindo temas ou fazendo perguntas específicas, e um entrevistado que, no centro da imagem cinematográfica, revela seu rosto e sua alma, com todas as suas rugas e verrugas.

Em festivais recentes como o Cine-PE de Recife e o Cineport de João Pessoa vi filmes notáveis que nada têm de excepcional em sua fotografia, roteiro, trilha sonora ou qualquer outro quesito técnico, mas não obstante tornam-se grandes filmes devido às pessoas que prestam seu depoimento. São documentos humanos, centrados na pessoa dos entrevistados, e a competência da equipe se revela justamente em sua sabedoria de não interferir com piruetas ou malabarismos de câmara, de edição, etc.

Pessoas falando com intensidade suas verdades pessoais e contando suas histórias de vida podem resultar em grandes filmes com um mínimo de firulas de linguagem. Em casos assim, o que mais importa é saber escolher o ambiente e o momento, estabelecer com o entrevistado um contato fraterno e respeitoso que lhe dê liberdade total para falar e a segurança de saber que o que disser não será usado de forma leviana. Como exemplo de documentarista especializado nesta difícil arte da empatia e da confiança, posso citar Eduardo Coutinho (Santo Forte, Cabra Marcado para Morrer, Edifício Master, O Fim e o Princípio, etc.).

Quando um documentarista consegue esse grau de empatia, consegue fazer um grande filme quase sem tirar a câmara do lugar. O filme pode não ter brilhantismo técnico, mas tem qualidade humana, e muitas vezes um júri, comovido ou entusiasmado pelo que viu, sente-se parcialmente frustrado por não dispor de nenhuma categoria para premiar aquele filme, porque suas qualidades específicas não estão previstas na grade de premiação.

1338) Máquina de escrever e mediunidade (27.6.2007)




Existe coisa mais fascinante do que a mente humana? Duvido. Ela é como aquelas casas antigas, imensas, labirínticas, onde a gente se perde com facilidade, e onde, quando menos espera, descobre um aposento onde jamais havia entrado. Ao que parece, a invenção da máquina de escrever produziu um novo aposento nas mentes humanas, gerando uma experiência de dissociação psíquica talvez comparável à que outros indivíduos experimentaram em períodos remotos da História quando a escrita se impôs como um veículo para a produção de um texto a sós.

Uma resenha de Joan Acocella sobre o livro The Iron Whim: A Fragmented History of the Typewriter, de Darren Wershler-Henry, cita uma porção de episódios curiosos na história deste nobre instrumento. Escritores sempre cultivaram uma relação de enfrentamento físico com a escrita, mas essa relação sempre foi íntima, quase sensual, com a ponta úmida da pena rascando de leve a epiderme do papel, deixando ali as senhas manuscritas através das quais os pensamentos do autor podiam ser reconstituídos. A escrita se assemelhava um pouco ao desenho. Era uma relação íntima, silenciosa.

Chegou a máquina de escrever com seus mecanismos e seu estardalhaço, e pareceu que o mundo ia se acabar. Era preciso dar uma pancada com o dedo, fazendo o martelinho desferir outra pancada no papel, amortecida pela fita úmida que imprimia o negror da letra. Em meus bons tempos de tradutor-por-sobrevivência, já trabalhei de 8 a 10 horas por dia numa máquina de escrever mecânica: quando ia dormir, as unhas estavam em frangalhos, os dedos inchados e insensíveis. Mas o mais interessante é que a máquina exigia outro tipo de relação mental. O livro de Wershler-Henry fala que após a morte de Henry James, sua datilógrafa,Theodora Bosanquet, dizia continuar ouvindo a voz do escritor ditando-lhe textos, e que outros escritores já mortos, como Thomas Hardy ou John Galsworthy, também estavam querendo ditar-lhe textos.

Wershler-Henry afirma que “as pessoas acreditavam que o que era escrito numa máquina era ditado, por uma voz que não era a mesma da pessoa que datilografava; mesmos as pessoas que compunham seus textos diretamente na máquina achavam que estavam seguindo um ditado vindo de outra parte”. Bastava isto para um escritor meio visionário como William S. Burroughs inventar em alguns de seus romances fantásticos uma máquina que ele chamava The Soft Typewriter (“A Máquina-de-Escrever Mole”), uma espécie de máquina orgânica que escrevia não só nossos livros como nossas próprias vidas.

Pode ser mediunidade; ou pode ser simplesmente um processo esquizóide benigno brotado na nossa mente, o mesmo que me permite estar agora datilografando uma frase que já pensei enquanto com o mesmo cérebro já estou tentando pensar a próxima. Cada nova tecnologia-de-pensar cria um novo puxado em nossa mente, esta casa infinita que malassombramos com nossa alma.





1337) Let’s hablar Europanto! (26.6.2007)



No websaite “Metafilter”, um dos meus bancos-de-idéias preferidos, encontrei pouco tempo atrás um comunicado nestes termos: “Que would happen if, wenn Du open your Metafilter, finde eine message in esta lingua? No est Englando, no est Germano, no est Espano, no est keine known lingua - aber Du understande! Wat happen zo! Habe your computero eine virus catched? Habe Du sudden BSE gedeveloped? No, Du esse lezendo la neue europese lingua: de Europanto!”

That’s right! Es mucho posible understand qualquiera cosa che se parle de mode organized, empleando palavras avec un sonido vaguely familiar. Mas, como isto é uma idéia dos europeus, deixemo-los às voltas com seu babelismo bem intencionado e restrinjamo-nos ao nosso belo idioma, capaz de verbos barrocos como o que acabei de exemplificar, e que europeu algum entenderia.

Tenho uma certa impaciência com as pessoas que querem entender tudo e que, ao ler um livro, empacam diante da primeira palavra cujo sentido não compreendem. Se não houver um dicionário à mão, interrompem a leitura ali mesmo. Eu acho que gente que faz isto é porque não gosta de ler. Quem gosta, passa por cima de palavras desconhecidas, de frases incompreensíveis, parágrafos obscuros, páginas tediosas. Quem gosta de ler passa por dentro do texto sem parar para checar “o cunho vernáculo de um vocábulo”.

De vez em quando me chega pela Internet uma mensagem curiosa. Diz ela que podemos ler sem porblema farses intieras com palarvas onde as letars estão mistruadas no miolo, mas mantendo a letra inicial e a última. Por quê? Porque nossos olhos reconhecem “o desenho” da palavra, o seu formato geral, e passam por cima do resto. Acho que existe um processo semelhante em nosso contato com uma língua informal como o Europanto. Temos uma certa familiaridade com palavras inglesas. As palavras francesas, espanholas e italianas compartilham conosco uma base latina comum, com milhares de radicais semelhantes. Tudo isto nos permite – se não somos do tipo cri-cri que empaca diante da primeira dificuldade – passar “a vôo de pássaro” por um texto escrito desta forma, como nos parágrafos iniciais deste artigo.

O Europanto não é uma língua, é uma experiência informal facilitada pela Internet (para mais informações, em http://www.neuropeans.com/topic/europanto/what/more.php há um artigo extenso e explicativo). Tem uma possibilidade razoável de “pegar” junto aos mais jovens, mais ágeis, mais informais, mais superficiais, ou seja, para essas pessoas que rapidamente aprendem a usar um celular novo. Por quê? Porque são jovens, têm curiosidade, não têm medo de errar, erram pra caramba e não esquentam a cabeça. Gente com o juízo já cristalizado fica impaciente quando erra, procede pé ante pé quando está diante de uma experiência nova. Os jovens, para quem tudo é novo, erram o tempo todo, mas vão em frente, de celular em punho, conversando em Europanto. E se entendem.

1336) O espírito americano (24.6.2007)



Lendo uma resenha sobre um livro de Danny Fingeroth a respeito de super-heróis (Superman on the Couch: What Superman Really Tells us About Ourselves and Our Society) deparei-me com esta frase, com que ele tenta explicar por que motivo os americanos se identificam tanto com esses personagens: “Nós lutamos nossas próprias batalhas, fazemos nossas próprias regras, desafiamos aquele que tentam nos destruir. Estamos sozinhos, seja para vencer ou fracassar, para triunfar ou sucumbir. Nós fazemos os nossos próprios destinos”. Essa mistura de altivez solitária com a arrogância de quem não-quer-se-misturar é um componente importante para entendermos a psicologia dos nossos coleguinhas mais ao Norte, tanto no seu modo de fazer cinema quanto na sua maneira de fazer guerras.

É até comovente a maneira como os americanos idolatram seus heróis. Na ficção científica, há um subgênero obscuro, muito em voga há cem anos, que os historiadores chamam de “Edisonades” (algo como “as edisonagens”). São aventuras cujo herói é Thomas Alva Edison, o inventor do fonógrafo e da lâmpada elétrica. Nas suas últimas décadas, Edison, que faleceu em 1931, tornou-se um grande divulgador da Ciência, viajando pelo país inteiro, dando palestras, fazendo campanhas de propaganda. Na década de 1890, contudo, ele já tinha fama internacional, e foi quando surgiu uma série de histórias em revistas (as chamadas “dime novels”, “romances de vintém”) tendo como herói Tom Edison Jr., um jovem inventor. Em 1886 já surgira na França o romance A Eva Futura de Villiers de L’Isle Adam, onde Edison produz uma espécie de andróide para substituir a noiva infiel do protagonista. Em 1898, Garrett P. Serviss escreveu Edison’s Conquest of Mars, em que o inventor lidera uma expedição ao planeta vizinho onde, munido de armas poderosas, “passa no rodo” a civilização marciana e implanta ali o domínio militar terrestre. O livro é uma clara resposta ao derrotismo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells, que acabara de ser publicado.

Os títulos das aventuras de Edison são muito numerosos para serem enfileirados aqui (o gênero caiu em desuso após 1940), mas eles exprimem um aspecto importante da cultura americana. Na mente do americano, um cientista pode ganhar proporções de super-herói. Até um político pode: alguém aí lembra o desenho animado Super Presidente, em que um presidente dos EUA se transformava numa espécie de Capitão Marvel? Não está muito distante disso o personagem de Bill Pullman no filme Independence Day – um presidente americano que acaba pilotando um dos caças a quem cabe destruir os alienígenas que invadem a Terra. Essa infantil capacidade de produzir fantasias heróicas a respeito de si próprios é um traço norte-americano que impulsiona tanto a sua cultura de massas quanto a sua política externa. São como milhões de crianças que pulam do alto do celeiro imaginando que podem voar, e o diabo é que de vez em quando um deles voa mesmo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

1335) Quebrando a moldura (23.6.2007)



Folheando álbuns de fotografias antigas e atuais a gente percebe duas coisas. Uma é que os formatos das molduras, dos “frames”, muda muito com o passar do tempo. O quadrilátero que define o espaço fotográfico não tem feito outra coisa senão mudar ao longo do tempo, por motivos técnicos ou estéticos. Em geral, uma foto consiste num retângulo; não são freqüentes as fotos em formato de um quadrado perfeito. O quadrado perfeito é estático, pode ser girado de um lado para o outro que não se altera. E é centralizado demais. Serve, por exemplo, para retratos, rostos, mas não se adapta bem ao registro de paisagens e ambientes. Este se dá melhor no formato retangular, chegando até a experiências mais recentes como a famosa imagem panorâmica, que consiste num retângulo com proporções mais ou menos de 1:8 ou até mais.

A segunda coisa que a gente percebe é que o formato preferencial da foto, como o do cinema, é um retângulo deitado. Por que? Porque corresponde intuitivamente ao nosso campo visual, que tem mais ou menos esta forma pelo fato de nossos olhos estarem colocados lado a lado (correspondendo aos hemisférios cerebrais). Se nossos olhos estivessem colocados um acima do outro, as telas de Cinemascope no mundo inteiro seriam verticais, em vez de horizontais.

No princípio da fotografia chegou-se a cultivar a foto em forma de círculo, mas ao que eu saiba ela foi rapidamente esquecida. A fotografia é o império soberano da forma retangular. E a gente percebe que todas as experiências já foram feitas com a fotografia, menos a de quebrar a moldura. (Estou exagerando, claro. Pelo que tem de maluco no mundo, tudo que a gente possa imaginar hoje foi feito por um deles cem anos atrás) Seria interessante imaginar negativos fotográficos em forma de estrela, ou de pentágono, ou de meia-lua, ou de cruz, e toda uma estética da fotografia voltada para o enquadramento das imagens do mundo real no interior desses espaços esdrúxulos, espaços que não correspondem à nossa maneira intuitiva de observar seres e ambientes.

São interessantes pelo simples fato de serem formatos contra-intuitivos, ou seja, que violam nossa forma espontânea de pensar. A qual não é tão espontânea assim, é condicionada pela nossa aparelhagem biológica (a tal questão dos olhos ficarem lado a lado) e por razões de ordem prática que ao longo dos milênios fizeram com que chegássemos ao livro retangular (vocês já viram livro redondo?). Por que motivo as notas de dinheiro são retangulares e as moedas redondas, e não o contrário? Certamente porque o papel se corta melhor em retângulos, e para o processo de fundir moedas essa preocupação inexiste (conhecem-se na Antiguidade moedas quadradas e triangulares). Temos a tendência a achar que o formato predominante em nosso Presente é o único, ou o melhor, ou o mais certo. Talvez daqui a cem anos os critérios sejam outros, e estejamos tirando fotos em forma de letra S.

1334) O realismo invisível (22.6.2007)



(Erich von Stroheim)

O cinema é o ponto perfeito da ilusão. Se fosse menos bem-feito, ninguém seria convencido a acreditar. Se fosse mais bem-feito do que é, ficaria tão parecido com o Real que começaríamos e bocejar e bateríamos em retirada. 

Do jeito que existe até hoje, ele se mantém tremeluzindo no espaço como uma película translúcida por onde perpassa um mundo maior, mais vivo e mais carregado de energia vital do que o nosso. E para fazer brotar esse Mundo De Lá o mundo de cá não mede esforços.

Conta-se que Luchino Visconti, ao dar uma última checada num cenário antes de começar a rodar a cena, abriu uma gaveta de um móvel do quarto: estava vazia. Ele chamou o cenógrafo: “Como é que pode?! A gaveta está vazia!” E o cara: “Mas, Don Luchino, ninguém abre a gaveta na cena!” E ele: “Tá errado... tá errado...” Foi abrindo os armários também vazios e ordenando: “Coloquem aqui dentro todas as roupas dos personagens, do jeito que eles teriam colocado. Isto aqui é um quarto, e não uma mentira”.

Será verdade? Se não for, tomara que fique sendo. 

Conta-se uma história parecida sobre um diretor americano, não lembro qual, que igualmente se preparava para filmar a cena culminante do filme, em que a estrela descia triunfante a escadaria da mansão para participar de um baile. Alguém veio lhe mostrar o colar de diamantes que ela estaria usando. Ele examinou e disse: “Isto aqui é uma imitação de 200 dólares. Quero um colar igual, mas de diamantes verdadeiros.” Alguém protestou: “Um colar assim vai custar 100 mil dólares, e ninguém vai saber que é de verdade” Ele respondeu: “A atriz que vai usá-lo saberá”. Macaco velho, ele sabia que uma mulher tem outro porte, outro andar e outro brilho no olho quando tem 100 mil dólares faiscando no pescoço.

Erich von Stroheim, dirigindo no tempo do cinema mudo, exigia que em todos os seus cenários as campainhas da porta funcionassem de verdade. Por que? Porque os atores viram a cabeça com mais naturalidade quando escutam um “blim-blom” do que quando escutam um assistente gritar: “Agora, Fulano, tocaram na porta!” 

A ilusão cinematográfica é uma película tênue como bolha de sabão. A menor inverossimilhança pode fazê-la espoucar para sempre, e puxar o espectador, como um elástico super-esticado, de volta para a poltrona, num repelão brusco que parte a sua fantasia em milhões de fragmentos.

Na TV a gente vê uma pessoa falando ao telefone e (quando não é um bom ator) percebe que as pausas e as entonações não são as de uma pessoa conversando, são as de uma pessoa dizendo algumas frases, esperando com um telefone mudo ao ouvido, e depois voltando a falar. 

Acho que ficaria mais trabalhoso escrever o diálogo inteiro (mesmo que só um dos lados tivesse que aparecer) e botar um ator ou um assistente do lado oposto intercalando as frases. Mas ficaria muito mais realista o resultado diante da câmara, porque a maioria dos atores não tem esse senso de ritmo nem faz a entonação correta. 



1333) A fábula e a anedota (21.6.2007)


(Malba Tahan)

Um corvo estava pousado num galho, com um pedaço de queijo no bico. Uma raposa faminta parou embaixo e ficou de olho no queijo. Aí disse em voz alta: “Ouvi dizer que os corvos têm uma voz tão melodiosa! Como tenho vontade de ouvir o canto mavioso de uma dessas aves!” Envaidecido, o corvo abriu o bico e começou a crocitar. O queijo caiu, a raposa o abocanhou e foi-se embora, muito satisfeita. Moral da história: um vaidoso é sempre uma presa fácil para um adulador.

Um guarda-noturno viu um bêbado agachado junto de um poste de iluminação, procurando algo. Foi perguntar o que havia, e o bêbado disse: “Estou procurando minha chave, que caiu quando eu estava abrindo a porta”, e apontou para uma casa a certa distância. O guarda ponderou: “OK, mas se a chave caiu lá, por que você veio procurar aqui?” “Ora,” disse o bêbado, “vim procurar onde está mais claro, porque naquele escuro de lá eu não vou achar nunca.”

Tenho certeza de que o leitor entendeu ambas as historietas, e percebeu também a principal diferença entre elas, e que para mim é uma das diferenças cruciais entre a Fábula e a Anedota. A diferença é que a Fábula (no modelo clássico de Esopo, La Fontaine, etc.) se conclui com uma “moral da história”, um pequeno aforismo que sintetiza e explica o significado da historieta; e a anedota não. Poderíamos concluir a anedota do bêbado e do guarda dizendo algo como: “Moral da história: Diante de um problema, certos indivíduos preferem procurar respostas onde lhes é mais cômodo procurar, e não onde a resposta provavelmente está” – algo assim. Mas não. A anedota, mesmo quando tem um fundo filosófico (e esta me parece exemplar, digna de figurar em qualquer tratado metafísico) deixa as conclusões a nosso cargo.

Comparei certa vez os contos de Malba Tahan aos contos de Kafka, e observei que uma diferença entre os dois é que Malba Tahan sempre conclui suas historietas árabes com uma “moral da história”, o que muitas vezes as enfraquece literariamente; e Kafka, sabiamente, nunca explicou suas historietas, que são meio absurdas, meio vagas, meio grotescas, e pelo fato de não se fecharem num significado imposto acabam funcionando como geradores permanentes de significados múltiplos, de acordo com nosso estado mental durante a leitura.

Borges dizia de Nathaniel Hawthorne o mesmo que digo de Malba Tahan – que sua preocupação didática e moralizante empobrecia as interessantes fábulas que contava, as quais seriam mais ricamente interpretadas sem essa “interpretação final” que ele se achava na obrigação moral de acrescentar. Parábolas em-aberto, como os “koan” dos monges budistas funcionam melhor para mentes já preparadas, mais aptas a destrinchar significados. Talvez fosse interessante ver se as anedotas ganhariam ou perderiam se fossem concluídas com essas pequeninas explicações. Poderiam ajudar este ou aquele ouvinte, mas a verdade é que a anedota, inclusive a de fundo filosófico, sobreviveu sem isso até hoje.

1332) Literatura Geométrica (20.6.2007)




É a literatura que privilegia a estrutura, a simetria, a disposição harmônica entre suas partes, dando-lhes a mesma importância que dá ao enredo, aos personagens, ao estilo. 

Acho que os autores que escrevem dessa forma têm uma certa influência da pintura clássica Renascentista, em que a “composição do quadro” era tão importante quando o assunto representado. 

Proporção, harmonia, dinamismo, estabilidade vs. instabilidade, conflito vs. serenidade, tudo isto aqueles pintores exprimiam através do posicionamento das formas, massas e cores. E os modernos escritores o fazem através do posicionamento dos capítulos, do entrelaçamento de histórias, da trajetória ficcional dos personagens e de outros recursos.

Jorge Luís Borges tem um conto policial, “A Morte e a Bússola”, baseado no conflito entre duas formas geométricas: o triângulo e o losango. Os crimes sugerem a aplicação de uma das formas; o detetive intui que por trás desta primeira existe a indicação da segunda; segue as pistas correspondentes e vai ao encontro do criminoso, na última cena, na qual uma surpresa o espera. 

O romance V de Thomas Pynchon consta de duas narrativas separadas e convergentes, imitando o desenho dessa letra. 

O romance O Jogador Adversário de Ellery Queen é baseado (por motivos místico-simbólicos) no formato da letra Y: dois personagens se mesclam no final numa única identidade, e ficamos sabendo quem é aquele criminoso sem rosto cujos passos acompanhamos desde o início.

Escritores de temperamento visual recorrem a isto com freqüência, como Osman Lins, que construiu seu Avalovara reproduzindo o movimento de uma espiral em torno de um quadrado de 25 casas, a cada uma das quais corresponde a letra de uma frase que é um palíndromo, pode ser lida em qualquer direção: “Sator arepo tenet opera rotas”, “O lavrador mantém com cuidado o arado em seu sulco”. 

Um rótulo para esta literatura teria que incluir também a idéia de serialidade, uma estrutura em que uma série preexistente de elementos (A-B-C-D-E...) é mimetizada numa outra série. Exemplo clássico é o Ulisses de Joyce refletindo de um a um os episódios da Odisséia, ou O Caso dos Dez Negrinhos de Agatha Christie refletindo os versos de uma canção infantil.

Geometrizar uma narrativa significa muitas vezes que o autor está se dando um trabalho enorme para produzir certos efeitos que não serão percebidos pelo leitor. 

No caso do romance policial, que pelas regras próprias do seu jogo pode deixar explicitadas estas pistas, o efeito é mais fácil de executar. Mas para sabermos que determinados capítulos de Avalovara têm o mesmo número de linhas precisamos da informação do autor, porque acho que ninguém estava contando. 

Muitos segredos da grande literatura estão soterrados neste tipo de concepção estrutural, porque, como a planta-baixa de um prédio, só podem ser deduzidos por quem tem olho treinado e reconstitui mentalmente estas formas ao caminhar pelos aposentos.







1331) A existência de Deus (19.6.2007)


Woody Allen disse certa vez, num desabafo metafísico: “Se ao menos Deus me desse uma prova inequívoca de sua existência! Como por exemplo fazer surgir uma conta em meu nome num banco suíço!” Este argumento lembra as queixas dos materialistas em geral, que querem provas da existência de Deus – não qualquer prova, mas uma prova dentro dos seus próprios critérios. Uma vez um cientista queixou-se a um padre que a Igreja era incapaz de provar cientificamente a existência de Deus, e o padre retrucou; “Meu amigo, nós já provamos a existência dele teologicamente. Quem não está conseguindo prová-la científicamente é a Ciência, mas aí foge à nossa alçada”.

A verdade é que o conhecimento religioso se dá através da fé, a qual é uma atitude emocional, e não o resultado de uma cadeia de raciocínios. A existência de Deus não pode ser demonstrada cientificamente, pela própria natureza do conhecimento científico. A Ciência dos últimos quinhentos anos foi se especializando cada vez mais no estudo da matéria e com isto foi se afastando cada vez mais da possibilidade de provar a existência de Deus. Foi mudando de jurisdição, por assim dizer. A Ciência prova aquilo que consegue demonstrar em termos práticos, aquilo que consegue manter sob controle experimental.

Um cientista não conseguiria provar a existência de Deus nem mesmo se esbarrasse com ele na calçada. É como naquele famoso apólogo sobre um sujeito que, durante uma enchente, ficou rezando em casa, pedindo a Deus que viesse salvá-lo. A água subiu muito, e ele subiu no teto da casa, enquanto o aguaceiro aumentava. Veio um cara de barco para salvá-lo, ele recusou e continuou rezando. Depois veio uma canoa, depois veio um helicóptero, e ele recusava tudo, continuava rezando e pedindo socorro a Deus. Aí morreu afogado. Ao chegar no Céu, foi direto reclamar a Deus: “Mas, Senhor, isso é coisa que se faça? Rezei tanto e o senhor não foi me salvar!” E Deus: “Mas rapaz, eu mandei um barco, mandei uma canoa, mandei até helicóptero... Tu queria o quê?!” Vejam bem a alta octanagem filosófica dessa história. Ela não prova que Deus existe. Ela nos lembra que outras coisas (canoas, helicópteros, etc.) existem de fato. Considerá-las ou não como prova da existência de uma instância superior, por trás delas, é decisão nossa.

Melhor acreditar no mundo, amigos. Esse ninguém nega. É como dizia Ariano Suassuna, comentando a filosofia alemã: “Kant dizia que nós não podemos afirmar a realidade exterior, que aquele jasmineiro é uma coisa para mim, outra para você, outra para ele. Mais do que isso, ele acreditava que eu nem sequer posso provar que a imagem que eu tenho corresponde ao real. É muito fácil você discutir se a imagem daquele jasmineiro corresponde ou não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu garanto que se fosse uma onça que entrasse aqui, nem Kant iria perguntar se por acaso se tratava de uma correspondência com o real”.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

1330) Que mistério tem Clarice (17.6.2007)



A propósito de uma exposição sobre Clarice Lispector que ocorre em São Paulo, Zuenir Ventura, num artigo no “Globo”, perguntou-se, e a nós: “Como uma escritora tida como hermética, inacessível, introspectiva, é capaz de tanto sucesso de público?” A pergunta do mestre Zuenir é a mesma que me fiz por muitos anos, até perceber que não tem resposta porque é uma pergunta iludida, uma pergunta cujas premissas não batem com a realidade. Eu, por exemplo, me perguntava como é que uma autora tão intelectual conseguia ser tão lida, copiada, citada e imitada por adolescentes. Ora, não é bem isso. Se existe uma autora brasileira que não é intelectual é Clarice. Ou melhor: ela não é intelectual no sentido livresco-erudito da palavra, e sim no sentido metafísico, no sentido em que o jagunço Riobaldo é um dos grandes intelectuais da nossa literatura.

Clarice não é uma racionalista: é uma intuitiva que usa palavras simples e diretas para exprimir sensações mentais tortuosas e obscuras. Introspectiva? Isso, sim. Tudo que lhe acontece é da retina para dentro. Ela é capaz de escrever um livro inteiro narrando os poucos minutos de contemplação mútua entre uma mulher e uma barata numa cozinha. Enredo não era seu forte, porque quando ela começa a contar uma história a história dispara a galope para dentro dela e começa a contá-la. Tudo acontece dentro da mente dela. Mesmo quando descreve uma cena com pessoas almoçando e conversando numa sala não temos a impressão de ver a sala, e sim de estar olhando uma foto de Clarice e na pupila do seu olho estar acontecendo a cena, como se fosse uma janelinha do YouTube.

Num texto publicado aqui (“Claríssimo Espectro”, 14.11.2004) falei que ela criava a loucura como quem cria um cachorro dentro do apartamento. Era o seu estilo de conviver com o paradoxo, de dizer “eu sou mais forte do que eu”, “Eu não sou Tu, mas mim és Tu” e outros paradoxos lógicos que a Razão não comporta mas que são a essência da Literatura. Para a lógica aristotélica, A é A e B é B, e a questão acaba aí. Para a sensibilidade literária, A pode ser B. Ou pode ser X, pode ser 345, pode ser um coelho correndo em cima de um muro. Qualquer coisa, no momento da fagulha poética, pode ser qualquer outra, porque o Inconsciente (isto que popularmente é chamado de “emoção”) é o amálgama que “dá liga” entre as duas, que as funde numa única essência. E o Inconsciente não é racional. Pode ser analisado racionalmente, como descobriram Freud, Jung, etc., mas ele próprio não funciona pelas leis da Razão e da Lógica.

Por que motivo os adolescentes em geral entendem e amam Clarice? Porque em seus momentos de introspecção é assim que eles se sentem, são A e são Não-A ao mesmo tempo, movidos pelo choque e antagonismo entre corpos em plena metamorfose, pressões familiares e sociais, obrigação de tomar partido em disputas que não entendem, exigências e dilacerações que os deixam sem saber se são uma pessoa ou uma barata.

1329) “Clube da Luta” (16.6.2007)



Clube da Luta, de David Fincher (1999) é um desses filmes polêmicos cujos críticos contra e a favor se exaltam a tal ponto que a gente vê a hora eles se transformarem em outro clube-da-luta como aquele em que Edward Norton e Brad Pitt se esmurram até transformarem a cara um do outro em postas sanguinolentas. O filme tem uma história inquietante, um roteiro extremamente tenso e energético, uma realização visual rica de efeitos. Mas eu não gosto do filme. Por quê?

Ele se divide em três partes. Na primeira, mostrando a vida de um executivo rico, “banana”, abestalhado, o filme é uma crítica ao consumismo, à passividade, à burocracia. Na segunda, quando ele fica amigo de Pitt e os dois criam um clube dedicado a brigas corporais, ocorre uma regressão ao animalismo, ao vitalismo, ao sentido zoológico da vida, ao materialismo corporal como reação à falta de sentido da vida em sociedade. Na terceira parte, eles começam a criar milícias voltadas para a violência cega, para a destruição gratuita de símbolos do Poder Econômico, como as firmas de cartões de crédito. A esta altura, o filme descambou para um homossexualismo machista sem sexo, fundado na agressividade, num sadomasoquismo militarizado e anarquista.

O primeiro terço do filme é uma excelente sátira à sociedade americana. O segundo terço é um desabafo vitalista, uma sacudida brutal que choca, impressiona, e é intelectualmente compreensível. O terceiro terço é um sintoma da desorientação dos próprios autores, que acabam mergulhando no delírio que criaram e acreditando na fantasia para-fascista com que tentaram satirizar a sociedade que renegam. Quando os cidadãos pacatos começam a participar do Clube da Luta (a respeito do qual é preciso manter segredo absoluto), sentem-se como garotos admitidos no interior de uma Sociedade Secreta onde podem dar vazão a sua agressividade, mesmo que seja ao preço de ter os dentes e o nariz partidos. Sentem-se vivos pela primeira vez. A mim, isto lembra a teoria do “Outsider” de Colin Wilson – o sujeito de inteligência superior que não consegue se adaptar a uma sociedade incapaz de compreendê-lo e de utilizar seus talentos. Para não morrer de tédio ou de depressão, ele às vezes vira um criminoso – só “para se sentir vivo de verdade”.

O filme de Fincher tem uma visão Bin Laden da política: para combater os males do capitalismo, basta explodir seus arranha-céus. É uma visão apocalíptica, destrutiva e fascista da política atual. Por ser tecnicamente muito bom, o filme inquieta, já que tudo que diz parece plausível. E o filme emperra numa situação que sempre existiu no cinema, mas parece estar existindo cada vez mais: o cara mostra aquilo tudo para criticar, ou porque gosta daquilo e quer mostrar a todo mundo? É uma discussão antiga, principalmente com filmes violentos. Fincher parece às vezes aquele fotógrafo que vai cobrir uma passeata e acaba participando dela.

1328) As árveres somos nozes (15.6.2007)



Está no YouTube, a caverna de Ali Babá do video alternativo. Tudo está no YouTube, desde vídeos domésticos até turmas de jovens bêbados acenando para a câmara até videocassetadas e clássicos do cinema mudo. O vídeo de que falo hoje é um desses sucessos efêmeros que todo mundo vê e todo mundo recomenda a todo mundo. As febres do YouTube são assim, rápidas, intensas, logo substituídas por uma febre semelhante em torno de um produto diferente. Algum tempo atrás, a febre era em torno de “Tapa na Pantera”, um video de uns 10 minutos com uma atriz cinqüentona elogiando os efeitos da maconha (efeitos que aliás são visíveis na protagonista durante todo o depoimento). Muito engraçado, mas não se compara ao caso em pauta.

O caso em pauta é um vídeo de pouco mais de 3 minutos cuja parte principal é a trilha sonora: duas pessoas tentando ensinar um sujeito a repetir a frase: “O jardineiro é Jesus, e as árvores somos nós”. Trata-se de uma gravação original em áudio, com desenhos rudimentares que ilustram e comentam as besteiras que escutamos. Porque o camarada simplesmente não consegue repetir a frase. Tem horas que ele parece débil mental, tem horas que parece alcoolizado, ou que parece fazer de propósito – enfim, ele diz: “O zardineiro é Zesus...” Aí é interrompido: “Não, não. O jardineiro é Jesus, e as árvores somos nós”. Ele tenta de novo: “O jardineiro é Jesus, e as árveres...” Os outros o corrigem: “Ár-VO-res!” E ele: “Ár-VO-ROS!” “Não, não: as árvores somos nós” E ele: “As árveres somos nozes”.

Não vou repetir tudo porque perde a graça, e aliás não tem muita coisa fora isto. Já recebi desde janeiro uns 50 emails de gente conhecida e desconhecida me indicando este video, com link e tudo. E já devo tê-lo mostrado, em minha casa e na casa dos outros, a outras 50 pessoas. Por que? Creio eu que é pelo apelo irresistível do besteirol, uma das principais forças propulsoras da Internet. Fazer besteirol com cobrança de ingresso é coisa para profissionais como o Casseta & Planeta. Nem todo mundo está dispostos a pagar para ouvir isso. Mas na Internet você exibe sem pagar nem ganhar, e um milhão de pessoas assistem sem ganhar nem pagar. E fica tudo em casa.

O zardineiro é a Internet, esta capacidade incrível de semear idéias, sejam elas a Teoria do Campo Unificado Einsteiniano ou uma coroa elogiando o baseado. O jardeneiro semeia, espalha, pulveriza, ou – no idioma local – disponibiliza, e as pessoas chovem sobre aquilo como abelhas chovem sobre as flores, transformando-se em agentes involuntários da polinização. O YouTube é uma invenção recente de dois caras de 20 e poucos anos, e hoje vale bilhões de dólares. Eles são os jardineiros, são Chessús, são o grande mestre da sinapse social. E as árveres somos nozes, para o Bem e para o Mal, bebês engatinhando no novo patamar da comunicação, um mundo que para as gerações futuras será o único possível, e não conseguirão imaginar como era o mundo antes.

1327) Os homens que mataram o facínora (14.6.2007)



Com este título, inspirado no faroeste clássico de John Ford, o jornalista Moacir Assunção publicou (Rio, Ed. Record, 2007) mais uma obra na bibliografia sobre Lampião. Desta vez, o foco não cai sobre o cangaceiro, embora muita coisa seja dita sobre sua vida, sua família e seus combates. Como o título indica, Assunção se volta para os antagonistas de Virgolino Ferreira, tanto os que foram por ele próprio considerados seus inimigos mortais – seu ex-vizinho Zé Saturnino, o chefe de volantes Zé Lucena, quanto Mané Neto, um dos mais valentes perseguidores dos cangaceiros, e João Bezerra, o chefe da volante que em julho de 1938 surpreendeu o bando de Lampião na famosa Grota de Angicos e matou 11 deles, entre os quais o Capitão e sua mulher Maria Bonita.

Assunção é um jornalista dedicado, que além de consultar livros e jornais viaja pelos lugares onde os fatos aconteceram e entrevista os sobreviventes dessas epopéias sertanejas de quase um século atrás. A história do cangaço vive sendo reescrita sem parar, mas uma das coisas que mais prejudicam sua compreensão é o intenso emocionalismo de muitos que escrevem contra ou a favor. Para uns Lampião era um criminoso sádico, interesseiro, bajulador de coronéis; para outros, um cavaleiro andante combatendo injustiças, perseguido por governos corruptos e policiais sanguinários. Ora – como se diz por aí, “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Relatos imparciais são sempre bem vindos, quando mais não seja para colocar os fatos em primeiro plano.

O livro tem histórias trágicas, episódios curiosos. Um detalhe interessante é a menção ao combate em 1924 entre Lampião e as forças de Teophanes Ferraz Torres, perto da Lagoa do Vieira (PE); ferido no pé, Lampião passou 40 dias escondido na Serra do Catolé, nas proximidades da Pedra do Reino, ou Pedra Bonita.

Uma história que me comoveu foi a do massacre da família Gilo, na Fazenda Tapera (PE). Um cabra de Lampião chamado Horácio Grande era inimigo do fazendeiro Manoel Gilo, e falsificou uma carta em nome dele, insultando e desafiando Lampião. Lampião foi até lá com o bando, e depois de uma noite de tiroteio matou 13 pessoas entrincheiradas na casa da fazenda. O velho Manoel foi o último: trazido à presença de Lampião, afirmou que não tinha mandado carta alguma, até porque não sabia escrever, e que o autor da mentira era Horácio. Este puxou do revólver e matou o fazendeiro ali mesmo. Fosse eu o Rei do Cangaço, o tal do Horácio não ficava vivo nem mais um minuto. Lampião limitou-se a expulsá-lo do bando.

O livro de Assunção não tem a profundidade interpretativa de outro que estou folheando, Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Melo. Como a maioria dos livros sobre cangaço, é uma recolha de episódios contados e recontados de diferentes pontos de vista. Pertence ao que poderíamos chamar de “história oral preservada por escrito”.

1326) O preconceito de gênero (13.6.2007)


(Raymond Chandler)

Tem certas perguntas que já me preparei para responder pelo resto da vida. Uma delas é: “A ficção científica é sub-literatura?” Troque “ficção científica” por “literatura policial, de terror, etc.” e calcule os milhares de vezes que um sujeito tem que suspirar e puxar do bolso a mesma resposta. Não, não é. Nenhum gênero literário é uma garantia de sub-literatura “a priori”, assim como nenhum deles é garantia de Obra de Arte “a priori”. Um gênero é um conjunto de regras, de convenções formadas espontaneamente pelos que o praticam. Cada obra brota do zero, e o ponto de qualidade que ela vai atingir depende apenas do artista.

Assim como existe o preconceito negativo contra alguns gêneros, existe um “preconceito positivo” com relação a outros. Alguns praticantes do “romance social”, por exemplo, consideram que basta ser um romance “que exprime a realidade social de um país” para que qualquer livro escrito sob essas convenções narrativas seja uma Obra de Arte. Pois não é. Pode ser um livro bem intencionado, cheio de princípios nobres e de disposição para retratar o país, etc.; e com tudo isso pode ser um livro literariamente péssimo. Sub-literatura. Os exemplos são inúmeros.

O erro contra os gêneros (principalmente os que têm popularidade) têm várias razões. Uma delas é a desinformação dos elitistas. Um sujeito elitista é exigentíssimo, não lê qualquer coisa, não escuta qualquer coisa. Com o tempo, vai se parecendo com aquele cientista que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até “saber tudo sobre nada”. Já vi crítico literário dizendo: “Admirável Mundo Novo não é ficção científica, é literatura”. É o mesmo que alguém dizer: “Hamlet não é uma tragédia elizabetana, é uma peça teatral”.

Eu talvez nem devesse dar exemplos com ficção científica, que, bem ou mal, até que não é muito vilipendiada em nosso país. Mas em nossa imprensa temos pelo menos dois termos que equivalem a uma verdadeira maldição, anátema, condenação prévia. São eles “axé music” e “auto-ajuda”. Quando alguém quer recorrer a um exemplo extremo de má qualidade, de banalidade, de ausência de talento, joga um desses termos na mesa e estamos conversados. Não precisa explicar por quê. “Todo mundo sabe” que esses dois rótulos só se referem a coisas que, por definição, não prestam.

O sujeito elitista não ouve axé-music porque parte do princípio de que esse gênero de música é incapaz de produzir uma boa canção. Está errado. O mesmo vale para o livro de auto-ajuda, e para o filme de super-heróis, e para a peça besteirol, e assim por diante. Raymond Chandler dizia que o grande escritor é o que consegue produzir uma grande obra dentro de uma forma pobre ou desgastada. Quanto maiores as limitações do gênero escolhido, maior o mérito do artista e da obra que o elevaram. É como o jogador de futebol que consegue “dar um drible em cima de um lenço”, ou seja, com pouquíssimo espaço disponível.

domingo, 25 de outubro de 2009

1325) “Cangaceiros” (12.6.2007)



Cangaceiros, de José Lins do Rego, é um romance que enxerga o cangaço pelo lado de fora, ou em volta dele. Em vez de descrever o dia-a-dia dos cangaceiros, seus combates, suas fugas, prefere contar a vida das pessoas que são parentes ou amigas dos cangaceiros, que pensam neles o tempo todo, que os temem, que os protegem, que torcem por eles ou contra eles. A toda hora chegam-lhes relatos das façanhas e das crueldades praticadas tanto pelos cangaceiros quanto pelas volantes de soldados que os perseguem. A trama acompanha Bento, irmão do cangaceiro Aparício. Através dele, na fazenda onde que se refugia, ficamos vendo a quantidade enorme de boatos, de lendas, de informações falsas e de histórias mal contadas que cercam a atividade desses indivíduos, num Sertão da década de 1920, carente de comunicações e de estradas.

A literatura de Zé Lins desenvolveu um monólogo interior com feição própria, extensos parágrafos que se expandem por páginas e mais páginas, nos quais ele acompanha as idas e vindas do pensamento do personagem, seus avanços e recuos, suas decisões, hesitações, suas intermináveis discussões íntimas nos momentos de ameaça ou de crise. Como Zé Lins usa um vocabulário claro e direto, o leitor acompanha sem muito esforço essas reviravoltas mentais sem perceber o labirinto de idéias em que está se metendo.

O livro, que aliás é uma continuação direta de “Pedra Bonita”, formando com ele uma unidade sem cesura, mostra um enorme entendimento do autor da mecânica social do ambiente que descreve, e uma grande familiaridade com usos e costumes, resultado de uma memória vívida, de um ouvido infalível. Isto lhe permite criar personagens de peso como os três irmãos Vieira: o cangaceiro Aparício, o pacífico Bento, e Domício, o poeta cantador que acaba enveredando pelo cangaço.

Mas os dois grandes personagens do livro são para mim os dois neuróticos. O primeiro é o Capitão Custódio, desmoralizado pela vergonha de ter visto seu filho ser morto pelo Coronel Cazuza Leutério e nada ter feito para vingá-lo. O código de honra do Sertão da época não admitia que um pai não vingasse o assassinato do filho, e o Capitão remói sua culpa e sua humilhação em todas as cenas em que aparece. O outro personagem é o Mestre Jerônimo, que foi embora do Brejo por ter cometido um crime de morte, não gosta do Sertão, e vai pouco a pouco entrando num delírio paranóico equivalente ao do Capitão Custódio. São dois personagens trágicos, que mostram o remoer de angústias e ansiedades que existe às vezes por trás da fisionomia impenetrável do sertanejo. Numa interiorização progressiva de culpas, ressentimentos, humilhações e medos, os dois vão sendo consumidos de dentro para fora diante dos nossos olhos. Quando Bento procura fugir dali, nos últimos capítulos, está fugindo ao terrível futuro que o ameaça, o de se tornar um cangaceiro como os irmãos ou um doido como os seus dois protetores mais velhos.

1324) O que faz um best-seller (10.6.2007)



Ninguém sabe o que faz um livro tornar-se sucesso de vendas. De vez em quando aparece por aí um Nome da Rosa, Código da Vinci, Alquimista e vende horrores. Por quê? Ninguém sabe: nem o autor, nem o editor, nem as pessoas que estão comprando, porque ao lado livro daquele tem outro, do mesmo autor, ou sobre o mesmo assunto, que está entregue às moscas.

Um dos grandes sucessos da década de 1980 foi Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. O editor Caio Graco Prado era amigo do rapaz, que nunca tinha escrito um livro, e sugeriu-lhe escrever suas memórias. Marcelo era filho de um deputado de esquerda “desaparecido” pela ditadura, e tinha ficado paraplégico ao dar um mergulho de mau jeito. Apesar disso, era um sujeito “alto astral”. Caio Graco encomendou-lhe um livro prometendo que iria vender uns 30 mil exemplares. Vendeu 500 mil; está vendendo ainda hoje. Ninguém sabe por quê – ou melhor, depois que acontece, todo mundo acha que sabe, e toda vez que tenta repetir a receita, não dá certo.

Curtis Sittenfeld, autora do recente best-seller Prep não sabe por que motivo seu livro (no qual a própria editora não botava muita fé) vendeu 133 mil cópias em capa-dura e mais 329 mil em edição de bolso, além de ter sido negociado para 25 países e para o cinema. Tanto a autora quanto os editores foram colhidos de surpresa por uma resposta totalmente desproporcional à sua expectativa. “Na maior parte do tempo, é uma profissão regida pelo acidente,” diz William Stratchan, da Carroll & Graf. “Se alguém tivesse a chave do segredo, seria muito rico, mas ninguém a tem”.

Uma mudança interessante – e bem ao espírito capitalista – ocorreu em anos mais recentes, com a Internet. A facilidade e rapidez na troca de informações faz com que os editores de hoje possam pesquisar seu mercado quase tão bem quanto as redes de TV ou os estúdios de cinema. Num saite como a Amazon.com, leitores deixam páginas inteiras de comentários, fazem listas de livros preferidos, e de certo modo traçam um perfil da multidão silenciosa que consome livros. Os Blogs de leitores também são importantes neste processo. É um bom sinal? Não creio. Uma das melhores coisas no mercado do livro é a imprevisibilidade do próximo sucesso. No dia em que o mercado leitor puder ser passado num pente-fino pelos Ibopes especializados, aí sim, o livro vai mesmo ser tratado como se fosse um detergente ou um sabonete.

Nos EUA, diz o agente Eric Simonoff, as outras indústrias ficam perplexas com o rudimentarismo da indústria editorial: “porque é tão imprevisível, porque as margens de lucro são tão pequenas, os ciclos são tão longos, e pela ausência quase total de pesquisa de mercado”. Para nós, autores e leitores, isto são boas notícias. Tremo-na-base ao pensar no dia em que um gerente de marketing vai me estender dez laudas de pesquisas tabuladas nos mínimos detalhes e dizer: “Está tudo aqui, agora só falta escrever o livro”.

1323) A solidão do tenista (9.6.2007)



A TV a cabo está exibindo o torneio de tênis de Roland Garros, onde o nosso Guga foi campeão três vezes e ficou na História como o maior tenista brasileiro de todos os tempos. Devido ao fuso horário não vejo esses torneios ao vivo (passam de manhã), acabo vendo o VT durante a tarde, tendo antes o cuidado de não assistir o Globo Esporte – assim não sei quem ganhou, e é como se o jogo não tivesse acontecido ainda.

Sempre sonhei (ainda sonho) em ser jogador de futebol. Mas se pudesse voltar no tempo e escolher um esporte como vocação, missão e profissão, eu escolheria o tênis. O futebol é um jogo coletivo, onde ficamos à mercê do talento dos companheiros, da sorte ou azar dos companheiros, etc. No tênis, é o cara, a bola e a Providência Divina. Mais nada. Existe o lado negativo de não ter com quem comemorar e compartilhar a alegria das vitórias; mas tem o lado positivo de não se poder botar a culpa em outras pessoas. O tênis é um exemplo do individualismo no que ele tem de mais pesado, no sentido de tomar decisões sozinho e assumir responsabilidades sozinho.

Há um filme do “Free Cinema” inglês, de Lindsay Anderson, cujo título é: The loneliness of the long-distance runner. A solidão do corredor de longa distância – o maratonista, o cara que faz “cross country”, etc. Aplica-se também ao tenista, que por 2 ou 3 horas enxerga à sua frente apenas a raquete, a bola, a rede, a quadra, o adversário. É um esporte que exige uma concentração enorme, uma enorme capacidade de não fraquejar, não se desorientar, não se afobar, e isto sem um instante sequer para descontrair. No futebol ocorre às vezes do jogador ficar quatro ou cinco minutos sem participar do jogo: tudo está acontecendo do outro lado, a bola não vem para onde ele está. No tênis, a bola está vindo na sua direção o tempo todo, horas a fio, sem parar.

Num desses torneios conquistados por Guga houve um ponto decisivo. Ele começou mal o jogo, estava perdendo, e chegou um momento em que o adversário tinha o chamado “match point”: se ganhar aquele ponto, ganha o jogo. O cara sacou, Guga defendeu, ficaram trocando bolas, e ele ganhou o ponto. Aí disputou e ganhou o ponto seguinte. E ganhou aquele “game”. Ganhou o “game” seguinte. E o outro. E o outro. Ganhou o set, e o próximo set, e foi em frente até vencer a partida. Continuou no torneio, e acabou sendo o Campeão. Mas o título inteiro dependeu daquela jogada solitária em que houve uma troca de bolas durante a qual Guga sabia que se errasse perdia o jogo e estava fora do campeonato.

O tênis é uma disputa em que o cara pode ir de 1% de chances a 99% de chances (ou vice-versa) em questão de meia-hora. É um jogo de personalidades. Disse um comentarista que o nível atual de preparação técnica é tão grande que os títulos são decididos por fatores puramente emocionais: autocontrole, concentração, calma, obstinação, persistência infatigável. Pense numa coisa parecida com a Literatura!

1322) Os piratas e os sebistas (8.6.2007)



Sou freqüentador de sebos (livrarias que vendem livros usados) há mais de meio século. Cerca de dois terços dos livros que possuo em casa foram comprados em sebos ou equivalentes (calçada, banquinhas de rua, etc.). Por que? Primeiro, pelo preço. Um livro que na livraria custa 50 reais pode ser encontrado na calçada ou no sebo por 20 ou menos. Segundo, pela escassez. Uma livraria, por mais boa vontade que tenha para com um livro de cinco anos atrás, só o mantém no balcão ou nas paredes se ele estiver vendendo bem. Se eu quero um livro que não é novidade de catálogo, é mais provável que o encontre num sebo do que numa livraria. Em terceiro lugar, por algo que faz fronteira com a escassez, mas é outra coisa: a improbabilidade. Em livrarias a gente só encontra o que foi visto pelo livreiro num catálogo, pensado, discutido, encomendado à editora. Em sebo a gente vê de tudo, principalmente bibliotecas inteiras de colecionadores que passaram a vida reunindo coisas obscuras e que, quando morrem, a viúva se livra daquilo tudo a preço de banana em menos de um mês. Para onde vai? Para o sebo.

Num sebo (ou numa calçada) encontrei algumas raridades que me orgulho de possuir: A Liga dos Planetas de Albino Coutinho, o primeiro romance interplanetário brasileiro, de 1923; uma primeira edição de A Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls, pela qual teria pago 100 reais mas o cara me ofereceu por 1 real; uma primeira edição das Vies Imaginaires de Marcel Schwob (1896), que inspirou Borges a escrever sua História Universal da Infâmia, e que achei por 10 reais; as traduções de Edgar Poe feitas por Baudelaire em reedições da década de 1890; a primeira edição de Sagarana, de Corpo de Baile. Tudo isto a preço de banana.

Nada disto poderia ser encontrado numa Saraiva ou numa Siciliano. Nem sequer numa Travessa, Cultura ou Leonardo da Vinci. O sebo é a província do imponderável, do inesperado, do raro, do obscuro, daquilo que deixou de existir um dia mas não foi obliterado de todo. Às vezes, um exemplar encontrado num sebo depois de cinqüenta anos leva um editor a dar vida nova a um livro ignorado, transformá-lo em sucesso póstumo.

Imaginem só se as livrarias oficiais, e os escritores, começassem a fazer campanha contra a existência do sebos, chamando aquilo de pirataria. Porque um sebo não paga um centavo às editoras, não paga um centavo ao autor. Se um livro meu vende na livraria eu ganho 10% do preço pago pelo leitor; num sebo, não ganho nada. Mas nem por isso temos o direito de combatê-los. O sebo prolonga a vida útil do livro, alcança o leitor de bolso raso, atinge o leitor jovem, atinge todos aqueles que têm muita curiosidade mas pouco dinheiro. Não são concorrentes da livraria. Trabalham noutra faixa de mercado. Há livros que comprei por 5 reais num sebo, meio estragadinhos, e que depois de ler corri a comprar um exemplar novo na livraria por 30 ou 40. Por que? Porque pude arriscar, e conhecer.

1321) O paradigma indiciário (7.6.2007)




Há conceitos considerados o “sine qua non” da Ciência: exatidão, possibilidade de quantificação (reduzir tudo a números e estatísticas), previsibilidade de resultados, controle total dos processos, etc. Governos modernos e tecnocráticos, p. ex., trabalham em função disso. Ora, a predominância de tais conceitos se deve ao desenvolvimento de ciências como a Física, a Astronomia, a Química, etc., a partir do século 17. Alguns chamam a esse conjunto de conceitos “o paradigma de Galileu”, porque foi o grande experimentador italiano quem, de certo modo, deslanchou essa revolução.

Daí vem a desconfiança que os cientistas dessas áreas têm, p. ex., com as Ciências Médicas e as Ciências Sociais, cuja relação com o mundo não se reduz aos mesmos termos. (Embora tentem: os Economistas, por exemplo, são um caso à parte.) Li a transcrição parcial de um artigo de Carlos Ginsburg (em Mitos, Emblemas e Sinais, Cia. Das Letras) onde ele tenta fazer um do-in nesse ponto inflamado do conhecimento humano. Diz ele: “O verdadeiro obstáculo à aplicação do paradigma galileano era a centralidade maior ou menor do elemento individual em cada disciplina. Quanto mais os traços individuais eram considerados pertinentes, tanto mais se esvaía a possibilidade de um conhecimento científico rigoroso”.

Quer dizer – científico no outro sentido do termo. Não se pode criar um bebê como se constrói um edifício, e não se pode examinar uma pessoa doente como se examina um motor com defeito. (Como diz um médico amigo meu: “A principal diferença é que a pessoa sabe que está doente, e o motor não sabe que está defeituoso”) Tudo que envolve matéria orgânica apresenta complicações que a matéria inorgânica não tem. O que é físico e biológico é mais complexo do que o que é apenas físico. O que envolve a consciência envolve maiores complexidades. Tudo que envolve o relacionamento social é mais complexo ainda – embora, como alívio, o comportamento dos grupos sociais possa ser previsto estatisticamente, assim como pode-se prever estatisticamente o movimento coletivo das partículas sub-atômicas.

Diz Ginsburg que é necessário criar um paradigma “fundado no conhecimento científico do individual”. É o que pedem as disciplinas “indiciárias” (que incluem a medicina), onde tão importantes quanto as verdades genéricas sobre a espécie, etc. são os indícios específicos que aquele indivíduo fornece ao examinador e que caracterizam o seu caso – o qual tanto pode ser mediano e típico como pode ser extraordinariamente raro, e nem por isso menos cientificamente real. Quando nos queixamos de que o médico do nosso Plano de Saúde faz duas ou três perguntas, olha nossa língua e depois receita um antibiótico, sabemos por intuição que ele está se recusando (por negligência ou por exaustão de carga horária) a procurar o que nosso caso tem de único e específico, e que talvez seja crucial para nossa cura.

1320) A maldição da morte burra (6.6.2007)




Que sedução tem sobre nós a morte burra? A morte que não é suicídio, mas um acidente cruel e gratuito – ou procurado às cegas, como quem pisa no acelerador e fecha os olhos. Quando pequeno eu me admirava da história do almirante inglês que venceu batalhas, sobreviveu a naufrágios, e uma noite, ao voltar para casa, tropeçou, caiu com o rosto numa poça na calçada e morreu afogado. Ou com a história do sujeito que estava bêbado no apartamento, foi até a varanda e começou a urinar do alto do décimo andar, mas aí o jato líquido tocou num fio de alta tensão e ele morreu eletrocutado. Sem falar em mortes famosas como a do dramaturgo Ésquilo: ele estava numa praia onde as águias costumavam erguer tartarugas com as garras e soltá-las lá de cima sobre as pedras, para partir sua carapaça e poder devorar o recheio. Uma águia pouco observadora soltou uma tartaruga lá do alto sobre a cabeça calva do autor de Prometeu Acorrentado. (Mas, como ele próprio disse um dia, melhor morrer de repente do que sofrer eternamente)

Nos EUA foi criado o Prêmio Darwin (http://www.darwinawards.com/) para homenagear simbolicamente aqueles indivíduos que morrem de morte burra. Não me refiro a mortes involuntárias, como a de Ésquilo, mas àqueles acidentes que contam com a colaboração do acidentado, fazendo alguma enorme bobagem e perdendo a vida em conseqüência. Chama-se “Prêmio Darwin” porque os organizadores consideram que o cara que morre assim colabora para a conservação da espécie, deixando vivos apenas os indivíduos mais inteligentes do que ele. É o caso, por exemplo, do sujeito que depois de limpar um depósito de gasolina entrou nele e acendeu um fósforo para saber se tinha ficado algum restinho (e foi parar a cem metros de distância), ou do casal britânico que, certamente inspirado pela canção dos Beatles “Why don’t we do it in the road?” parou o carro no acostamento, à noite, e foi fazer sexo no meio da rodovia.

Vocês acham que ser engolidor de espadas num Circo é coisa arriscada? Mais arriscado ainda é fazer como fez um deles na Alemanha, que engoliu um guarda-chuva e por distração apertou o botão que o abria. Ou o advogado de Toronto que, para mostrar a visitantes o quanto o vidro de seu escritório era à prova de impacto, arremeteu contra ele com o ombro, estilhaçou a janela e caiu vinte andares. Tem também o casal americano que foi fazer “rappel” numa ponte por onde passa uma via-férrea: prenderam as cordas, e desceram, pendurados sobre o abismo, curtindo o panorama até que o trem veio e cortou as cordas – que estavam amarradas aos trilhos.

Morrer de um acidente ou de uma bala perdida pode acontecer com a mais precavida das pessoas. Mas existe gente que, numa mistura de imprudência, distração ou insensatez, parece procurar uma morte que jamais lhe aconteceria mesmo na mais improvável combinação de circunstâncias. Só aconteceu porque a vítima obrigou o Acaso a matá-la.



1319) Um cara que escreve bem (5.6.2007)


(François Villon)

Vi uma vez em algum artigo de revista uma frase cujo autor não recordo, mas, na falta do autor, vá a frase sozinha. Discutia-se o caráter de um certo literato, e no meio de críticas amargas ao seu perfil moral o comentarista saiu-se com esta: “Mas, vamos deixar pra lá. Um cara que escreve bem não pode ser um canalha completo”. Isto me sossegou pelo resto da vida até agora, porque eu sempre me havia deparado com este aparente paradoxo: canalhas irremediáveis que, no entanto, pintavam maravilhosamente, ou jogavam um futebol de encher as vistas, ou dirigiam filmes belíssimos, etc.

Talento e bom caráter não são sinônimos, e vou mais longe: não são coisas que tenham muito a ver uma com a outra. Se assim fosse, todo sujeito de espírito bom seria também um excelente profissional em sua atividade. Ser um artista de talento, em qualquer atividade, requer uma noção intuitiva de harmonia, equilíbrio, obediência a normas, capacidade de inovação, uma série de virtudes estéticas que, mesmo que não se estendam ao nível da Ética (que sempre é mais problemático) fazem com que pelo menos naquele terreno específico o cara demonstre virtudes. Pode ser um desorientado, um bruto, um sangue-ruim, um calhorda, mas não o é por completo. Alguma coisa nele se salva.

Quando falamos em casos assim, alguém sempre se sai com exemplos de escritores criminosos, como o poeta François Villon ou o Marquês de Sade; mas estes são casos extremos, que pelo próprio extremismo não valem como regra, e sim como exceção. A regra, no mundo literário e artístico, é o mau caráter em escala cotidiana: o poeta brilhante que dá calote em todo mundo, o romancista vigoroso que bate na mulher mais vigorosamente ainda, o cineasta que trata a equipe a pontapés, o jornalista que faz da mentira gratuita uma atividade remunerada, o roqueiro que cospe nos fãs e arrebenta quartos de hotel. Ou então é simplesmente o Gênio que é um Chato. Coisa mais freqüente do que podemos imaginar. Tudo que o cara tem de bom sai nos seus escritos, mas ninguém agüenta passar uma tarde conversando com ele.

Será que o talento redime sujeitos assim? Pelo que posso imaginar, os defeitos pessoais tendem a se esvair anos após a morte do sujeito, enquanto o seu talento, se for um talento real, vai ficando mais encorpado e mais visível. Que sabemos nós, afinal, da pessoa de Camões ou da de Michelangelo? Não mais que algumas páginas de dados biográficos. Talvez, se pudéssemos conversar com algum contemporâneo seu, ouviríamos algo como “Pelo amor de Deus, esse cara era insuportável, ninguém agüentava ele, só conseguia se manter porque as coisas dele faziam sucesso...” Do mesmo modo, fico imaginando que certos figurões intragáveis de hoje (mas talentosos) serão endeusados daqui a cem anos como se fossem anjinhos, e os pósteros comentarão entre si: “Coitado, foi tão incompreendido em vida... Realmente, era um indivíduo à frente do seu tempo”. E não terão entendido nada.

1318) A função da gíria (3.6.2007)



A favor ou contra a gíria? Eu sou a favor – dentro dos parâmetros! Apóio qualquer coisa que venha para tornar nossa relação com a língua mais rica, mais flexível. A Realidade é inesgotável, e precisamos sempre de novas maneiras de percebê-la e comentá-la. 

Volto ao tradicional exemplo dos esquimós, que têm dezenas de palavras diferentes para descrever a neve. Não é por serem desocupados ou porque são barrocos. É porque vivem cercados de neve, neve á uma coisa essencial para suas vidas, e é importante para eles distinguir dezenas de tipos diferentes.

A gíria vem muitas vezes para sacramentar a existência de uma nuance que existia na prática, era percebida por todo mundo, mas faltava uma palavra exata para ela. É a mesma coisa que na Matemática: existia um conceito que não era satisfeito pelos números naturais, porque nem era 3 nem era 4. Era mais do que 3, mas era menos do que 4. Aí chegou um gênio e inventou o 3,5. E com ele todas as nuances infinitesimais decorrentes deste gesto fundador. 

Pois na língua é a mesma coisa, e a gíria funciona como (anotem; estará nos dicionários daqui a meio século) o sistema fracionário e intersticial da nomenclatura, um sistema aberto, tipo Linux, de contribuições semânticas dos usuários.

A gíria é muitas vezes um erro voluntário para introduzir uma mutação numa palavra insuficiente para cobrir a área de significação desejada. Vou dar um exemplo de uma gíria campinense: o Pertubado (assim mesmo, sem um “R”). Todo mundo tem um amigo ou um conhecido que é descrito assim. “Sabe quem é Fulano de Tal?” “Conheço, é um pertubado que mora na Otacílio de Albuquerque”. O “pertubado” é um indivíduo encrenqueiro, difícil de lidar, pessoa problemática que acaba gerando confusão onde quer que se meta. Não é necessariamente um mau caráter, um mau sujeito. Muitas vezes é – ou seria – um cara até legal. Só não é legal porque é um pertubado.

Atenção, revisores: o detalhe está na grafia, porque se colocar a palavra gramatical, “perturbado”, estraga tudo. Tem que tirar esse segundo “R”, para distinguir a palavra nova da palavra anterior de onde deriva. 

Introduz-se um ruído, e esse ruído é, na Língua como na Literatura, a informação, a criação, a novidade. A gíria é a introdução de um erro aparente para suprir uma lacuna da língua, criando uma palavra que se encaixe com exatidão naquela categoria ainda sem nome que percebemos mas que só podíamos referir através de longas descrições, de circunlóquios.

As gírias são bem-vindas quanto aumentam nossa capacidade de expressão, e são mal-vindas quando a diminuem. (Ninguém usa dizer “mal-vindas”, não é mesmo? Pois eu uso.) 

Gírias são contribuições individuais para o todo, e seria uma pena se o surgimento de uma nova gíria cancelasse as anteriores, ou tornasse obsoleto o vernáculo tradicional. Em casos assim, a gíria seria uma perda, uma subtração à língua, um encolhimento, um sinal de decrepitude à vista.





1317) Douglas Hofstadter (2.6.2007)




Douglas Hofstadter é um dos indivíduos mais inteligentes que eu já vi. Muitos textos sobre Ciência que aparecem nesta coluna comentam assuntos extraídos dos seus livros. 

Três deles ocupam lugar de honra na minha estante : 

Godel, Escher e Bach (1979), um ensaio sobre inteligência artificial, consciência, linguagem e significação, com pontos de partida extraídos da Matemática (o Teorema de Godel), das Artes Plásticas (as gravuras de M. C. Escher) e da Música Barroca (as obras de Bach); 


Metamagical Themas (1985), uma enorme coletânea dos artigos que ele publicou durante vários anos na revista Scientific American, nos quais fala de computação, física, design, biologia, Teoria dos Números, cubo mágico, ativismo ambiental etc.; 


e Le Ton Beau de Marot (1997), em que ele retraduz compulsivamente um curto poema francês do século 19 e desafia outras pessoas a fazerem o mesmo, o que redunda em centenas de traduções, paródias e pastiches, além de longas elucubrações sobre linguagem, poesia e semiótica.



Uma preocupação de Hofstadter é definir o que é consciência: como nosso pensamento elabora e manipula conceitos, e como isto pode ser transmitido de uma mente para outra, de um idioma para outro, de uma linguagem-de-computador para outra, e assim por diante. É fascinante vê-lo comparar a linguagem das valsas de Chopin com a linguagem das fugas de Bach, e mostrar as estruturas expressivas que existem numa coisa tão artificial e abstrata quanto a música. 

Igualmente provocativo é ver suas discussões sobre a maneira como projetamos significado num sinal gráfico (a escrita), num gesto, numa expressão facial, etc. Lendo seus textos, percebemos que a mente humana é uma máquina de produzir significado, de traduzir o novo e o desconhecido em termos do que é velho e conhecido, e ao mesmo tempo de produzir idéias e formas totalmente novas nos contextos e nas circunstâncias mais inesperadas.

Hofstadter deu uma entrevista recente a Jorge Pontual no canal GloboNews, da GloboSat. Perguntado sobre o que diferencia a mente humana da mente dos animais, ele citou um exemplo que lhe ocorrera poucos dias antes: de madrugada, numa loja de conveniência, ele viu o caixa correr atrás de uma freguesa e devolver-lhe uma nota de 10 dólares que ela esquecera de pegar. 

Ele compara isto com a inacreditável capacidade de nosso cérebro para gerar conceitos abstratos, e dá como exemplo algo como: “Cancelamento de assinatura de revista de sinopses de séries televisivas”, algo que intuitivamente entendemos do que se trata, mas que para existir consiste num empilhamento de incontáveis níveis de fatos sociais e de abstrações resultantes destes fatos: “O que é TV? O que é série? O que é revista? O que é assinatura?”. 

Comparando nossa imensa capacidade intelectual e nosso impulso moral de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados (devolvendo os 10 dólares), Hofstadter nos faz recuperar a nossa fé no futuro da espécie humana.






sábado, 24 de outubro de 2009

1316) “Sergeant Pepper’s” (1.6.2007)




“It was twenty years ago today...” 

Não, não foi há vinte anos, e sim há quarenta. Em 1 de junho de 1967 a gravadora EMI colocou nas lojas um LP dos Beatles com o excêntrico título (para a música da época) de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. A capa era mais excêntrica ainda: os quatro Beatles apareciam todos de bigode, vestindo uns uniformes de banda-de-música, cheios de galões, dragonas e alamares – e cercados por uma colagem de fotos de gente que passamos as semanas seguintes identificando e anotando num caderno. 

Outra excentricidade: o disco tinha capa dupla, abria-se ao meio como um álbum, e (eu não quis acreditar quando vi, considerei aquilo um favor pessoal de Deus para comigo) as letras vinham todas impressas na contracapa. Escusado dizer que decorei todas, e sei a maioria até hoje.

Quem me revelou o Pepper’s foi o saudoso e sempre presente Jakson Agra, na sua casa da Rodoviária Velha. No tempo do Cineclube de Campina Grande, era ali que nos reuníamos para ouvir música e conversar sobre cinema, poesia, política, e tudo o mais. (Para que ninguém pense que éramos uns intelectuais pedantes, vale lembrar que também jogávamos pôquer e Olho Vivo, comíamos rapadura com coco verde, e falávamos da vida alheia). 

Sergeant Pepper’s, com sua profusão barroca de orquestrações e efeitos eletrônicos, ícones “pop” e “melting pot” político, era a cara daquele tempo. Foi a primeira e talvez única vez em que uma capa de disco popular fotografou um século por inteiro.

O disco foi repetidamente eleito como o “melhor disco de rock” de todos os tempos, embora de rock mesmo ele tenha muito pouco. (Prefiro a distinção de Roberto Muggiatti, de que “rock-and-roll” é o que Chuck Berry e Elvis Presley faziam, e “rock” é o que os Beatles inauguraram nessa época) 

Hoje, há um consenso em achar que Revolver (1966) lhe é musicalmente superior (com o que eu concordo), mas Pepper’s introduziu o “disco conceitual”, sendo composto e gravado como se se tratasse do trabalho de uma banda fictícia, com as canções se sucedendo sem interrupção. Teve seus excessos, que as gerações de roqueiros futuros, previsivelmente, e sensatamente, desancaram.

O fato é que os Beatles são um desses casos raros em que alguém conquista dinheiro e poder quase ilimitados, e em vez de utilizá-los apenas para seu próprio lazer e enriquecimento, prefere reinvestir tudo aquilo nos seus próprios meios de produção, e muda para sempre uma arte, um mercado, uma visão do mundo. 

Nesse momento em que podiam tudo, os Beatles introduziram na música popular o experimentalismo eletrônico, a filosofia oriental, o cinema de vanguarda e muito mais. Criaram pontes entre universos que até então se ignoravam. 

As portas que eles abriram há quarenta anos nunca voltaram a se fechar, e são tão largas que a galera que veio depois achou desnecessário abrir outras. A música “pop” de hoje, a boa e a ruim, é filha daquele disco.