domingo, 31 de julho de 2011
2623) Dicionário Aldebarã (31.7.2011)
A civilização humanóide de Aldebarã-5 possui uma complexa civilização muito influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza de seu planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.
“Espyrygh”: a sensação repentina que experimentamos quando abrimos uma porta num corredor, ou na casa de alguém, e constatamos que era a porta errada.
“Sassdikl”: pequenas caixas metálicas colocadas nas esquinas, nas quais os transeuntes depositam esmolas e os mendigos retiram a quantia que estão necessitando no momento.
“Chiskortin”: conspiração ou golpe vigarista em que duas pessoas fingem não se conhecer para criar uma situação em que possam abusar da credulidade de uma terceira.
“Lumbanq”: pequeno roedor silvestre que os aldebarãs alimentam com ervas variadas e amarram a uma árvore, cujo tronco ele esculpe com os dentes, em arabescos muito apreciados pelo mercado de artesanato local.
“Endobs”: verrugas de pele que costumam inchar e ficar doloridas quando um aldebarã se aproxima de um local onde pode correr risco de sofrer um acidente grave.
“Nulti-nulti”: jogo em que cada participante põe numa lata um número qualquer de pedrinhas e tira outro número, e no final ganha quem adivinhar quantas pedrinhas restaram.
“Nhiabra”: espécie de talher que consiste em duas colheres justapostas, com o qual se aperta a comida, transformando-a num pequeno bolo compacto e misturado.
“Irnizz”: sentimento muito presente em membros de uma mesma família, que sabem não ter nenhum motivo concreto para não aguentar a presença constante dos parentes, mas não aguentam mesmo assim.
“Lobiond”: lençóis de cama recobertos por uma fina camada de âmbar, que produzem leves choques de eletricidade estática, muito apreciados pelos aldebarãs.
“Malôzis”: um tipo de pregação moral-religiosa dos sacerdotes aldebarãs que só se encerra quando todos os membros presentes da congregação mergulham em sono profundo, o que é considerado um contato com o Criador.
“Estlands”: pessoas que se conhecem apenas de vista e se cumprimentam, mas nada sabem sobre a outra e durante a vida inteira fazem conjeturas baseadas na mudança de roupas, de aparência, de atitudes, etc.
“Ostengy”: nome genérico para o hábito aldebarã de determinar de forma rígida e obrigatória o cardápio de alimentação das pessoas de acordo com sua faixa etária, punindo severamente os transgressores.
“Sflars”: conjunto de máscaras cerimoniais superpostas que o casal de noivos coloca na véspera do casamento e vai retirando sucessivamente ao longo da cerimônia, da festa e da noite de núpcias.
“Ollionys”: pequenos brinquedos que os fabricantes colocam dentro dos sabonetes para que as crianças os encontrem ao tomar banho.
“Gertiklans”: a irritação irracional que sentimos quando uma máquina não obedece nossos comandos.
sábado, 30 de julho de 2011
2622) “Meia Noite em Paris” (30.7.2011)
Woody Allen, um adúltero notório, acaba de trair sua esposa Nova York com a sedutora Paris, dando-lhe em seu belo filme Meia Noite em Paris um tratamento visual que lembra, a cada instante, uma tela de Van Gogh, ou de Utrillo, ou de Renoir. Ninguém ama tanto Paris quanto os norte-americanos, com a intensidade do amor que brota entre temperamentos conflitantes. Gil Pender é mais um da série de alter-egos que Allen (hoje com 75 anos) vem desenvolvendo desde que admitiu estar velho demais para fazer protagonistas engraçados e românticos. Acho que ele escolhe o ator (Kenneth Branagh, John Cusack, Josh Brolin, etc.; agora, é Owen Wilson) e o instrui para imitar meticulosamente os trejeitos, maneirismos e modo de falar de “Woody Allen”, aquele ator-personagem de quarenta anos atrás. Muitas vezes funciona.
Eu poderia tentar provar que Woody Allen se inspirou no brasileiro Malba Tahan para conceber esta história, em que um escritor norte-americano visita Paris e dá um jeito de voltar aos anos 1920 para conviver, durante a madrugada, com escritores e artistas daquele período. Em Sob o Olhar de Deus, de Tahan, o protagonista Célio Musafir tem um sonho em que visita o Paraíso, que, ao invés da infinita biblioteca postulada por Jorge Luís Borges, é uma espécie de clube, onde Musafir fica circulando, tomando uns drinques (não lembro bem o quê, mas como se trata do Paraíso deve ser refresco de groselha) e conversando com Charles Dickens, Mark Twain, Voltaire, Oscar Wilde e outros. Bobagem minha defender essa tese; qual o artista ou escritor que não já sonhou que se encontrava com seus ídolos e estes o tratavam de igual para igual? É divertido ver Gertrude Stein usando o termo “ficção científica” ou Man Ray ouvindo com atenção a descrição de Gil sobre o que lhe aconteceu e dizendo: “Ah, sim, você saiu de um universo e entrou em outro. E daí? Normalíssimo”.
O elemento fantástico do filme vem direto da série Além da Imaginação, onde a todo instante havia um trem, um automóvel, um elevador ou uma esquina conduzindo os personagens para um universo paralelo que os deslumbrava e lhes fornecia ensinamentos sobre o sentido da vida. Em outro seriado como Ilha da Fantasia, havia episódios em que surgiram personagens da história e da literatura para contracenar com os visitantes da ilha. Neste filme, Allen começa com uma premissa saudosista e nostálgica (“o passado era melhor”) e no final dá-lhe uma engenhosa dobradura crítica, voltando-a contra si mesma, com delicadeza e carinho. O filme é uma guinada imprevista na filmografia de Allen, que nos últimos filmes parecia acomodado a ser um reiterativo cronista conjugal. Midnight in Paris traz de volta uma mistura de lirismo e fantástico que ele explorou poucas vezes, mas sempre bem. O caráter cotidiano e reconhecível dos seus personagens ressalta melhor de encontro a um pano-de-fundo fantástico, como um pedaço de fotografia numa colagem de Braque.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
2621) Santos 4x5 Flamengo (29.7.2011)
Um jogo para ficar na História, e uma vitória espetacular do time por que a gente torce. Essas duas felicidades do futebol nem sempre coincidem; quando isso acontece, é coisa pra gente acender uma vela para cada Deus do Panteão romano. Aconteceu 4ª.feira passada. Santos e Flamengo fizeram na Vila Belmiro um jogo épico, com reviravoltas sensacionais, raros lances de violência, gols extraordinários e dezenas de jogadas brilhantes. Escrevo uma hora após o jogo, com a TV desligada e a cidade agora silenciosa. Por ironia do destino, não estou no Rio de Janeiro. Mas senti o chão tremer.
Em jogo de muitos gols e de muitas viradas, costumo fazer um esquema mental da ordem em que os gols foram marcados, e que contam a história do jogo. Santos, Santos, Santos, Flamengo, Flamengo, Flamengo, Santos, Flamengo, Flamengo. O Santos teve um começo arrasador com três gols que pareciam ter definido o resultado; o Flamengo sabe suprir a ausência de atacantes (Deivid é um caso patológico de incompatibilidade com a bola) com um meio de campo bem treinado na arte de costurar a bola e entrar na área. Fez três gols e se beneficiou da ousadia fora-de-hora de Elano que quis bater um pênalti com cavadinha; foi após a defesa de Felipe que o Fla empatou o jogo. (Uma bela cabeçada de Deivid, para ser justo; mas não é impossível que ele estivesse tentando fazer outra coisa). No 2º. tempo o Santos fez mais um e parecia que tudo ia recomeçar, mas Ronaldinho Gaúcho repetiu uma cobrança rasteira de falta que o vi fazer pelo Barcelona, e depois sacramentou a virada num contra-ataque mortal.
Note-se que ainda houve o pênalti perdido, e pelo menos um pênalti não marcado e um gol erradamente anulado para cada time. Não era uma pelada no Aterro, era um jogo de dois times de ponta, um recente campeão brasileiro e o atual campeão das Américas, e poderia perfeitamente ter terminado com um placar de 7x7 ou de 8x6 para qualquer um dos dois. O terceiro gol do Santos, de Neymar, foi uma gostosura de ver e rever. E vamos aplaudir os zagueiros, que tentaram o que foi possível, na bola, e não apelaram.
Jogos assim nos dão gás para continuar acreditando no futebol durante pelo menos mais um ano, assistindo peladas insuportáveis, pancadarias vergonhosas, partidas que são um verdadeiro concerto de trapalhadas de comédia pastelão. Deixamos de trabalhar, de namorar, de dar atenção à família ou aos amigos, de ler um bom livro, e nos plantamos feito idiotas na frente da TV na quarta-feira à noite ou no domingo de tarde. Por que? Porque vimos um jogo que redefiniu nossos parâmetros, e sabemos que tudo que acontece pode acontecer de novo. Isto não é uma verdade científica, mas é uma regrazinha que se repetiu tantas vezes em nossa vida que não custa nada levá-la a sério mais uma vez. Nada nos reconcilia tanto com o futebol quanto um jogo para ficar na História, um jogo que mesmo que a gente perdesse ficaria grato por ter vivido.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
2620) “The Incomplete Manifesto” (28.7.2011)
Bruce Mau é um designer que em 1998 produziu um manifesto estético conhecido como An Incomplete Manifesto for Growth (Um Manifesto Incompleto pelo Crescimento) ou simplesmente The Incomplete Manifesto. De certa forma seu manifesto se assemelha ao baralho de Estratégias Oblíquas do músico Brian Eno. O que são? De certo modo, um conjunto de pequenas instruções para ajudar um artista criador a sair de situações em que a criatividade emperra, ou a cabeça dá um branco, ou a gente se vê aprisionado num jeito-de-fazer-as-coisas que já deu o que tinha que dar. Enfim, o manifesto de Bruce Mau (está completo aqui: http://tinyurl.com/yamtgvd) tem 43 itens, coisa demais para comentar aqui, mas escolherei alguns que a meu ver merecem glosa.
“9) Comece em qualquer parte. John Cage disse que não saber por onde começar é uma forma muito comum de paralisia. Seu conselho: comece em qualquer parte”. Isto é um excelente conselho para quem escreve. Muitas vezes queremos começar já arrasando, com uma frase sensacional. É melhor começar dizendo qualquer coisa, e quando a frase sensacional aparecer, dê um jeito de mudar o começo para ali. Se não aparecer frase sensacional é porque você não é bom nisso, mude de abordagem.
“15) Faça perguntas estúpidas. O crescimento é alimentado pelo desejo e pela inocência. Avalie as respostas, não as perguntas. Imagine-se aprendendo durante a vida inteira à velocidade com que as crianças aprendem.” Algumas das perguntas bobas mais úteis que já fiz na vida, em variadas circunstâncias, foram: “Para que serve isto aqui?”, “Por que temos de fazer sempre desse jeito?”, “Quem é Fulano de Tal?”. Perguntar é menos estúpido do que continuar sem saber.
“27) Leia somente as páginas do lado esquerdo. Marshall McLuhan fazia isto. Diminuindo a quantidade de informação, deixamos espaço para o que ele chamava ‘nossa cuca’.” Esse é o tipo do conselho que eu não sigo mas deveria. Por que? Porque assimilar informações de modo fragmentado força nossa mente a completar os sentidos faltantes, a imaginar, a experimentar combinações. Não se deve fazer isso ao estudar para um mestrado, mas ler uma revista do Cebolinha dessa forma é muito estimulante.
“29) Pense com sua mente. Esqueça a tecnologia. A criatividade não depende de instrumentos”. Se seu filho pequeno está levando uma série de tombos enquanto aprende a andar de bicicleta, não dê a ele uma bicicleta melhor. Deixe ele levar os tombos.
“42) Lembre. O crescimento só é possível como produto de uma história. Sem memória, a inovação é uma mera novidade. A história dá ao crescimento uma direção. Mas a memória nunca é perfeita. Toda memória é uma imagem deteriorada ou uma colagem de momentos ou eventos passados. É o que nos faz percebê-las como algo do passado e não do presente. Isto quer dizer que toda memória é nova, uma construção parcial diferente da sua fonte, e, assim, um potencial de crescimento”.
quarta-feira, 27 de julho de 2011
2619) O absoluto literário (27.1.2011)
(ilustração: Wolstenholme)
Isaac Newton acreditava que o Tempo era um valor absoluto. Aliás, não só ele – ele e o resto da humanidade, que entendia do assunto menos do que ele. Einstein provou que o Tempo era relativo a cada observador – ou seja, se dois caras fazem trajetos diferentes pelo espaço, para um passam-se cinco anos, para outro passam-se 50. Isso desorientou os cientistas, porque não havia mais uma régua inalterável para medir as coisas.
Vejam conceitos como, p. ex., “qualidade literária”. Muita gente pensa que existe uma Qualidade absoluta, em algum ponto do Universo, servindo de parâmetro, e que livro bom é o que se aproxima daquilo. Quantas vezes já vi gente dizendo algo como: “Ora, mas se um livro é bom e a pessoa acha ele ruim, então a pessoa está errada”. Ou vice-versa.
Eu acho que Qualidade Literária se parece muito com Bolsa de Valores. As empresas cujas ações são negociadas na Bolsa têm algum valor intrínseco, sem dúvida. Não está errado imaginar que a Petrobrás ou a Vale do Rio Doce têm valor maior que o da editora de livros de poesia que funciona no fundo do quintal do meu vizinho. Mas basta haver, digamos, um boato, e as ações dessa empresas milionárias começam a despencar, sem que o seu valor material tenha decrescido um milímetro. Existe portanto um valor intrínseco (o que a companhia possui) e um valor atribuído: o conjunto das expectativas das pessoas sobre a empresa, que as faz correr atrás de suas ações e pagar qualquer preço por elas (quando acham que a empresa vai bem) ou então tentar livrar-se dessas ações o mais rápido possível e por qualquer preço (quando acham que vai mal).
A qualidade da obra de Proust ou de Coelho Neto depende muito disso. São autores que foram contemporâneos, que produziram obras extensas e complexas, e que foram considerados autores importantes quando vivos. Proust morreu em 1922; Coelho Neto em 1934. Desde então, as ações do primeiro se valorizaram sem parar, enquanto as do segundo caíram. Caíram a ponto de quem ler isto perguntar por que diabos eu estou comparando o genial Proust a esse cara de cujos cem livros ninguém ouviu falar.
Pois é. Os cem livros de Coelho Neto estão aí. Um deles, pelo menos (A Conquista, 1899), continuo achando magnífico. Outros são romances fantásticos dignos de leitura e merecedores de uma reedição (Esfinge, 1908; Imortalidade, 1926). Para o leitor de hoje, contudo, Coelho Neto está distante (e Proust está próximo) de um “absoluto literário” que ninguém consegue definir, a não ser usando tautologias (“é um grande escritor porque escreveu grandes livros”) ou o aval alheio (“a crítica inteira diz que ele é genial”). Qualidade deve ter pouco a ver com estilo ou enredos, e sim com um certo carisma verbal. Qualidade Literária é a medida da resposta provocada num público capaz de multiplicar e justificar essa resposta. Sem que isso aconteça, um livro é como uma vela apagada, um ventilador parado, uma ficha que não caiu.
terça-feira, 26 de julho de 2011
2618) A bola não quis entrar (26.7.2011)
Assisti somente o 2º. tempo da decisão da Copa América, quando o Uruguai derrotou o Paraguai por 3x0 e tornou-se merecidamente o campeão. Foi uma final disputada entre o time que tirou a Argentina e o time que tirou o Brasil, de modo que o resultado confirmou o momento difícil vivido pelas duas principais seleções do continente. O Uruguai, a terceira força, se impôs com um futebol competitivo, fechado, veloz no contra-ataque, jogado com a raça habitual e com a técnica que o futebol uruguaio tem, mas que às vezes é suplantada pela raça, a ponto de esta se transformar em truculência e botinada.
A raça, quando entregue a si própria, vira botinada; a técnica, quando entregue a si própria, vira salto alto. Foi este o caso da Seleção Brasileira, que oscilou entre a apatia autoconfiante (“O gol vai sair naturalmente”) e a perplexidade esbaforida (“Que saco, esses caras que não jogam nada não estão deixando a gente jogar!”). Já vimos esse filme, não é mesmo? A Seleção Brasileira só é ela mesma quando consegue, além de administrar os poderosos fatores extra-campo, encontrar dentro de campo esse equilíbrio ideal entre vontade e capacidade, entre a disposição de buscar o gol e a competência para fazê-lo. Não ouvi nesta Copa América a inevitável frase dos nossos atacantes, “a bola não quis entrar”, mas certamente ela foi pronunciada. Se o Brasil não tivesse trazido nenhuma outra contribuição ao futebol, bastaria essa frase, exemplo perfeito da fuga à responsabilidade, para inscrever nosso país (de uma maneira não muito recomendável, concordo) na história do esporte.
A verdade é que alguns times, mesmo que não saibam produzir pedaladas ou dancinhas comemorativas, sabem fazer com que a bola entre. O Uruguai meteu três gols no mesmo Paraguai que bloqueou o Brasil durante 120 minutos e quatro pênaltis. O terceiro gol, no último minuto, foi uma pintura, pelo contra-ataque, pelo lançamento, pelo passe de cabeça de Suárez que encontrou Furlán um segundo antes de estar impedido, e pela conclusão firme deste, colocando a bola rente à trave, e dando a impressão, até o último segundo, de que ela não entraria. Ela deu toda a pinta de que não queria entrar, mas ele soube fazer com que ela lhe obedecesse.
O Brasil está decadente e nossos jogadores são medíocres? Que nada, o time é razoável, o técnico tem princípios que merecem confiança. A questão é que neste Mercosul do futebol o Brasil só entra em campo com ares de prima-dona. Antes do jogo a imprensa já pergunta aos atacantes se haverá pedalada, se haverá dancinha, como vão comemorar os gols, e os jogadores respondem, dando o gol como coisa certa. Enquanto isso, os adversários treinam para fazer com que a bola brasileira não queira entrar, e não sei que conspiração malévola é essa que mesmo com quatro pênaltis a condenada da bola não entra!... Não sofremos mais do complexo de viralata de que falava Nelson Rodrigues; temos complexo, sim, de “poodle” de madame.
domingo, 24 de julho de 2011
2617) Passou do ponto (24.7.2011)
São essas coisas que acontecem na vida das pessoas, elas se veem de repente numa situação que é um paraíso imprevisto, um paraíso não-sonhado, que aparece não como a conquista (enfim!) de um objetivo, mas como algo que cai já pronto em nosso colo, objetivo e conquista embrulhados juntos no mesmo celofane. De repente estava tudo tão bom, o ônibus agradável, o ar condicionado funcionando, a poltrona confortabilíssima e reclinável em três ângulos, as janelas amplas e transparentes, a companhia esfuziante dos outros passageiros... Estar cruzando a cidade (babilônica e luminosa) naquele ônibus tornou-se de repente não um meio mas um fim em si, e era um tal clima de festa, uma tal variedade de companhias, de conversas, de risadas, de confidências, de conspirações benignas e de planos para o futuro que parecia não existir nada mais além daquele espaço fechado em movimento. A cidade (sensual e festiva) passava lá fora como um loop de imagens em computação gráfica, espaço bidimensional que, se a gente se contentasse em vê-lo passar, cumpria plenamente a função. A vida verdadeira era ali dentro, tudo acontecia naquele corredor largo entre as poltronas, onde era possível caminhar em filas de mão e contra-mão, e havia frigobar em esquema de boca-livre (ou quem sabe incluído na passagem), televisõezinhas ejetáveis no teto, canais de música com fones de ouvido e menu de trinta opções... O ônibus em que iam conhecer o mundo transformou-se no mundo, transformou-se no único lugar a que ele dava atenção, no único lugar que ele via e ouvia. E ele passou do ponto.
Saber ele sabia, que aquele ônibus não fazia o trajeto circular dos ônibus urbanos, era um ônibus com rota em linha reta, que partira de um A e chegaria hipoteticamente a um Z, e que nesse percurso havia um local bem específico que ele escolheria para descer. Havia um local que ele reconheceria, por todas as pistas que lhe seriam fornecidas, principalmente pelos outros passageiros, cuja conversa, por mais variada e ininterrupta, circulava sempre em torno desse tema, dessa idéia fixa: do lugar onde cada um estava pensando em descer, e por que motivo ali e não em outro local, e de que maneira seriam capazes, cada um, de reconhecer o próprio local de descida, se presumirmos que todos estavam fazendo aquele trajeto pela primeira (e única) vez, e tudo que sabiam sobre o espaço a ser percorrido eram suas próprias expectativas e as expectativas, suposições, lendas e imaginações dos outros a bordo. Todos tinham sua teoria, suas anotações; ele também. E a discussão era tão animada, tão enriquecedora e divertida, tão objetivo-final-da-coisa-em-si, que, punge-me dizê-lo, quando ele olhou já era tarde, as casas iam rareando, a cidade (feérica e monumental) cedera lugar a uma periferia de matagais e ruínas, um deserto soturno de charnecas; e de gelada constatação. O ônibus seguiu. Seguiu sempre em frente. E ele não precisou mais descer, é claro. Ele passou do ponto.
sábado, 23 de julho de 2011
2616) Denis Dutton (23.7.2011)
Falecido no fim do ano passado, Denis Dutton é um cara sobre quem não sei muita coisa. Sei apenas que escreveu um livro intitulado The Art Instinct, e foi o criador de um dos meus websaites preferidos, Arts and Letters Daily, um apanhado diário de artigos interessantes surgidos na imprensa de língua inglesa. Uma página de visual agradável (pequenos parágrafos sintéticos, dando uma idéia do assunto de cada artigo, acompanhados de um link para a página respectiva), cujo leiaute, tipologia, vinhetas e outras coisas nos dão a impressão de estar consultando um jornal das antigas. Quem quiser conferir, vá em: http://www.aldaily.com/ .
Numa entrevista sobre a cultura do mundo digital, Dutton afirmou: “É um erro muito grave na indústria editorial, quando falamos sobre a Internet ou sobre publicações impressas, ficarmos nos dirigindo a um repertório limitado de gostos já estabelecidos pelos nossos leitores. Alguns anos atrás, Bill Gates estava se vangloriando de que em breve teremos sensores capazes de, no momento em que entrarmos numa sala, fazerem tocar uma música de nossa preferência ou projetar nas paredes as nossas pinturas prediletas. Que coisa maçante! Que se danem as coisas de que já gostamos, vamos expandir nossos horizontes intelectuais!”.
O mundo digital criou um Caos de bilhões de informações instantaneamente acessíveis e está tentando criar uma Ordem estabelecida pelo nosso perfil, nosso passado. A Web sabe do que gostamos. Quando recebo um email da Amazon Books, ela só me oferece livros que me dão água na boca, pelo simples fato de que são escolhidos por associação de idéias com o que comprei lá com maior freqüência. A Amazon, a Powell’s, a Abebooks, a Livraria Cultura, etc., sabem do que eu gosto, mas o critério eletrônico não é capaz de me revelar um tipo de romance ou de assunto que nunca comprei ali.
Já escrevi aqui sobre a cultura vitrola e a cultura rádio. Cultura Vitrola é aquela em que a gente só ouve a música que já possui, uma cultura fechada em si. Cultura Rádio é aquela em que o que ouvimos é aleatório, sujeito a influências e sujeito a acasos; uma cultura aberta. O interesse do Super-Capitalismo (http://tinyurl.com/5rqexhg) é reunir o maior número possível de informações sobre cada mercado, depois sobre todos os grupos que constituem cada mercado, e depois sobre cada indivíduo que constituem cada grupo, a fim de poder direcionar da melhor maneira possível suas futuras invasões virais de propaganda. A tal ponto que mal conseguiremos caminhar nas ruas sem sermos assaltados a toda hora por propostas irrecusáveis, propagandas de roupas, livros, CDs, delineadas exatamente de acordo com o nosso gosto. (Já vimos uma amostra disto em Minority Report, de Spielberg.) Abaixo isso! Queremos o acaso, queremos o caos, queremos ouvir falar do que não conhecemos para que venhamos a conhecer. O Super-Capitalismo é um lance de dados viciados que quer abolir o Acaso.
sexta-feira, 22 de julho de 2011
2615) O tempo não para (22.7.2011)
No filme Uma Mente Brilhante, Russell Crowe interpreta John Nash, o matemático esquizofrênico que, já na idade madura, enclausurado em si mesmo pela doença, acabou recebendo o Prêmio Nobel de Economia por causa de uma teoria que desenvolvera na juventude.
No filme, Nash tem fantasias recorrentes, incessantes, em que está sendo cooptado para trabalhar em projetos de espionagem para o governo, ajudando a decodificar mensagens da URSS. Sua loucura cria também amigos imaginários que o acompanham durante a vida inteira.
Um momento comovente do filme é quando ele descobre, por conta própria, que está doido – porque uma pessoa com quem ele convive há anos continua sempre com a mesma idade! Mesmo já tendo se passado uns 20 anos desde que ele a conheceu, a sobrinha de um amigo seu continua uma garota de dez anos. E Nash percebe que está louco, que aquela pessoa não existe, é uma alucinação paranóide.
A loucura é uma entre várias disfunções mentais, e tudo são tentativas de descrever situações em que partes da nossa mente deixam de dialogar com outras, ou estacionam no tempo enquanto o restante evolui.
Todos nós sabemos exemplos de crianças que por um problema qualquer têm seu desenvolvimento interrompido num certo estágio, e vivem o resto da vida com uma idade mental estacionária. Não são loucos; são diferentes. (Acho que falta a Ciência investigar casos curiosos em que um cara de 50 anos estacionou numa idade mental de 25, e reclama que os outros não o compreendem.)
Achamos que só é real (realidade física, consensual) o que está submetido às leis do tempo. Nos contos de fadas e narrativas folclóricas, se um personagem tem acesso ao Reino das Fadas, ao Mundo Subterrâneo, etc., ele constata que ali o tempo não corre no mesmo ritmo que no mundo real.
Thomas the Rhymer vai para o Reino das Fadas para uma festa no castelo, e quando volta ao mundo real na manhã seguinte descobre que sete anos se passaram. A festa no castelo das fadas é de certa forma a fantasia em que a mente fica aprisionada, entretida consigo mesma, enquanto do lado de fora o tempo não para.
Viver é aceitar envelhecer? Sim, mas não no sentido de aceitar passivamente a decadência ou a deterioração de si mesmo. Viver é acompanhar a passagem do tempo, o desaparecimento de algumas coisas, a permanência de outras e o aparecimento de mais outras.
Quando era jovem e antissocial, Nash criou uns amigos imaginários com quem mantinha conversas silenciosas, amigos que diziam o que ele gostava de ouvir, que lhe davam conselhos, etc. Era essencial, para sua fantasia, que esse amigos ficassem sempre do jeito que eram. Vê-los crescer, envelhecer e mudar seriam uma fonte a mais de insegurança e angústia.
Nash percebeu que eles não existiam quando percebeu que para eles o tempo não passava. Tudo que é imune ao tempo existe apenas na mente, que é, curiosamente, o único lugar em que o Tempo pode ser acessado da forma randômica, não-linear.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
2614) Penelopismo (21.7.2011)
(Penélope desfazendo sua Tapeçaria, por Leandro da Ponte Bassano)
Penélope, esposa de Ulisses na Odisséia. Rodeada de pretendentes. Marido demora anos para voltar da guerra. Viúva bonita e rica. Verdadeiro “chama” para gregos desocupados. Palácio de Ítaca cheio de candidatos ao golpe do baú. Ela insiste: marido vivo, vai voltar cedo ou tarde. Bola uma desculpa: não pode casar porque está bordando tapeçaria. Quando acabar o trabalho, casa. Passa a tecer de dia, destecer de noite.
Tapeçaria de Penélope é todo trabalho que demora a ser concluído, levando a supor que alguém o está desmanchando na calada da noite para evitar que ele um dia chegue ao fim. Virou um clichê da imprensa. O Chinese Democracy do Guns’n’Roses, que as revistas chamavam de “o disco mais caro da história do rock”, passou anos dando despesas (de 1994 a 2007). Lançado em 2008, não sei se compensou a espera, porque ignoro solenemente o Guns’n’Roses. Outro exemplo é a antologia de FC The Last Dangerous Visions, que o organizador Harlan Ellison prometeu para 1973. Reuniu uma porção de contos de autores diversos e até hoje não a publicou. Isto já gerou brigas, processos judiciais e até um livro-libelo do autor Christopher Priest (The Book on the Edge of Forever), descascando Ellison.
O penelopismo pode ter as origens mais variadas. O filme Chatô de Guilherme Fontes nunca ficou pronto (dizem os jornais) por descontrole orçamentário. O “livro novo” de Ariano Suassuna (continuação do Romance da Pedra do Reino) nunca fica pronto porque todo dia Ariano tem uma idéia, faz correções à mão e depois tem que redatilografar as mil páginas do texto (que outro motivo pode haver?). Caso clássico de romance que ficou incompleto e mesmo assim foi publicado é O Processo. Kafka escreveu o começo e o fim, e ficou um tempão trabalhando no meio do livro, sem nunca concluí-lo. Jorge Luís Borges (o primeiro tradutor argentino de Kafka, em 1938) observou, com a perspicácia habitual, que é da própria natureza de um livro labiríntico como O Processo que o autor jamais conclua a sua redação: “A crítica lamenta que nos três romances de Kafka faltem muitos capítulos intermediários, porém reconhece que esses capítulos não são imprescindíveis. Eu tenho para mim que essa queixa indica um desconhecimento essencial da arte de Kafka. O ‘pathos’ desses romances inconclusos nasce precisamente do número infinito de obstáculos que detêm e voltam a deter seus heróis idênticos. Franz Kafka nunca os terminou, porque o primordial era que fossem intermináveis”.
Alguns desses penelopismos são involuntários, ou seja, o autor tem a intenção sincera de finalizar aquele troço algum dia, simplesmente não está conseguindo. Devem ser raros os casos de penelopismo verdadeiro, de alguém que não quer terminar aquilo de jeito nenhum. Por insegurança quanto à recepção dos leitores? Por excesso de perfeccionismo? Porque o prazer de estar fazendo é mais importante do que o alívio por ter feito?
quarta-feira, 20 de julho de 2011
2613) A criação através de um erro (20.7.2011)
O erro é muitas vezes um auxiliar da criação, porque nos leva a dizer ou fazer coisas que normalmente jamais nos ocorreriam.
Nem todo erro é criativo e talvez a imensa maioria deles seja uma simples atrapalhação que é preciso voltar atrás e corrigir; mas cabe a quem cria estar atento para as colaborações do Acaso, e saber incorporá-las quando vale a pena.
Um engano trazido pelo Acaso pode fazer surgir uma informação nova, enigmática, inquietante, num lugar onde antes havia apenas um obeso Lugar Comum, bocejando e lixando as unhas.
Reza a lenda que William Burroughs estava em Tânger enviando para seus amigos Jack Kerouac e Allen Ginsberg, pelo correio, os fragmentos de textos que iriam compor seu primeiro romance. Quando terminou, fez uma ligação internacional para os EUA para conversar com Kerouac, e pediu-lhe uma sugestão para o nome do livro. A ligação estava péssima; Kerouac sugeriu Naked Lust, “Luxúria Nua”. Burroughs entendeu Naked Lunch, e o livro tornou-se famoso até hoje como “Almoço Nu”.
Depois, pressionado para explicar à imprensa (esta loura de microfone em punho, sempre carente de explicações) o significado do título, disse: “Significa aquele momento, congelado no tempo, em que todo mundo enxerga o que está na extremidade de cada garfo”.
Muitas vezes o erro é de leitura feita às pressas e resulta numa frase diferente da que de fato estava impressa. Uma vez, procurando algum livro na minha estante, vislumbrei de relance um título numa lombada, A Borboleta é a Morte. Fiquei intrigado, porque não me lembrava de ter nenhum livro assim chamado.
Durante alguns segundos imaginei um romance policial, talvez de Dorothy Sayers ou de Celia Fremlin, em que uma misteriosa borboleta funcionaria como ameaça de morte iminente ou como pista provocativa deixada por um assassino. Ledo engano! Era o saboroso livro de Alberto Manguel, A Biblioteca à Noite.
Uma vez eu ia de ônibus por uma rua qualquer quando vi, pichado num muro: “Desajuste ama”. Achei parecido com certas pichações que a rapaziada fazia em Olinda anos atrás, como “Se você me ama, deixe um recado na cama”.
Fui em frente. Dias depois, no mesmo ônibus, na mesma rua, lembrei e resolvi conferir. Ah, que anticlímax. A frase era apenas “Jesus te ama”.
Eu vinha num carro com uma turma de amigos e ao passar diante de uma igreja um deles comentou: “Que coisa esquisita nessa igreja! Missa dos Infernos!”. Tive uma visão fugaz de um ritual satanista, cruzes invertidas, imagens de Belzebu. Sosseguei apenas quando olhei pela janela do carro e pude ver que se tratava apenas da “Missa dos Enfermos”, celebrada ali periodicamente.
Igual alívio senti quando meu filho leu num muro: “Mercenários - Armados”, e depois percebeu que era apenas “Marceneiros – Armários”. Às vezes entrevemos uma palavra que nos é pouco familiar, e nossa tendência é ver, no lugar dela, uma palavra mais freqüente no nosso repertório do dia-a-dia.
terça-feira, 19 de julho de 2011
2612) O melhor amigo do homem (19.7.2011)
Rex, abre a janela e se estiver fazendo um dia bonito dá três latidos. Beleza.
Rex, vai na cozinha. Tem uma chaleira com água, em cima do fogão. Torce o botão com a boca, aperta o acendedor com o focinho. Deixa que o resto em mesmo faço.
Uaaaaah. Agora vou tomar meu banho. Rex, depois vai no meu quarto e forra a cama, visse?
Rex, vê só as ironias da história. Pacote de biscoito? Obrigado. A humanidade desperdiçou bilhões de dólares tentando fabricar robôs de metal, com juntas articuladas, circuitos eletrônicos, garras preênseis de alumínio e titânio, na esperança boba de que essas catrevagens conseguissem nos ajudar nas tarefas cotidianas. Quebraram a cara, não foi?
Me passa aqui a geléia. Valeu. Pois é, podem servir para montar carcaças de automóveis em Detroit ou Betim, mas eu mesmo é que não queria uma daquelas aranhas niqueladas tilintando por dentro da minha casa. Não tenho empatia com máquinas. Máquina não sente a dor de uma topada, e por isso é indiferente às nossas. Máquina pensa como inseto.
O ser humano precisa de um ambiente mamífero à sua volta. Pega aqui o jornal, bota no balde de lixo, o de lixo de papel pra reciclar. Obrigado.
Rex, leva os pratos pra pia e liga meu notebook enquanto eu escovo os dentes. Acho que o ser humano se encantou demais com essa besteira de instrumentos. Acha que todo o trajeto evolutivo do ser humano tem que ser por aí. Besteira.
O antropóide primitivo usou um pedaço de pau ou de osso pra quebrar algum galho, deu certo, e daí em diante ele só conseguiu enxergar a evolução social em termos de pedaços-de-osso-artificiais. Feito aquele macaco de 2001, Rex, aquele que você late sempre que vê na tela. Do osso para a espaçonave. Um milhão de anos de equívocos. Pega ali meu celular na mesinha de cabeceira.
Bem, como eu ia dizendo, não era por aí. Desprezamos a convivência das criaturas biológicas para perseguir essa devaneio bobo de fabricar criaturas de metal. Rex, se ao invés de construir o primeiro simulacro humano tivéssemos feito o primeiro upgrade num cachorro, teríamos queimado um milhão de etapas.
Tocaram a campainha, vai lá. Se for o síndico bota pra correr.
Foi preciso uma crise econômica mundial para que esquecêssemos esse delírio de produzir engenhocas. Para que investíssemos em escolas de humanização de animais domésticos, de interfaces semióticas, de socialização em nosso benefício mútuo.
Era o Sedex? Põe na escrivaninha. Descobrimos que cães, chimpanzés, golfinhos, corvos e muitos outros são um exército-reserva de bilhões de operários, secretários, mordomos em potencial, bastando apenas que lhes sejam dados os benefícios da bio-graduação e da escolarização especializada. OK, vou trabalhar, pode ligar a TV e assistir Os Simpsons.
Não troco você pelo R. Daneel Olivaw de Asimov nem pela Rose dos Jetsons. Melhor do que você, Rex, só mesmo Gisele Bundchen de avental, mas machismo hoje é proibido por lei.
domingo, 17 de julho de 2011
2611) Escritores e marketing (17.7.2011)
Fala-se muito que os escritores hoje em dia estão mais preocupados em fazer marketing do que em escrever. Que injustiça com o século. Quem foi que teve pela primeira vez a bela idéia de fazer lançamento de um livro com noite de autógrafos? Um marqueteiro “avant la lettre”. Fico imaginando um autor sisudo como Tolstoi recebendo uma carta de seu agente literário:
“Prezado Leo Nikolayevitch: Tive uma excelente idéia para o lançamento de Guerra e Paz. Ao invés de mandar os exemplares para as livrarias e cruzar os dedos, podemos fazer da aparição deste romance um acontecimento de que toda a Rússia tomará conhecimento, o grande acontecimento de 1869. Primeiro, reservaremos um espaço público, bem conhecido, bem frequentado. Pode ser uma livraria, um restaurante. Divulgaremos através da imprensa que nessa noite você estará presente, em pessoa, e que cada leitor que comprar um livro terá direito a dirigir-se a você e pedir não apenas seu autógrafo, mas uma dedicatória personalizada! Como deve aparecer muita gente, deixaremos uma mesa reservada só para você fazer isto, e se houver muita gente pediremos que se organizem numa fila.
“Pensei em tudo: como você vive se queixando de má memória, a pessoa que vender os livros e passar o troco escreverá o nome do comprador num papel e o colocará dentro do livro, para que você possa fazer aquela encenaçãozinha: “Mas que beleza, que honra tê-lo aqui... esta noite... me prestigiando... meu caro Fiódor Mikhailovitch!!!...’ Sacou? Aproveitaremos para servir um coquetel, provavelmente vinho branco servido naquelas tacinhas de plástico que quando cheias ficam mais pesadas na parte de cima do que na de baixo e se desequilibram com a maior facilidade, principalmente quando colocadas na beira das prateleiras de uma livraria. Creio (um romancista como você me dará razão!) que pequenos imprevistos assim conferem uma sensação de espontaneidade e verdade psicológica ao evento.
“Leo, meu caro... Conheço meu gado! Sei que a esta altura você estará franzindo o sobrolho e erguendo objeções mudas a esta minha estratégia. Mas pense na concorrência, rapaz! A Rússia tá pegando fogo de escritores bons, está cheia de jovens pitbulls das letras rosnando em seus calcanhares, para não falar em futuristas como Maiakóvski, que ainda nem nasceram mas que herdarão a Terra. Você não pode dormir sobre seus triunfos. Temos que usar os poucos recursos de que dispomos, tendo em mente inclusive que Hollywood ainda não filmou o romance e isto inviabiliza meu plano de botar a foto de Audrey Hepburn na capa da edição em pocket. Você diz que seu compromisso é com os leitores? E então? Dê aos seus leitores aquela ilusãozinha de que são amigos seus, de que você, durante os poucos segundos que dura um autógrafo, tomou conhecimento da existência deles. O século 20, meu caro Leo, vai ser de quem convencer a platéia de que ela é mais importante do que o palco. Grave isto. No mármore.”
sábado, 16 de julho de 2011
2610) Superpoderes (16.7.2011)
Os heróis com superpoderes sempre nos fascinaram. Não há muita distância entre as Metamorfoses de Ovídio e os gibis da Marvel ou DC Comics. Freud escreveu um ensaio muito lúcido sobre o Herói na literatura popular. Quem é, pergunta ele, esse sujeito invencível, que conquista todas as mulheres, surra todos os inimigos, escapa de perigos catastróficos, deslinda mistérios impenetráveis? Ora (responde), é o Ego, é nosso rosto quando nos penteamos ao espelho, é aquilo que queremos ser. (Talvez não “queiramos” no sentido de ter isto como um objetivo concreto; mas fantasiamos sê-lo, para compensar nossas deficiências. Se você não pensar que é James Bond, não consegue azarar sequer a caixa do supermercado. Se você não pensar que é Napoleão, não consegue encarar uma reunião de condomínio.)
O filme Heróis (“Push”, 2009), de Paul McGuigan, mostra um grupo de pessoas com superpoderes desenvolvidos artificialmente por uma agência de espionagem. São tantos poderes que fiquei meio perdido e depois do filme fui consultar o saite. Olha só a lista dos poderes, de acordo com cada grupo:
“Movers”, que podem mover objetos com a força da mente. “Pushers”, que podem controlar os pensamentos de outras pessoas. “Watchers”, que podem ver o futuro. “Bleeders”, que emitem gritos em ultrassom, capazes de romper vasos sanguíneos do adversário. “Sniffs”, que podem rastrear pessoas. “Shifters”, que podem mudar temporariamente a aparência de um objeto aos olhos de outras pessoas. “Wipers”, que podem apagar memórias alheias. “Shadows”, que podem proteger a si mesmos e a outras pessoas próximas contra a detecção (dos Sniffs). “Stitchers”, que podem curar pessoas ou desfazer uma cura já feita.
É uma bela galeria daquilo que Freud apontou, no ensaio The Uncanny (“O Estranho”) como “a Onipotência do Pensamento”, a fantasia infantil de que somos capazes de modificar o mundo material com a mera força do pensamento, somos capazes de materializar idéias, de interferir no mundo físico sem mover um dedo. Os superpoderes do super-herói clássico, o Super-Homem, são da mesma natureza: poder voar, ser invulnerável, ter força descomunal, enxergar através das paredes, etc. A proliferação de histórias do gênero foi ampliando esse repertório. Em Scanners, os heróis são capazes de fazer explodir a cabeça de alguém. Em Jumpers, podem saltar fisicamente de um lugar para outro, bem distante. Se recorrermos ao repertório da Marvel e DC Comics, a lista não tem fim.
Cada superpoder das histórias de fantasia corresponde a uma impotência da vida real; cada um deles é inventado para suprir algo que somos incapazes de fazer. Cada superpoder é a compensação para os pequenos traumas da educação infantil, quando recebemos a terrível notícia de que não somos o Imperador do Mundo, não podemos fazer chover nem parar o sol no céu, não podemos comandar mentalmente o comportamento das outras pessoas, somos incapazes de mexer objetos sem levantar um dedo.
sexta-feira, 15 de julho de 2011
2609) Conversando com golfinhos (15.7.2011)
O personagem do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams viaja pelo universo entrando em contato com as raças alienígenas mais diferentes. Como faz para se comunicar com elas? Simples: ele enfia no ouvido um Babel Fish, um peixe que, por razões mais literárias do que científicas, atua como tradutor universal. Quem tem um Babel Fish enfiado no ouvido entende tudo que um alienígena diz (e faz-se entender, quando fala). A solução foi tão luminosamente simples que existe até um websaite de tradução instantânea (ao qual recorro quando preciso) com esse nome. (Ver: http://br.babelfish.yahoo.com/).
É de Douglas Adams (que está para a ficção científica assim como o Monty Python está para o cinema) esta profunda reflexão filosófica: “No planeta Terra, os homens sempre presumiram que eram mais inteligentes do que os golfinhos porque tinham criado inúmeras coisas: a roda, Nova York, as guerras, etc. – enquanto os golfinhos só sabem ficar fazendo bobagem na água e se divertindo. O que acontece é que os golfinhos sempre acreditaram que eram mais inteligentes do que os humanos, pelas mesmíssimas razões”.
Coube a Carl Sagan, que está para a ciência assim como o Prof. Pasquale está para a gramática, observar o seguinte: “É interessante notar que, enquanto alguns golfinhos foram capazes de aprender um pouco de inglês (cerca de 50 palavras, que eles conseguem aplicar nos contextos adequados) até agora nenhum ser humano foi capaz de aprender a falar golfinhês”. Ora, este estado de coisas está a ponto de mudar. A linguagem dos golfinhos, que são a espécie animal mais inteligente logo depois (há controvérsias) do homem, está sendo estudada por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Georgia (Atlanta). O projeto CHAT (Cetaccean Hearing and Telemetry) desenvolveu um equipamento submarino que registra e analisa os sons emitidos pelos golfinhos. Os golfinhos são espertos. São capazes de obedecer corretamente ordens em inglês com diferenças sutis, como “traga o homem para a prancha” e “traga a prancha para o homem”. (Eu diria que eles entendem mesmo esse troço se obedecessem corretamente a algo como “para o homem a prancha traga”).
A tática dos cientistas é exibir objetos e ações e tentar descobrir quais as palavras que os golfinhos adotam para cada um deles, mas Denise Herzing, do projeto CHAT, admite: “Nem sequer sabemos se os golfinhos usam palavras”. Esta me parece a frase mais inteligente e realista de todo o projeto. “Palavra” é um conceito humano, e nem de longe um recurso universal. As abelhas são capazes de indicar a existência, o tamanho e a direção de uma fonte de alimento apenas “dançando” no ar. (Os linguistas afirmam que a dança das abelhas não constitui uma linguagem, e concordo; mas poderia ser a base para se criar linguagem que não usasse palavras). Talvez os golfinhos usem sons, movimentos e contextos, criando um número de combinações suficiente para suas necessidades de comunicação.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
2608) Perguntas ao futuro (14.7.2011)
O ser humano é provinciano por natureza. Sua província natal é a humanidade, é o oceano de idéias, emoções, sentimentos e valores que, bem ou mal, criam o ambiente mental em que ele consegue se sentir à vontade. Somos humanos, e tudo que é humano não apenas não nos é estranho, como é a única coisa que somos capazes de compreender sem que alguém precise bater em nossa cabeça com um rolo de amassar pastel. O que nos distingue uns dos outros é apenas o maior ou menor perímetro com que definimos esta humanidade, daí o fato de chamarmos de “provincianos” os moradores de cidade pequena que não conseguem entender os costumes da cidade grande, embora não digamos o mesmo dos habitantes de cidade grande que não entendem os costumes de cidade pequena. Por que? Porque esses conceitos são criados na cidade grande, para benefício e louvação dos seus.
Sempre me interessei por histórias de viagem no tempo, em que um sujeito de nossa época, mediante um prodígio qualquer, vai parar no futuro. Em narrativas assim, metade da minha curiosidade vai para esse mundo futuro imaginado, e metade vai para o protagonista: quem é ele, o que pensa, como vai se comportar, como vai reagir. É sintomático que, no momento em que o sujeito percebe que chegou ao futuro faça perguntas como “quem é o atual Presidente da República”, partindo do princípio, é claro, de que o sistema presidencialista vai ser mais duradouro do que as Pirâmides.
Um conto de Angélica Gorodischer, no livro La cámara oscura (2009), fala de um personagem que entra em contato com figuras do passado, e comenta: “François de la Rochefoucauld me levava a passear pelo bosque e me perguntava sobre o século 20 coisas com as quais eu não estava muito familiarizado. Não lhe interessavam nem os aviões nem os mísseis nem a televisão, mas queria saber como eram recebidos os escritores nos salões e se o terceiro filho de uma família nobre era militar ou podia escolher outra atividade; e eu não sabia nada sobre isso”. Sempre julgamos os outros mundos a partir dos critérios e das expectativas do nosso. Daí que um sintoma típico da ficção científica ingênua seja esse constante projeção do passado sobre o futuro. Alguém pega uma máquina do tempo, chega ao Brasil do ano 3500 e começa a perguntar pelas favelas, pelos escândalos parlamentares, pelos “reality shows” e pela Copa do Mundo de futebol.
Há mais de cem anos a FC descreve mundos alienígenas em que seres fisicamente monstruosos e incompreensíveis vivem sob regimes republicanos ou mantêm casamentos monogâmicos. Nossos extraterrestres são sempre feitos à nossa imagem e semelhança. Na maior parte da FC norte-americana os alienígenas têm uma cultura tão parecida com a dos americanos que os etíopes ou curdos pareceriam seres de outra galáxia. São poucos os escritores de FC capazes de descrever um mundo futuro ou extraterrestre capaz de nos produzir uma verdadeira sensação de estranheza, de “alienidade”.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
2607) “O Mar, a Escada e o Homem” (13.7.2011)
(The Truman Show, de Peter Weir)
Entre os sonetos de Augusto dos Anjos, este sempre me chamou a atenção pelas sugestões visuais que contém, criando um clima muito diferente do que se vê nos demais poemas. O soneto começa como um diálogo em que o Mar se dirige ao homem: “Olha agora, mamífero inferior, / À luz da epicurista ataraxia, / O fracasso de tua geografia / E do teu escafandro esmiuçador! // Ah! Jamais saberás ser superior, / Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia, / Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia / Voando ao vento o vastíssimo vapor. // Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
São nove versos, ou seja, a voz do Mar ocupa os dois quartetos iniciais e invade a primeira linha do primeiro terceto, preparando uma rima riquíssima (“íngreme” / “singre-me”). Ele se dirige ao Homem dizendo, basicamente (pra diluir Augusto precisa de muitos litros de conversa) que ele jamais será superior ao Mar, mesmo sendo capaz de singrá-lo com barcos ou mergulhar nele com escafandros. (E que bela aliteração, com a sugestão visual e pontuda da quilha do barco, este “voando ao vento o vastíssimo vapor”). O Mar se oferece ao Homem como um desafio intransponível ao corpo (o desafio de atravessá-lo) e à mente (o desafio de entendê-lo).
Nesse instante, porém, antes que o Homem possa responder ao Mar, interfere no diálogo um terceiro interlocutor: “E a verticalidade da Escada íngreme: / “Homem, já transpuseste os meus degraus?”. Diferentemente do Mar, que profere uma interpelação relativamente extensa, a Escada limita-se a esta breve pergunta. Mas o resultado é arrasador: “E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços, / ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços / no pandemônio aterrador do Caos!”.
Posso estar delirando, a esta hora da noite, mas este poema me parece fundado na sugestão visual da letra H maiúscula, que reproduz o degrau de uma escada (não as escadas de pedra e cimento dos nossos prédios, mas as compridas escadas de madeira ou de corda de que nos servimos para escalar alguma coisa). Esse H é o de Homem, Hércules, Hélice, Hórrida... Justapostas, essas letras formam uma escada vertical que se contrapõe à superfície horizontal do Mar. Como um eixo cartesiano, um entrecruzamento de dois infinitos inacessíveis ao Homem.
Esta sugestão não me parece descabida, pois em nenhum outro ponto de sua obra Augusto dos Anjos (que aliás usa a palavra “augusto” com certa frequência, de variadas maneiras) chama a si mesmo de Hércules. Simbolismo proposital? Eu chamaria a isto de associação de idéias que beira a escrita automática dos surrealistas: a visão intuitiva de uma escada infinita que sobe ao céu lhe deixa na mente esse ícone da letra H que acaba contaminando seu vocabulário. Augusto deixa-se (num acesso de impotência tão frequente em seus poemas) cair de soluços no caos, por não ser capaz de escalar o infinito vertical da escada nem de explorar o infinito horizontal do oceano.
terça-feira, 12 de julho de 2011
2606) Cenas de batalha (12.7.2011)
Um comentário recente sobre a série de TV Game of Thrones levanta uma situação interessante. A crítica Mo Ryan escreveu: “Fiquei um pouco desapontada em ver que a maior parte dos personagens estão envolvidos numa guerra que não chegamos a ver”. E Alan Sepinwall observou: “Idealmente teríamos a certa altura algumas batalhas épicas, como em Braveheart, mas é preciso respeitar as restrições de tempo e de orçamento. Essas sequências custam uma fortuna, ocupam grande parte do tempo de um episódio, e de certo modo eu prefiro, ao invés disso, ver a cena de Tyryon em sua tenda, na véspera da batalha, contando a dramática história de sua ex-mulher, e saber que a cena da execução de Ned ficou tão bem feita porque houve tempo para prepará-la; ter isto é melhor do que ter num episódio uma ou duas longas cenas de batalha campal.”
Uma característica essencial da arte industrial é aquilo que os norte-americanos chamam “production values”, valores (ou qualidade técnica) da produção de um filme, peça, programa de TV. Um pouco deste espírito aparece em nossa televisão quando ouvimos falar no famoso “padrão Globo de qualidade”, ou seja, um programa produzido pela Globo tem que ser (independentemente de ser “artístico” ou não) uma produção com alto nível de perfeccionismo e competência do ponto de vista técnico.
Isto acaba tendo uma consequência interessante. Certos tipos de cenas exigem uma complicada logística para serem executadas. Por exemplo, cenas de multidão, cenas de batalhas, cenas de explosões e destruição, cenas com efeitos especiais sofisticados. Antes mesmo de qualquer consideração de ordem estética (se a cena vai funcionar ou não no contexto do filme) a cena em si tem que ficar tecnicamente bem feita. É o mesmo que se dá numa cena minimalista, com dois personagens conversando numa sala. Se a imagem estiver desfocada ou o som inaudível, de nada adianta a cena ser um primor em outros aspectos. Nas cenas de grande logística dá-se o mesmo, só que num grau muito superior de complexidade.
Críticos ranhetas como eu vivem torcendo o nariz diante das perseguições de automóveis, tiroteios coreografados, lutas marciais intermináveis (tipo Matrix) e outras coisas que fazem a felicidade do cinema industrial. Esse exibicionismo dos valores de produção marca a era de um cinema de técnicos feito para espectadores que apreciam a técnica, contraposto a uma época de um cinema de artistas feito para espectadores que apreciam a arte. No cinema de hoje, a técnica está tão hipertrofiada que toma a frente de tudo, forma seu próprio público (as pessoas que vão ao cinema para ver aquilo em primeiro lugar) e considerações artísticas são jogadas para escanteio com o diagnóstico de “bobagem de intelectuais”. O cinema está parecendo cada vez mais um show musical com som e iluminação impecáveis e canções medíocres. Que haja críticos de TV capazes de dizer o que foi dito acima por Sepinwall é um pequeno milagre.
domingo, 10 de julho de 2011
2605) O fantasma do desemprego (10.7.2011)
O que teria sido de Garrincha, se o futebol não o tivesse descoberto? Provavelmente teria acabado a vida como bodegueiro ou frentista de posto de gasolina. Graças ao Botafogo, tornou-se gênio, ídolo, alegria do povo, ganhou duas Copas. Viajou pelo mundo inteiro, conhecendo inclusive Roma, que para ele era “aquela cidade onde Dr. Zezé Moreira escorregou na porta do hotel”.
O Acaso permitiu ao Brasil transformar um sujeito como ele numa fonte de geração de milhões de cruzeiros. Do ponto de vista de alguma agência de empregos de sua época, era um despreparado. Pois passem um raio-X nesse despreparado e vejam a relação custo-benefício dele.
Por outro lado, vão pra ponta do lápis e vejam quantos sujeitos formados em escolas públicas e universidades federais que, preparadíssimos pelo Estado ao longo de décadas, mal se formam vão ganhar a vida como aspones, taxistas, lixeiros. Isso quando não se tornam parasitas sociais de diversos tipos.
Existe sempre um descompasso entre know-how e mercado de trabalho, entre avaliação sensata do que cada indivíduo tem para fornecer e utilização sensata dele dentro de um organograma social onde cada um faça alguma coisa útil.
Uma profissão é uma transação comercial estável em que um sujeito é pago para satisfazer uma necessidade que nem precisa ser da sociedade toda, pode ser de um pequeno grupo. O sujeito inteligente convence a sociedade, ou algum grupo, a contratar a habilidade específica que ele tenha.
Vejam o caso de Sherlock Holmes e seus poderes dedutivos. Não era nada de novo. O cavalheiro Dupin, de Edgar Allan Poe, também os tinha. Lendo “Os crimes da Rua Morgue”, “A carta furtada” e “O mistério de Marie Roget”, vemos que Sherlock já está todinho ali. Conan Doyle reconheceu isto, afirmando que seu detetive era uma mistura de Dupin com seu professor de medicina Joseph Bell.
Em Um Estudo em Vermelho, sua primeira aventura, Holmes explica a Watson o detalhe que faz a originalidade de sua profissão: “Sou o primeiro detetive particular consultivo”. Dupin era um detetive diletante, que se envolvia nos casos por curiosidade ou por convite da polícia. Holmes, não. Sua casa é um escritório onde as pessoas mais diferentes vão pedir socorro, e pagam-lhe uma boa soma depois que o mistério é solucionado.
Ele profissionalizou o detetive e o transformou numa profissão pública, que qualquer um pode contratar para resolver seus pepinos pessoais.
Quando falamos em crise no mercado de trabalho é porque temos gente qualificada que não encontra emprego, e empregos vagos que não encontram gente qualificada. Cabe aos indivíduos mais espertos fazer, como Holmes, uma avaliação de seus talentos, suas habilidades e sua disposição, e perceber de que modo isto pode ser transformado num modo de ganhar a vida. Uma profissão pode ser inventada tanto pela necessidade social quanto pela criatividade individual.
sábado, 9 de julho de 2011
2604) Drummond: Cidadezinha qualquer (9.7.2011)
O migrante é um sujeito eternamente dividido entre o lugar de onde saiu e o lugar para onde veio. Saiu empurrado por alguma força poderosa; mas em geral teria preferido ficar, porque depois de instalado em outro canto fica o tempo inteiro pensando em voltar. Na música nordestina, por exemplo, existe um cancioneiro completo de músicas dizendo “quero voltar”, “ah, se eu pudesse voltar”, “oh, como foi triste vir embora”. Uma vez migrante, sempre dividido. E foi Carlos Drummond, ao meu ver, quem criou a fórmula mais singela e perfeita para essa angústia, nos famosos versos: “No elevador, penso na roça. / Na roça, penso no elevador” (em “Explicação”).
Drummond, que migrou de Itabira para Belo Horizonte e de lá para o Rio de Janeiro, é um exemplo complexo dessa condição. Em sua obra fica claro que na verdade a maior parte do banzo migratório não se refere ao espaço, e sim ao tempo. O migrante não quer voltar para outra cidade, quer voltar para outra época, uma época, talvez, em que era menino e ainda não percebera o quanto a cidade dele era acanhada, medíocre, repressora.
Em “Cidadezinha qualquer” (no livro Alguma Poesia, de 1930), ele começa sua descrição de uma maneira quase de folheto turístico, imagens luminosas cheias de cores subentendidas e uma charmosa equiparação entre substantivos e verbos: “Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar”. Parece um vilarejo tropical de Astúrias ou Jorge Amado em seus momentos de preguiça sensual. Logo em seguida, o filme que vinha com uma música pressuposta começa a ter sua trilha sonora distorcida, porque uma ominosa câmara lenta apodera-se da imagem: “Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar”. Estava tudo tão bonito mas de repente um feiticeiro projetou seu sortilégio malsão. Não é demais imaginar que o feiticeiro é o próprio poeta adulto, lembrando sua infância e assustando-se com a descoberta súbita de que aquilo não era lindo, era terrível.
Ele prossegue: “Devagar... as janelas olham”. Uma imagem que por um lado sugere o quadrados escuros das janelas abertas, dentro dos quais imaginamos a presença de pessoas semi-ocultas olhando para fora; e por outro lado sugere as casas como rostos e as janelas como olhos. As casas são rostos de pessoas com o corpo enterrado no chão da cidadezinha, sepultadas vivas com apenas a cabeça do lado de fora, condenadas a contemplar eternamente as coisas que à sua frente acontecem devagar.
O verso final, porém, o verso que poderia ser de depressão kafkeana ou tchecoviana, um verso de desmoronamento moral diante da falta de sentido da vida, é apenas um verso irônico, matreiro, desafiador: “Êta vida besta, meu Deus”. Modernistamente, a tragédia é reduzida a uma mera besteira, e Deus a uma simples interjeição. O modernismo foi em grande parte essa fuga do trágico-operístico para o coloquial-malandro. E quem há de afirmar que isto foi uma perda?
sexta-feira, 8 de julho de 2011
2603) Psicofisiologia do frango futebolístico (8.7.2011)
O frango, no futebol, é sempre uma mistura de acidente, gafe, ato-falho freudiano e trapalhada de comédia pastelão. Quando acontece, produz sempre um misto de constrangimento, piedade, risadaria incontrolável, prazer sádico, surpresa, indignação. O frango é uma reafirmação do caráter aleatório do futebol, da sua condição de atividade vulnerável ao acaso, ao imprevisto, a interferências impossíveis de controlar. É a maldição do goleiro, o poltergeist da pequena área. Em tempos recentes a turma do Globo Esporte criou o “Inacreditável Futebol Clube” para nele alistar todos os atacantes que perdem gols feitos, mas a perda de um gol feito, mesmo quando ajuda a decidir um jogo ou um título, não se compara ao frango de um goleiro. O goleiro é o único jogador que não pode errar, porque é dele a última interferência na jogada, a última chance de salvação. Quando ele falha, e falha feio, a torcida sente o chão faltar-lhe embaixo dos pés.
Existem frangos de desatenção, quando o goleiro não está esperando um chute a gol e vê a bola descair mansinha rumo à rede, a dois metros de distância. Existe o frango de excesso de confiança quando a bola vem fraca, e ele vai para a defesa já pensando no que fará em seguida – e a vê passar entre suas mãos, por baixo do seu corpo ou (pior ainda) por baixo do pé com que tentou detê-la. Existe o frango-trapalhada, que envolve goleiro e zagueiros numa situação qualquer de trombadas e encontrões, em que os protagonistas se chocam ou se enrolam mutuamente e ninguém consegue interceptar a trajetória lenta da bola para dentro da meta.
Há um tipo controverso de frango que eu classifico assim, mas alguns experts discordam. Para eles, frango é uma bola “facinha” que o goleiro não consegue defender, então eles não incluem aquela cena em que o goleiro sai do gol tentando rebater a bola para o meio de campo, carimba o atacante e a bola entra. O primeiro que vi ao vivo foi num Treze 1x0 Campinense no Plínio Lemos, quando Elias carimbou Luís Garapeiro à altura da meia-lua e a bola veio quicando e entrou. Nosso bravo Júlio César, da Seleção, fez algo parecido, só que com as costas de um zagueiro, quando era goleiro do Flamengo, num jogo na Bahia.
Dizem que frango é um gol por baixo das pernas, mas também discordo. Há chutes violentíssimos, desferidos a queima-roupa, que passam entre as pernas do goleiro com a velocidade da luz. Não são frango. O frango tem que envolver uma situação de controle e segurança aparentemente total, da parte do goleiro, que desmorona de repente devido a sua incompetência. O frango mais amargo costuma ser o de excesso de confiança, quando o goleiro já defendeu uma série de bolas difíceis e acaba relaxando, com um certo alívio, ao ver se aproximar uma bola mansa e inofensiva. Ele a agarra com segurança, num gesto já repetido milhares de vezes, mas de repente a bola fica esguia, viva, irrequieta, cheia de asas e penas e.... cocoricocó!
quinta-feira, 7 de julho de 2011
2602) As finanças de “Psicose” (7.7.2011)
(Robert Bloch + Alfred Hitchcock)
Psicose foi o grande sucesso comercial de Alfred Hitchcock, e é até hoje um filme que surpreende.
É comum que um filme surja de repente e redefina, quase sozinho, a fórmula de um gênero, pela quantidade de imitações que cria.
O que não é comum é que, 50 anos depois, o filme ainda continue a surpreender em alguns aspectos, porque ao ser exaustivamente copiado ele se transforma, retrospectivamente, num enorme déjà-vu. Vemos primeiro as imitações, e elas nos deixam deslumbrados; quando vemos a criação original, bocejamos de tédio.
Também é interessante rastrear a história desse sucesso financeiro. O autor do romance original é o mestre Robert Bloch, que está para a pulp fiction assim como Hitchcock está para o cinema. Bloch tem a vantagem adicional de escrever policial, suspense, ficção científica e terror (era membro do círculo de discípulos pessoais de Lovecraft).
Ele conta em suas memórias (Once Around the Bloch) que recebeu pelo romance o “impressionante adiantamento” de 750 dólares. Ao receber uma proposta de 5 mil dólares pelos direitos de filmagem ele hesitou e pediu dez. Pagaram-lhe 9 mil, e só depois de fechado o contrato foi-lhe revelado que o proponente era Hitchcock.
Bloch diz que a editora e o seu agente pegaram as respectivas percentagens, e tudo que ele ganhou com o filme foram cerca de 5 mil dólares.
Entra em cena James Cavanagh, o primeiro roteirista contratado. Depois de uma porção de divergências com Hitchcock, Cavanagh entregou um primeiro tratamento do roteiro, recebeu 7.166 dólares e foi dispensado.
Para o seu lugar foi contratado Joseph Stefano, cujo entendimento com Hitchcock foi mais rápido. Seguindo em grande parte a estrutura armada por Bloch em seu romance, Stefano foi provavelmente o autor de uma decisão crucial, a de começar o filme acompanhando a história de Janet Leigh, e só introduzir o Bates Motel (que era onde o romance começava) somente depois, durante a fuga noturna dela, após o roubo.
Stefano acabou recebendo pelo roteiro a soma de 17.500 dólares, ou seja, mais de três vezes o que foi pago a Robert Bloch.
E aí entra em cena Hitchcock, cujo talento financeiro era pau-a-pau com o talento narrativo.
Seu cachê para dirigir, nessa época (depois de filmes como Um Corpo que Cai, O Homem Que Sabia Demais, Intriga Internacional), era de 250 mil dólares por filme. Os executivos do estúdio não simpatizavam nada com esse projeto em preto-e-branco, nem botavam fé nesse roteiro sobre um serial killer que se vestia de mulher e mantinha a mãe empalhada. Queriam livrar-se dele logo. Ficaram surpreendidos quando Hitchcock abriu mão do seu salário em troca de 60% da renda líquida do filme.
Como todos tinham certeza de que iria ser um filme problemático, concordaram. Hitchcock acabou faturando, pessoalmente, mais de 15 milhões de dólares, que dariam, em valores de hoje, algo em torno de 150 milhões de dólares – para dirigir um único filme.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
2601) Eu sou Napoleão (6.7.2011)
Dias atrás vi na TV um filme interessante, A Roupa Nova do Imperador (2001) dirigido por Alan Taylor, baseado no livro de Simon Leys. O filme parte de uma idéia clássica das Teorias da Conspiração: foi mesmo Napoleão Bonaparte que morreu no exílio, em Santa Helena, ou terá sido um sósia? E se foi um sósia, o que aconteceu com o verdadeiro Imperador? Por que não reapareceu para tentar voltar ao Poder? Napoleão foi o homem mais famoso de seu tempo, e quando estava exilado houve até mesmo uma conspiração brasileira (liderada pelo General Abreu e Lima) para resgatá-lo, trazê-lo ao Brasil e torná-lo imperador de um reino independente no Nordeste, com sede em Campina Grande. (Quem me contou essa foi Paulo Santos de Oliveira, o autor de A Noiva da Revolução; estou vendendo a preço de fatura.)
No filme de Alan Taylor, uma conspiração dos bonapartistas coloca um sósia no lugar do imperador, no exílio, e o traz de volta a Paris. O combinado era que quando estivesse tudo pronto o sósia seria desmascarado e ele tomaria o poder. Tudo dá certo até o ponto em que o sósia morre acidentalmente. Napoleão, anônimo e sozinho em Paris (seu contato lá também morre de repente) anda pelas ruas sem ser reconhecido, e não consegue uma audiência com ninguém importante, ainda mais depois que os jornais publicam a notícia de sua morte. Pra complicar as coisas ele fica hospedado na casa de uma viúva bem bonitinha que vende melões e começa a sentir uns fraquejos na direção dela.
Napoleão tenta revelar sua verdadeira identidade, mas ninguém crê, a começar pela viúva. Ele acaba sendo levado a um prédio esquisito e é deixado no jardim. Começa a passear e se assusta ao ver um sujeito com olhos esbugalhados, babando, e um chapéu-de-Napoleão na cabeça. E mais adiante outro, com um chapéu igual e a mão enfiada no casaco. E logo adiante mais dois, e mais adiante ainda mais três. É um hospício, e o jardim inteiro está cheio de doidos que imaginam que são Napoleão. Ele pula o muro e some.
O filme de Alan Taylor é implausível, mas isso não é um defeito, pois se trata apenas de uma comédia romântica. Numa situação real, o verdadeiro imperador não se conformaria jamais em tornar-se um vendedor de melões por amor a uma mulher. (Embora toda mulher sonhe com isto: que um imperador, por amor a ela, concorde em vender melões. Para viver isto, ela abriria mão do império dele.) Um imperador sem império (sem estado-maior, sem generais, sem reconhecimento público) é apenas um doido a mais. Este filme nos leva a imaginar, num enredo psicologicamente e historicamente plausível, o que faria o verdadeiro Napoleão se se visse destituído de sua “napoleanidade” e reduzido a si mesmo, ao “peso seco da pessoa”, como dizia Guimarães Rosa. Recuperaria o império ou seria fuzilado na tentativa, mas duvido que se resignasse aos melões. Se bem que, com uma viuvinha daquelas, nunca se sabe.
terça-feira, 5 de julho de 2011
2600) Raymond Roussel (5.7.2011)
A literatura excêntrica é aquela produzida pelo que chamo de talentos fora-de-esquadro, aqueles escritores cuja personalidade única, mesmo que desorientada, meio demente, etc. confere a sua literatura um poder revelatório especial.
(Quando consideramos estes autores, os critérios da técnica literária e da estética não podem deixar de ser levados em conta, claro, mas ao mesmo tempo não podem ter o mesmo peso que têm quando analisamos a obra de um artista convencional, não-excêntrico.
((Um bom exemplo de artista excêntrico foi Raymond Roussel, 1877-1933, contemporâneo dos surrealistas, que publicou meia dúzia de livros de poemas extremamente convencionais na aparência, mas obedecendo a regras de composição levemente absurdas.
(((Roussel gostava, por exemplo, de encher seus textos de parênteses, e de novos parênteses dentro dos primeiros, o que tornava suas narrativas uma série de “bonecas russas”, umas dentro das outras; é o que ocorre no famoso Novas Impressões da África.
((((Outra técnica sua era pegar duas frases que soavam quase iguais, mas com sentido diferente, como “uma revista” e “um arrivista”; ele iniciava o texto com uma delas, e ia aos poucos fazendo a narrativa incluir elementos da próxima frase, até concluir o texto com ela.
(((((A técnica dos parênteses era um tipo de “linguagem encapsulada" que encantou os surrealistas, os estruturalistas, e mesmo escritores de FC como Ian Watson, que a usou como inspiração para o romance The Embedding, um dos poucos livros de FC em que a Linguística é a ciência que serve de inspiração.)))))
Roussel usava esses processos sem se preocupar muito em saber se o leitor iria achá-los fáceis ou difíceis; era um desses sujeitos que escrevem para si mesmos, sem ligar muito para a humanidade. Era muito rico, mimado pela mãe, homossexual, ultra-sofisticado, um típico dândi do período desnorteado que a Europa viveu após a I Guerra Mundial.))))
Em seu livro Como Escrevi Alguns dos Meus Livros, ele descreve esses métodos, dá exemplos e faz comentários gerais sobre sua literatura. Ele comenta inclusive uma espécie de crise mental que teve ainda muito jovem, quando julgou que era um gênio e escreveu seu primeiro livro numa espécie de delírio; o fracasso do livro quase o enlouqueceu.)))
Roussel viajava pelo mundo sem sair de dentro da cabine do navio; dizia que os únicos lugares interessantes do mundo estavam dentro de sua própria cabeça. Parecia ser um desses sujeitos que num instante estão no limite entre a normalidade e a excentricidade, e minutos depois no limite entre a excentricidade e a loucura.))
Qual o interesse, então, de uma literatura feita apenas para satisfazer caprichos de um escritor meio adoidado? Talvez eles sirvam como imagem ampliada dos processos da criação.)
O escritor fora-de-esquadro tem as mesmas imprevisibilidades dos demais, só que no seu caso são elas que assumem o volante da criação literária.
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