sábado, 28 de março de 2009

0929) Uma boa livraria (9.3.2006)



O que faz um boa livraria? Duas coisas são óbvias: repertório e ambiente. A livraria tem que ter coisas que nos dêem vontade de comprar, e tem que ser um lugar agradável que nos dê vontade de ficar ali por muito tempo. (Observe que, em princípio, estas qualidades beneficiam tanto o livreiro quanto o cliente) Nos últimos anos as melhores livrarias daqui do Rio de Janeiro vêm ampliando seus serviços: são livrarias-café, livrarias com auditório para debates ou palestras, livrarias onde é possível pegar um livro, sentar numa poltrona e ler durante uma hora sem que um balconista ansioso venha nos perguntar “se queremos alguma coisa”, ou, pior ainda (caso que já sucedeu mais de uma vez comigo) para avisar que “se quiser ler vai ter que comprar”. Se isto lhe ocorrer um dia, leitor, recomendo-lhe: nunca mais passe sequer na calçada.

Uma livraria não vende apenas objetos, vende também a sensação de que o cliente está compartilhando um espaço mental com pessoas cuja presença ali é meramente simbólica. A livraria é um ponto de encontro de pessoas (como o foram durante tantos anos as saudosas Livraria Pedrosa, em Campina, e Livro-7, no Recife), um espaço de convivência, uma praça com estantes no lugar de árvores e balcões em vez de jardins. Um lugar onde conversamos sobre política, futebol, mulheres, religião, cinema, e, inevitavelmente, sobre livros.

A livraria deve também atender encomendas. Já observei que na maioria delas o sujeito entra, procura o livro tal; não tem, ele agradece, e vai procurar em outra. Me admiro quando as pessoas se queixam de que não encontram meu livro na livraria. Ora, quando um leitor precisa de um livro e não o encontra, basta encomendá-lo. Leitores constantes costumam levar listas de livros às livrarias que freqüentam, e estas telefonam avisando quando o livro encomendado chegou. Esta, infelizmente, é uma relação pouco freqüente no Brasil. O leitor parece desconhecer que tem o direito de encomendar; e o livreiro não tem interesse em pedir um exemplar apenas.

Livrarias dos EUA costumam promover sessões de leitura com autores, e não entendo como é que essa moda não pegou aqui no Brasil, tão solícito em importar as jogadas-de-marketing alheias. Um escritor, ao lançar um novo título, programa juntamente com a editora uma turnê por 20 ou 30 cidades, e em cada uma delas comparece a uma livraria local, onde lê trechos do livro e depois debate com o público, responde perguntas, e por fim dá autógrafos. Aqui no Brasil, só assimilaram a parte mais boba – a do autógrafo.

Um bom ambiente faz com que o cliente se demore mais, volte mais vezes, traga outras pessoas. A livraria não é uma mera loja de vender livros como há lojas de vender parafusos ou sapatos. É como um bom restaurante, que não se limita a vender pratos de comida: ele faz da refeição um ritual de convivência, de bem estar, um ponto de encontro de amigos, uma oportunidade para conhecer novas pessoas.

0928) Ser famoso (8.3.2006)


(Norman Rockwell, "Auto-Retrato")

Por que é útil ser famoso? Porque as pessoas são vaidosas, egocêntricas, etc.? Pode ser, mas não é só isto. Tenho (adivinhem!) uma teoria. Existem quatro níveis de formação da realidade mental, e a Fama tem a ver com o quarto nível.

O primeiro nível é o que temos desde a pré-história: os contatos diretos que mantemos com outras pessoas, tudo que dizemos, ouvimos, presenciamos. O segundo nível é o das informações indiretas: o que aprendemos oralmente, o que ouvimos da boca de terceiros, relatos em segunda mão sobre o que existe ou o que aconteceu. É a famosa “cultura oral”. O terceiro nível é o dos meios de comunicação “civilizatórios”: documentos, livros, obras literárias ou pictóricas, escrituras sagradas, relatos. Até o século 19 o ser humano existiu nestes três níveis, sendo que a única “revolução” neles foi a invenção da imprensa no século 16.

O quarto nível surgiu no século 19 com a invenção da fotografia e do cinema, um imenso salto qualitativo em relação a técnicas milenares como pintura, desenho, gravura, etc.; e, depois, o surgimento das telecomunicações: rádio, telegrafia, telefone, telex, fax e TV. Esse quarto nível expandiu-se sob a forma de imprensa ilustrada, TV aberta, TV a cabo, Internet, celulares, e toda a parafernália visual que está explodindo por aí.

Devem existir centenas de teses sociológicas calculando a percentagem e a importância relativa desses níveis na formação das mentes individuais e dos padrões culturais. O mundo mental de um velho sertanejo depende 90% dos três primeiros níveis. Num adolescente de classe média urbana, esta proporção se inverte. O quarto nível é mais real que o resto.

Ser famoso é produzir clones virtuais de si próprio nesse quarto nível. É o nome no jornal, a foto na revista, o rosto na TV. No momento em que dizemos uma fala de dez segundos no “Jornal Nacional” esses dez segundos são multiplicados por 50 milhões de espectadores. Nossa existência terrena não fica mais longa – mas fica mais larga. Há mais de um século esse quarto nível, que se expande em progressão geométrica, é um referencial tão importante quanto (ou muito mais do que) nossas fontes de informação pessoais, diretas ou indiretas.

Edgar Morin chamou de “Os Olimpianos” àqueles que vivem nesse universo luminoso e deslumbrante da mídia. Nós os contemplamos diariamente, acompanhamos suas vidas, chegamos a conhecê-los melhor do que aos nossos vizinhos do lado. Recentemente, uma nutricionista chamada Ruth Lemos deu uma entrevista na TV e “pagou um mico” histórico porque estava com um ponto eletrônico no ouvido e começou a repetir o eco que ouvia. Virou piada. A imagem circulou na Net. Criaram 48 comunidades sobre ela no Orkut. Que foi chato, foi. Mas hoje ela é famosa. Num restaurante, num aeroporto, numa entrevista de emprego, basta-lhe dizer: “Eu sou Ruth Lemos, a moça que falou sanduíche-íche-íche na TV”. E as pessoas imediatamente acreditarão que ela existe.

0927) Política literária (7.3.2006)




(Ernest Hemingway & Fidel Castro)


Política literária é tratar cada leitor como um político trata um eleitor. 

Dar-lhe atenção, quando abordado, mesmo que não disponha de muito tempo. 

Ouvir o que o leitor tem a dizer. 

Procurar dizer-lhe algo em que ele possa ficar pensando, e que lhe seja útil. 

Tratar a imprensa com atenção, mas sem promiscuidade. 

Não misturar relações profissionais com relações pessoais. 

Tratar bem os concorrentes de hoje, que podem ser os aliados de amanhã, e vice-versa. 

Saber que tudo que se diz em público pode vir a ser lembrado e repetido (e será, com certeza, se for algo inconveniente).

Existem escritores de gênio que são péssimos políticos, e somente a genialidade faz com que sejam lembrados hoje. Em geral, quem suaviza sua escalada é um grupo de pessoas mais próximas (família, agentes literários, editores, amigos) que se encarregam de aparar arestas, administrar o cotidiano do artista, cuidar de sua imagem (porque ele não cuida), e de um modo geral fazer com que ele se dedique a fazer a única coisa que faz bem: escrever.

Outros são excelentes políticos. Guimarães Rosa, Garcia Márquez, Arthur C. Clarke, Machado de Assis, Octavio Paz, Jorge Amado, são exemplos que me ocorrem assim meio ao acaso. Indivíduos equilibrados, afáveis, bem falantes, hábeis no trato com o homem da rua, com a imprensa, com os poderosos. 

Praticaram, ao longo de suas carreiras, a difícil arte de andar no convés de um navio, em plena tempestade, sem derramar uma gota sequer do seu coquetel. Alguns foram malhados pela crítica ou perseguidos por polemistas profissionais; mas nunca sofreram sequer um “knock-down”. 

Há escritores que são assim, mas cuja obra não têm muita densidade. Estes, tipicamente, atingem o auge da glória quando em vida, mas uma vez sumidos, sumido seu charme, sumido o vigor impositivo de sua presença, some a obra também.

Fico pensando em auto-sabotadores contumazes como Edgar Allan Poe, Arthur Rimbaud, Lima Barreto... Pode-se fazer qualquer elogio a eles, menos dizer que eram hábeis na administração da própria carreira. 

Foram perseguidos por uma combinação nefasta: temperamento impulsivo, vícios, egocentrismo, ambiente preconceituoso, conflitos familiares... Sobre eles parecia pairar uma maldição cuja fórmula dizia: “Não serás popular. Conquistarás poucos admiradores, e mesmo estes acabarás afastando de ti. Muitos te admirarão; mas na hora H, ninguém estará do teu lado”.

Ser político é uma dimensão inevitável de qualquer sujeito, mesmo um pedreiro ou um balconista. Não ocorre só na literatura. 

Outras atividades nos mostram parelhas de talentos com diferentes destinos: Pelé x Garrincha, Luiz Gonzaga x Jackson do Pandeiro, Paulo Coelho x Raul Seixas. 

A diferença entre o que acontece a uns e a outros não é uma diferença de talento, mas uma diferença de habilidade política, de capacidade para administrar a si próprio. Para o público não faz muita diferença, mas para eles, fez, e muito.





0926) Rei Mídia, o Midas Digital (5.3.2006)


(zapatopi.net)

Lembram-se da história do Rei Midas, aquele que transformava em ouro tudo que tocava com o dedo? Pois estamos vivendo, depois da invenção do computador, do CD, do DVD, do CD-Rom, do gravador digital, a época de um milagre semelhante. É a era do Rei Mídia: tudo que ele toca com o dedo transforma-se num objeto idêntico ao anterior, ou seja, basta tocar numa coisa que ele cria instantaneamente uma cópia exata daquela coisa.

Assim como aconteceu com seu nobre antepassado lá da Frígia, o Rei Mídia deslumbrou-se com seu poder miraculoso e achou que isso lhe permitiria multiplicar suas riquezas. Começou a duplicar suas moedas de ouro, seus tesouros, seus rebanhos. Aí um dia teve a má idéia de duplicar a Rainha, que era muito bonita mas às vezes tinha dor-de-cabeça de noite, e ele achou que não custava nada ter uma clone ali, de sobreaviso. Fez isso, mas percebeu que a Rainha-ponto-1 tinha herdado o seu dom, ou seja, o de duplicar objetos. A princípio ele manteve a coisa sobre controle, mas ela foi dando um jeitinho e depois de algumas semanas tinha duplicado quatro irmãs, três irmãos, duas primas, vinte e oito amigas e (não explicou por que) quinze jovens soldados da guarda pessoal do Rei. Todos estes, está claro, herdaram também a capacidade duplicadora, e saíram duplicando quem lhes dava na telha. Reza a lenda que a ilha ficou tão cheia de gente que afundou antes do fim do ano, e a reação-em-cadeia, felizmente, morreu aí.

A maldição do Rei Mídia atingiu agora, nos tempos modernos, a indústria da música, a indústria do cinema e do vídeo. Tudo que existe nesse formato (músicas, livros, filmes) pode ser transformado em sinais eletrônicos e enviado instantaneamente para qualquer lugar do mundo, onde uma nova cópia, clone do original, surgirá num piscar de olhos. O mais irônico é que a própria indústria criou a tecnologia que está desvalorizando sua mercadoria principal. A partir de certo ponto, essas tecnologias voltadas para a produção em massa não puderam mais ser contidas nas mãos de um pequeno grupo. O barateamento da produção, buscado para gerar lucros, gerou máquinas duplicadoras cada vez mais simples e baratas, e chegou a tal ponto que o segredo escapou às mãos dos que o criaram. O tapete foi puxado de baixo de seus pés.

E encerro citando palavras de Cory Doctorow em seu blog “Boing Boing”: “Tudo que pode ser expresso em forma de bits será expresso em forma de bits. Bits irão se tornar cada vez mais fáceis de copiar. As empresas de entretenimento estão convencidas de que seus negócios dependem da introdução de bits à prova de cópia. É ridículo. Uma tal coisa não existe, e nunca poderá existir. Governos que tentam proteger empresas que exigem bits à prova de cópia são como governos que tentam proteger empresas instaladas na borda de um vulcão, as quais exigem leis imediatas proibindo essas erupções de lava que estão prejudicando seus negócios”.

0925) O cordel de Antonio Francisco (4.3.2006)




(poeta Antonio Francisco)

De uma viagem a Mossoró guardei como lembrança o livro Dez Cordéis num Cordel Só do poeta Antonio Francisco. Como o nome indica, são dez folhetos que haviam saído em separado e que o poeta juntou neste volume (Ed. Queima Bucha, Mossoró, 2003). 

Poeta de verbo fluente e ótimo recitador, Antonio Francisco tem outras obras publicadas, mas esta coletânea dá uma ótima medida de sua imaginação e de suas virtudes no trato com a palavra.

A maioria dos poemas deste livro têm uma visão crítica do mundo de hoje com seu materialismo, egocentrismo, apego ao dinheiro e desprezo ao meio ambiente. O poeta imagina diversas circunstâncias fantásticas em que o seu narrador é transportado para um ambiente que serve de espelho deformado do nosso mundo, ou então serve de Utopia às avessas que deixa à mostra os nossos erros. 

Em “Meu Sonho”, é um mundo onírico, voltado para o trabalho e a educação: 

As crianças daqui brincam 
com paquímetro de aço puro, 
esquadro, régua, compasso, 
martelo de ferro duro 
-- são brinquedos da infância 
e ganha pão do seu futuro. 

Em “Do Outro Lado do Véu”, é uma nave espacial que pega o narrador no roçado e o transporta para um lugar remoto onde se extraem, das almas humanas, suas emoções boas ou más, que servem de matéria-prima para os fenômenos da Natureza: 

Com dez gramas de orgulho 
e trinta de vaidade 
toda criança aqui faz 
uma grande tempestade 
capaz de riscar do mapa 
num minuto uma cidade.

Antonio Francisco tem uma enorme fluência de estilo, é um daqueles poetas que, sem forçar a mão, parecem rimar e metrificar espontaneamente. O que não é tão freqüente quanto parece, no mundo do cordel. 

Uma coisa que se encontra muito no cordel é uma sextilha onde a terceira rima parece enfiada “na marra”, como se somente ao chegar no fim da estrofe o poeta percebesse que a última linha precisa rimar com a segunda e a quarta; aí aparece uma palavra caída de paraquedas somente para fechar a sextilha. Nos versos de Antonio Francisco, isto raramente, ou nunca, acontece.

“A Oitava Maravilha” é a história divertida do deus mitológico Cafuné, que escavou sozinho o leito do Rio São Francisco. “A Arca de Noé” é uma alegoria do desmatamento do Brasil, comparando-o com a arca do patriarca bíblico, que se distraiu e levou para dentro dela um casal de cupins. 

Em “Os Sete Constituintes”, o narrador dorme em cima de uma árvore e testemunha às escondidas um encontro de diversos animais (o burro, o morcego, o rato, a cobra, etc.) que se queixam da brutalidade e da ignorância do Homem: 

O morcego abriu as asas 
deu uma grande risada 
e disse: Eu sou o único 
que não pode dizer nada 
porque o Homem pra nós 
tem sido até camarada. 

Constrói castelos enormes 
com torre, sino e altar 
põe cerâmica e azulejos 
e dão pra gente morar 
e deixam milhares deles 
nas ruas, sem ter um lar”. 

É uma voz nova e vigorosa, na tradição crítica e satírica do cordel clássico.





0924) Cinco razões para ter medo (3.3.2006)



(detalhe de foto de Gustavo Moura)

A primeira razão é que o medo é inevitável. É possível que alguém passe a vida inteira sem experimentar o amor, a saudade, o ódio. Mas – o medo? Duvido. Pense num bebê de um ou dois anos, no rosto assustado com que ele encara um desenho, uma imagem na TV. 

Amor e ódio precisam de um mínimo de justificativa; o medo não. É um sistema-de-alarma embutido em nossos neurônios há milhões de anos. Devemos em grande parte a esse sistema a nossa sobrevivência como espécie. Se não há como fugir dele, temos que experimentá-lo, saboreá-lo, medi-lo, conhecê-lo a fundo.

Em segundo lugar: o medo é uma revelação. Ele vem de um lugar oculto, e só vem quando quer, não quando nós queremos. Não sei de que modo alguém possa sentir medo voluntariamente. Isso não existe. O medo é algo que nos sobrevém, que nos envolve, queiramos ou não. 

Podemos gerá-lo artificialmente (e aqui entram os livros e filmes de terror, etc.), mas será sempre isto: um medo artificial, um medo de mentirinha. Não é o terror pânico, aquele que nos amolece as pernas e nos esvazia os intestinos. Quando experimentar este, caro leitor, agradeça, por mais que a experiência tenha sido humilhante ou constrangedora. Agora você está mais perto de saber quem realmente é.

Terceiro: o medo nos faz manter os pés no chão. E neste caso em particular estou me referindo não ao medroso contumaz, mas ao sujeito metido a valente, ao ousado, ao aventureiro, ao que gosta de enfrentar desafios. Se ele tem a cabeça no lugar, ele sabe que o medo é um bom conselheiro. O conselho que o medo nos dá não é “Bora correr!” 

Quando sentimos medo, algo está nos dizendo que finalmente estamos diante de uma coisa que pode nos servir de peso e de medida. Já disse algum filósofo que sujeito corajoso não é o que não sente o Medo, mas o que sabe mantê-lo sob controle e continuar fazendo o que tem pra fazer.

O quarto motivo é que o medo é um ativador aleatório de sistemas. Não sabemos quais são os sistemas de reflexos físicos e mentais que ele vai ativar em nós, mas só saberemos se o experimentarmos. O campo de batalha já mostrou valentões que se encolhem apavorados e sujeitos lesos que se transformam em heróis. A experiência-limite que desencadeia o medo desencadeia também outras reações correlatas que variam de caso para caso.

Em quinto lugar (e esta é uma razão para convencer os mais cínicos) o medo dá dinheiro. Vejam a imensa indústria atual do filme de terror, do romance de terror. (Curiosamente, não se cultiva mais hoje em dia um teatro de terror, a não ser como sátira ou paródia; foram-se os dias do Grand Guignol francês) 

É um medo de mentirinha, como afirmei acima, mas pessoas sensatas argumentarão que se é pra sentir medo é melhor divertir-se sentindo um medo inofensivo e sob controle (aí estão os parques de diversão com suas montanhas-russas e o escambau) do que o medo de alguma coisa hostil que nos ameaça pra valer.