segunda-feira, 31 de maio de 2021

4709) O beijo radioativo da morte (31.5.2021)



 
Kiss me Deadly (1955), dirigido por Robert Aldrich, teve no Brasil o título de O Beijo da Morte. É um desses filmes que “estouram a costura” dos gêneros cinematográficos, unindo elementos disparatados, contraditórios. Toda vez que o filme vai se encaminhando na direção de um clichê previsível, escorrega e vai noutro rumo.
 
Começa pelo protagonista. Mike Hammer é o detetive particular criado por Mickey Spillane, apologista do machismo e da violência. Acho que li um ou dois romances de Spillane, que de fato tem esse viés meio sadístico, com longas cenas de espancamento e de violência física descritas com visível prazer. Se os leitores dele compraram ingresso para ver isso, quebraram a cara. A única cena “spillanesca” no filme é quando Hammer fecha uma gaveta nos dedos do médico gordinho que se recusa a entregar-lhe um objeto-chave para a solução do mistério.
 
E Hammer não aparece como nenhum brucutu. Interpretado por Ralph Meeker, ele está até bastante “meek”, embora sempre carrancudo quando se confronta com a polícia. E também dá uma de indiferente quando recebe os afagos de sua secretária-amante Velda (Maxine Cooper), aquela típica assistente devota sem a qual o detetive não conseguiria juntar as pistas. Os dois têm boas cenas, e alguns diálogos memoráveis (Ele: “Você nunca está por perto quando eu preciso de você.” Ela: “Você nunca precisa de mim quando eu estou por perto.”).


É um filme “noir” pelo estilo visual, pela fotografia de Ernest Lazslo, cheia de ângulos caprichados e iluminação em alto contraste. E pela sensação de perigo desconhecido e iminente. Nem o público nem o detetive fazem a menor idéia do que está acontecendo, e de por que tanta gente aparece morta de uma hora para outra.
 
Existe uma fronteira pouco nítida entre o policial “noir” e o policial “hardboiled”. Em geral, usam-se esses dois termos com a mesma função, tanto na literatura quanto no cinema. Há uma distinção, contudo, se quisermos ser mais precisos.
 
O “noir” é geralmente uma história de indivíduos meio fracassados, atormentados, metidos em crimes, ameaças, situações-limite, lutando contra tudo. São homens e mulheres anônimos, civis comuns, perdidos na selva urbana e entrando em choque com as feras, metendo-se em situações de crime sem saber ao certo por quê.
 
O “hardboiled” é o romance ou filme sobre indivíduos durões, resolutos, às vezes violentos, mas sempre implacáveis, que enfrentam forças superiores à sua. Frequentemente é um detetive particular que bate de frente com a polícia, com os bandidos, com a imprensa, com a Justiça. São sujeitos cínicos, calejados, às vezes sedutores, inteligentes o bastante para fazerem deduções detetivescas, e impacientes o bastante para descer a porrada quando precisam resolver logo uma pendência.




O Beijo da Morte é uma mistura dos dois, porque no cinema o filme “hardboiled” não me parece ter criado uma estética visual específica, e o “noir” sim. Alguns grandes filmes com a estética “noir” (fotografia, iluminação, cenários) são A Marca da Maldade (1958) de Orson Welles, O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed, Pacto de Sangue (1944) de Billy Wilder... Filmes com influência do Expressionismo Alemão e com aqueles ângulos extravagantes, um claro-escuro violento, efeitos de iluminação móvel (faróis de carro que passam, lâmpada que balança, lanternas elétricas nas mãos, etc.). Cenários às vezes bizarros, às vezes filmados em ângulos ameaçadores.
 
E ao mesmo tempo o roteiro de A. I. Bezzerides desenvolve uma situação típica de filme hardboiled, onde o detetive, a polícia e os bandidos formam um triângulo de ameaças mútuas numa correlação de forças que se altera a cada cena, a cada nova morte, a cada nova surpresa, mas o detetive durão assume sempre aquela atitude de quem “não abre nem prum trem”.


Aí entramos em outra reviravolta. Mike Hammer se meteu nesse mistério porque resolveu dar uma carona a uma mulher misteriosa, vestida apenas numa capa, que vinha correndo à noite pela rodovia. Os dois são presos por bandidos, a mulher é torturada e morta, e Hammer decide que vai, se não propriamente vingá-la, pelo menos entender por que ela representava uma ameaça para alguém.
 
Kiss Me Deadly dá algumas triscadas de leve na ficção científica ou pelo menos no policial high-tech que viria a se consagrar no futuro em filmes como A Conversação (1974) de Francis Coppola. Ele nos mostra na casa/escritório de Hammer uma secretária eletrônica que utiliza um gravador-de-rolo daqueles antigos. Engenhocas assim já existiam em 1955, mas o que tento imaginar hoje é o impacto que a visão desse aparelho, na casa de um detetive, produziria na platéia.

 
E o filme tem um dos “McGuffins” mais intrigantes na história do cinema. “McGuffin” é uma expressão atribuída a Alfred Hitchcock para designar o objeto que todo mundo (detetive, bandidos, polícia) luta para obter. Pode ser dinheiro, jóias, drogas, documentos, planos secretos de um submarino atômico... No fim não importa, dizia Hitchcock; ele está ali somente para botar em movimento o mecanismo das mortes e das perseguições.
 
O primeiro McGuffin da história é uma mensagem que a mulher da cena inicial deixa para Hammer. No momento em que ele lhe dá carona no carro, ela diz que se chama Christina, em homenagem à poetisa Christina Rossetti. O detetive dá a essa informação a carga de irrelevância que seria de se esperar da parte de um detetive de Mickey Spillane. Mais tarde, porém, ele descobre no apartamento da mulher um livro da poetisa, leva-o consigo, e mediante uma dedução consideravelmente facilitada pelo roteirista do filme, acaba chegando ao segundo McGuffin.
 
Que é uma caixa misteriosa, guardada num armário de um clube. Quando Hammer encontra a caixa, comenta em voz alta que ela parece muito quente. Ao entreabri-la, escapa-se dali uma luz de calor intenso, que acaba queimando sua mão. E no clímax da narrativa outra pessoa abre de vez a caixa e ela se transforma, como um personagem advertira pouco antes, na Caixa de Pandora. A caixa capaz de libertar todos os males do mundo.


Subentende-se que a caixa continha alguma coisa radioativa (é bom lembrar que o filme surgiu apenas dez anos depois de Hiroshima), se bem que cientificamente isso suscita mais desconfiança do que respostas. Não importa: é a guinada final de um filme que era ao mesmo tempo um policial “noir” e um “hardboiled”, e que na sua reta final vira a esquina bruscamente rumo à ficção científica, mas a FC de filmes muito pouco científicos como Tarantula (1955) de Jack Arnold ou O Mundo em Perigo (1954) de Gordon Douglas.
 
Essas pequenas heresias genéricas acabaram tornando Kiss Me Deadly um filme memorável no meio de tantos outros, cinematograficamente superiores, mas que mantêm do começo ao fim a coerência de gênero – como O Falcão Maltês (1941) de John Huston ou The Big Sleep (1946) de Howard Hawks.
 
E a “caixa da morte luminosa” deixou uma impressão duradoura no cinema dos EUA. Dois ou três exemplos me vieram logo à memória, e uma pequena busca no Internet Movie Data Base me trouxe outros. A abertura da Arca da Aliança no final de Os Caçadores da Arca Perdida (1981) de Spielberg, derretendo todo mundo com sua luz mortífera. O misterioso alienígena escondido na mala do carro-em-fuga do subclássico Repo Man, a Onda Punk (1984) de Alex Cox. A bola luminosa que concentra em si toda a maldade do mundo, no desenho-antologia Heavy Metal, Universo em Fantasia (1981) de Gerald Potteron. E mais, e mais...
 
Como diria alguma divindade cínica, tatuada e sob o efeito de um poderoso psicotrópico: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos derreterá”.


(O filme pode ser visto por quem se associar, e o preço é bem compensador, ao saite de streaming Belas Artes À La Carte, que recomendo.)








sexta-feira, 28 de maio de 2021

4708) Falatório nordestino (28.5.2021)




(foto: Campina à noite, por Leydson Jackson)

São jeitos de falar, jeitos de dizer que se fala em vários lugares do Nordeste. Se se usa em outras regiões, é porque foram nordestinos que levaram para longe.
 
PEGAR
Um expletivo para dar mais força ao verbo que vem em seguida. “Fui reclamar de minha filha, ela pegou e saiu da sala sem responder.” “Minha mãe disse que se eu deixasse a cama desarrumada ela me botava de castigo, aí eu peguei e deixei, pra ver se era mesmo”.
 
Também se usa o verbo “ir” num sentido semelhante, de mero reforço. “Eu duvidei que Fulano conseguisse beber um café quente como aquele, pois o danado foi e bebeu”.
 
PEITICA
Teimosia, implicância.  “Ele fica de peitica comigo porque sabe que eu já fui namorado da noiva dele, mas qual é a culpa que eu tenho?”

O cunhado dissera que, pessoal, amanhã era Carnaval!  Numa alegria estranha que Deisi talvez não tivesse, concentrada ainda na aula que dera. Mas a irmã continuou na peitica, reclamona, reprovando inclusive a aula.
(Marilene Felinto, O Lago Encantado de Grongonzo, pag. 139)
 
NÃO DAR UM PREGO NUMA BARRA DE SABÃO
Diz-se de alguém muito preguiçoso ou muito rico, que não faz o menor esforço.  “Ela é quem sustenta e casa e cuida dos filhos, o marido não dá um prego numa barra de sabão e ainda pede dinheiro a ela pra ir beber.”
 
PARA O ANO
No ano que vem. Usa-se também “para o mês” e “para a semana” (esta última, sempre em contração: “pra semana”).  “Pra semana começam as aulas, é bom ir logo procurar seu material do colégio”.  “Eu vou viajar ao Rio para o mês, se tiver alguma encomenda pode ir preparando”.  “Para o ano vai ter eleição, aí você vai ver gente aqui prometendo calçar a rua.”  
 
Curiosamente, vale notar que no caso do mês e do ano não se usa, nunca, a forma contraída (“pro mês”, “pro ano”).
 
É DA VEZ QUE...
O mesmo que “É dessa vez que...”: “Se o pneu do carro furar, é da vez que eu me lasco: deixei meu estepe no carro de meu irmão.”  É uma dessas expressões apenas expletivas, intensificadoras, que podem ser extraídas da frase sem mudar seu sentido ou sua estrutura.
 
SIMÃO - O que eu vou fazer é escrever três folhetos arretados, três folhetos chamados “O Peru do Cão Coxo”, “A Cabra do Cão Caolho” e “O Rico Avarento”.  Vendo tudo e é da vez que fico rico!
(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato III)
 
É DE ROSCA?
Pergunta que se faz quando alguma coisa está demorando muito.  “Ô garçon, esse sanduíche é de rosca?  Tem mais de dez minutos que eu pedi!”   O termo implica uma comparação entre um prego, que se enfia ou se arranca de uma vez só, com um parafuso, que é preciso enroscar ou desenroscar.
 
GARAPA
Água com açúcar.  É uma espécie de remédio universal para pessoas que levam um susto, crianças que choram de noite, pessoas com tonteiras, etc.  Também se usa para descrever uma briga desigual, geralmente na expressão « pegar garapa » : « Olha, eu não vou brigar com um cara pequeno do seu tamanho, não gosto de pegar garapa. »  Por extensão, qualquer coisa muito fácil de preparar, ou de obter.
 
-- O cinema é o diabo, seu Ramalho.  O senhor não imagina.  São uns beijos safados, língua com língua, nem lhe conto.  Provavelmente as moças saem de lá esquentadas.
-- Devem sair, concordava seu Ramalho.  Por isso há tanta gente de rédea no pescoço.
-- Que réde!  Hoje não há rédea.  Um sujeito corre atrás de uma saia, pega a mulher, larga, pega outra, e é aquela garapa.
(Graciliano Ramos, Angústia, pag. 104)
 
GAZEAR
Fazer gazeta; matar aula. Bi-transitivo: “Já faz três dias que eu gazeio, amanhã vou ter que assistir aula.”   “Toda quarta-feira eu gazeio as duas últimas aulas e vou ver o treino no campo do Treze.”
 
A Rua Manoel Pereira de Araújo estendia os grandes braços contaminados para o encontro da orgia; escancarava a bocarra velha para receber o ósculo pestilencial da luxúria, para cantar “a canção prostituta do ludíbrio”.
A artéria comportava a sua cotidiana paisagem: grupos de boêmios; cavaquinhos repetindo Waldir Azevedo; estudantes que gazeavam aulas do Alfredo Dantas; adolescentes discípulas de Maria Garrafada – o ABC do amor campinense --; cães vadios virando latas de lixo ao meio-fio; radiolas rodando discos de Nelson Gonçalves; a brisa gelada movimentando a dança sem ritmo dos papeluchos do calçamento, sacudindo o jaquetão de casimira de Moacyr Tiê; Horácio Bacanácio cantando samba de breque de Jorge Veiga.
(Orlando Tejo, Zé Limeira, Poeta do Absurdo, pag. 203)
 
MORRENDO DE FOME
Com uma certa fome; com apetite.  A expressão é usada em geral sem a menor intenção de exagero.  "Ih, já é meio-dia e eu estou morrendo de fome.  Vamos comer um sanduíche?"   O nordestino diz "estou morrendo de fome" nas mesmas circunstâncias em que um carioca diz "estou cheio de fome": apenas para comentar que está na hora de comer alguma coisa.
 
BOTAR SENTIDO
Vigiar, tomar conta, ficar de olho em algo.  "Fulana!  Bota sentido nesse leite que está no fogo, enquanto eu vou ali no quintal."
 
Naquela cocheira erma, feia, triste, com um vigia dia e noite para botar sentido nos coches e não deixar que os gringos mais afoitos roubassem as pratas, era esse cupê alegre o único com fama de assombrado ou encantado.
(Gilberto Freyre, Assombrações do Recife Velho, pag. 94)
 
DAR PRA...
Equivale a « começar a.... »« Fulano agora deu pra chegar em casa bêbo toda terça-feira, não sei o que é que tá acontecendo. »   « Esse menino agora deu pra mentir, se não levar uma surra vai virar um problema. »  Também se usa com sujeito impessoal :  « Ultimamente deu pra chover todo dia de manhã, eu não sei o que é isso. »

Subindo mais um pouquinho
Pra Santa Cruz visitar
As pernas dão pra doer
A roupa dá pra molhar
O suor por todo canto
Se não tiver fé no santo
É obrigado a voltar.
 
(Minelvino Francisco da Silva, “Aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo”)
 
TÉSA
(Atenção: palavra masculina, vogal “E” com som aberto).
Dar “um tésa” é o mesmo que “dar um carão” ou “dar uma subida”: repreender asperamente.  “Fui lá na casa dela e dei-lhe um tesa na vista de todo mundo, pra ele ficar sabendo com quem está se metendo!”
R. Magalhães Jr. registra “Dar o tesa com alguém” como expressão equivalente a “Entesar-se com alguém”, registrada no Dicionário de Morais com o sentido de “Ter-se a duras, encrespar-se com ele, não se lhe acanhar”.
 




terça-feira, 25 de maio de 2021

4707) Raízes da literatura (25.5.2021)



("repangalejando")

 
Uma vez, em Campina Grande, a sessão do “Cinema de Arte” exibiu o filme de François Truffaut, A Noiva Estava De Preto. É a história de uma mulher misteriosa que vai matando, de um em um, vários homens que não a conhecem, e não sabem por que motivo estão sendo mortos.
 
Na sessão em que eu estava, o projecionista trocou um rolo lá pelo meio do filme. Em vez do rolo número 4, por exemplo, ele passou o rolo 5, deixou correr até o fim, e quando deu pelo erro, colocou o 4, o que só fez piorar as coisas. O resultado é que surge uma cena anterior a um dos crimes, e o personagem que tinha acabado de morrer aparece vivo de novo.
 
Silêncio sepulcral na platéia. Um cara atrás de mim falou baixinho:
 
– Oxente, o caba não tinha morrido?
 
O amigo dele respondeu:
 
– Isso é cinema de arte, rapaz. O caba morre... envivece...
 
O episódio é verdadeiro, e engraçado, pela situação e pela reação do espectador. Ele tem, contudo, um aspecto que me faz rir em dobro. É a palavra escolhida pelo cara para exprimir o que sentia diante daquilo. A história não seria igualmente engraçada se ele tivesse dito: “Isso é cinema de arte, rapaz. O caba morre... fica vivo de novo...”.
 
O humor se dá muitas vezes pela via de uma reação verbal inusitada diante de um fato inusitado. Não só o humor. A poesia. A paixão. O assombro. O deslumbramento da descoberta. O paroxismo do medo. A vertigem de viver.
 
Tudo isso é capaz de provocar, em algumas pessoas, uma reação de improviso verbal que vai às raias do improvável, dependendo de quem é aquele indivíduo, de que vocabulário dispõe, que educação teve ou deixou de ter, que recursos verbais costuma empregar em sua vida comum.
 
Lá vou eu de novo pagar direitos autorais a Guimarães Rosa, em seu trecho exemplar de “São Marcos” (em Sagarana, 1946), o famoso episódio das palavras com “canto e plumagem”, onde ele justifica tais improvisos:
 
...e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura?
 
O povo, esse inventador da língua, costuma arrancar não se de onde essas palavras imprevistas, para poder ficar pau-a-pau com o mundo, quando este lhes propõe um imprevisto qualquer.
 
Não é de outra natureza a reação do menino lá do interiorzão da França, que aos 7 ou 8 anos foi levado pelo pai à cidade, pela primeira vez, e a cidade perto da fazendinha deles era algo como Reims ou Chartres, onde avulta uma daquelas catedrais góticas capazes de deixar Stendhal estendido no chão, de mero assombro.
 
O guri foi, e voltou com o pai. A mãe e a avó lhe perguntaram se gostou de conhecer a cidade, ele disse que sim, e aí perguntaram-lhe o que ele achou da catedral. Ele hesitou alguns instante, e então deu um salto no meio da sala, plantou uma bananeira, e ali ficou, equilibrando-se, em resposta.
 
Quando o mundo nos propõe alguma experiência buleversadora-de-conceitos, temos o impulso verbal, o impulso vital de responder à altura, e é nesses instantes que alguém se descobre poeta.
 
Não se deve confundir esse impulso com o impulso do escritor erudito que fica durante horas folheando dicionários e Thesaurus em busca de uma palavra rara, sofisticada, expressiva. “Ó, minha amada, os teus olhos tão miríficos...”  Não senhor. Só vale se for de improviso, se a pesquisa durar um segundo, um batimento cardíaco, um piscar de olhos. Tem que ser uma busca instantânea por um glossário guardado na memória inconsciente para uma ocasião especial – que é agora.
 
Ainda circula nas redes sociais um vídeo feito em algum lugar do Brasil onde se mostra um céu noturno, tempestuoso, com chuva forte e raios, e de repente um menino grita: “Eita, mãe! Olha só como tá repangalejando!...”
 
É um neologismo maravilhoso, porque nota-se que o garoto misturou, no seu deslumbramento, duas palavras que ele já tinha escutado, “relampejando” e “relampagueando”, e acabou fundindo as duas na vertigem do momento. Está certo! É exatamente para isso que serve a língua. Para estar à altura de momentos únicos em nossa vida.
 
Os poetas de verdade são sensíveis a essa necessidade de “estourar a costura” do idioma quando é preciso dizer algo que a linguagem comum não comporta. Carlos Drummond, em seu poema satírico “Ao Deus Kom Unik Assão” (em As Impurezas do Branco), diz:
 
Eis-me prostrado a vossos peses,
que sendo tantos todo plural é pouco...
 
De fato, “pés”, apenas, é um plural muito mixuruca diante dessa potestade multípede (quadrúpede, diriam as más línguas).
 
 




sábado, 22 de maio de 2021

4706) Quem foi Conan Doyle (22.5.2021)



 
Quando eu tinha uns dez anos de idade, minha tia Adiza me comprou de presente (em módicas prestações, e remessas mensais) a coleção Obras de Conan Doyle, que a Editora Melhoramentos estava lançando. Eram 26 volumes, divididos em três coleções de cores diferentes: “Sherlock Holmes” (vermelha, 9 volumes), “Ficção Histórica” (azul, 8 volumes) e “Contos e Novelas Fantásticas” (verde, 9 volumes).
 
Todo mês ela pagava uma prestação, e ia comigo ao Correio, na Praça da Bandeira, receber um pacote com 2 livros; isso aconteceu durante treze meses. A primeira remessa trazia Um Estudo em Vermelho e A Companhia Branca. Preciso dizer que são até hoje dois dos meus livros preferidos?



 
Tive a coleção inteira, reli cada volume vinte vezes, e tenho ainda. Recomprei tudo nos sebos cariocas – porque pra mim as traduções recentes não têm interesse. Eeu quero o mesmo livro, a mesma capa, a mesma tradução, a mesma fonte.
 
Doyle é conhecido apenas como o criador de Sherlock Holmes, um mérito que qualquer escritor invejaria, mas de certa forma é uma injustiça para com o grande escritor que ele foi. Ninguém admira Holmes mais do que eu, que gosto até dos defeitos; mas me sinto no dever de reconhecer que a ficção histórica e a ficção científica de Doyle são ainda superiores às aventuras do maior detetive do mundo.

 
Eu aconselharia o leitor a conhecer este díptico de aventuras medievais, ambientado no século 14: The White Company (1891) e O Escudeiro Heróico (Sir Nigel) (1905-06). Os dois abordam o mesmo personagem, mas em cronologia inversa.
 
No primeiro livro, o jovem Aleine Edricson abandona o mosteiro onde era estudante e sai pela Inglaterra afora, tendo aventuras de estrada até tornar-se escudeiro do nobre Sir Nigel Loring, líder da Companhia Branca, uma espécie de milícia independente de soldados mercenários. É um Bildungsroman, um romance de formação que mostra um rapaz ingênuo, intelectual e cheio de conceitos abstratos deparando-se com a malícia, a rudeza, a violência e o bom humor da vida real.
 
No segundo livro, Doyle retroage no tempo e conta a juventude do próprio Sir Nigel, um rapaz de família nobre mas arruinada que consegue tornar-se cavaleiro e conquistar glórias no campo de batalha, durante a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França.

Outro personagem notável de Doyle é o Brigadeiro Gerard, Étienne Gerard, dos hussardos de Conflans. Um jovem oficial do exército de Napoleão: fanfarrão, conquistador, brigão, vaidoso, simpático, meio ingênuo... Um personagem engraçado mas complexo, um tipo de desenho psicológico que Doyle sabia executar muito bem. 

Ele “faz uma ponta” no romance Reminiscência de um Império (“Uncle Bernac”, 1897), mas suas aventuras propriamente ditas foram recolhidas em forma de contos, em dois volumes impagáveis: As Façanhas do Brigadeiro Gerard (1896) e As Aventuras de Gerard (1903). É um personagem que muitas vezes imaginei sendo interpretado no cinema por Gérard Depardieu com 30 anos de idade.



 
Além das aventuras serem divertidas e mirabolantes, Doyle consegue mostrar (isso está principalmente em Uncle Bernac) a pessoa de Napoleão, o modo como se relacionava com generais e nobres à sua volta.

Outro personagem doyleano, este bem mais famoso, é o grande Professor Challenger, que ele explorou em alguns romances de FC que estão entre o que a literatura inglesa produziu de mais interessante em sua fase vitoriana de “Scientific Romances”.


O mais famoso, e o melhor, é O Mundo Perdido (“The Lost World”, 1912), em que um grupo de exploradores ingleses vem à Amazônia e descobre seres pré-históricos ainda vivos. No livro, o Monte Roraima teria se separado do resto do terreno por um sismo qualquer, e graças a isto seres como iguanodontes, pterodáctilos e outros continuaram vivendo e reproduzindo-se. É Doyle em sua veia julioverniana, com um grupo de exploradores (Prof. Challenger, Lord John Roxton, Prof. Summerlee e o jovem jornalista Malone) atravessando a floresta, correndo perigos e discutindo sem parar.
 
O Veneno Cósmico (“The Poison Belt”, 1913) pega o mesmo grupo de personagens enfrentando uma situação apocalíptica: a Terra penetra numa região do espaço ocupada por um gás que ameaça matar envenenada a humanidade inteira. Eles conseguem se isolar, e depois percorrem a cidade de Londres deserta, coberta de cadáveres, até que... Mas não darei spoilers.
 
Challenger é um personagem explosivo, amedrontador, capaz de gestos afetuosos e de vociferações aterrorizantes contra a família, os amigos, os empregados. “Cheio de razão” (como se diz na Paraíba), não admite ser contestado nem questionado, e por isso quando se mete em alguma enrascada o leitor sente-se vingado um pouquinho. É o que ocorre em contos semi-humorísticos como “Quando o Mundo Gritou” e “A Máquina Desintegradora”, incluídos no volume O Veneno Cósmico.


Tem também
A Cidade Submarina (“The Maracot Deep”, 1929), em que um inventor meio maluco, o Dr. Maracot, cria uma batisfera que o leva ao fundo do mar, onde ele descobre uma espécie de Atlântida protegida por uma cúpula e entra em contato (e em choque) com essa civilização submarina.
 
Os contos fantásticos e de FC de Doyle são todos imaginativos, movimentados, e eram escritos para publicação nas revistas da época. Curiosamente, boa parte desses contos foi reunida aqui em duas coletâneas cujos títulos se fincaram na minha memória. Eu pensava que eram dois gêneros literários “oficiais”, de modo que na adolescência ainda passei muitos anos lendo um conto qualquer de um Fulano qualquer e classificando: “Isto aqui é um conto da-penumbra-e-do-invisível”.



Outro romances mostram Doyle em sua atividade constante, obstinada, de tornar-se uma espécie de sucessor de Sir Walter Scott em termos de romances históricos. Doyle pesquisava muito para escrever seus livros, e não foram poucas as vezes em que, lendo alguma coisa sobre a Inglaterra medieval, me deparei com episódios históricos que eu já tinha lido, tintim por tintim, em seus romances. Tinha sobre Scott a vantagem de uma prosa mais moderna, mais ágil, um olho observador enriquecido por todo um século 19 de realismo literário. Seu uso do diálogo é fluente, vívido, para romances de um século atrás. Seus tipos humanos são memoráveis.


 
A Curiosa História de Rodney Stone ("Rodney Stone", 1896) narra como o boxe surgiu na Inglaterra (o autor tem também uma coletânea chamada Contos do Ringue e de Guerra), como um canal de ascensão social para um jovem de origem humilde. Os Refugiados (“The Refugees”, 1893) funciona como dois romances num só: na primeira parte, vemos a corte francesa de Luís XIV, católica, na época em que era tramada a perseguição e exílio dos protestantes huguenotes; n segunda parte, esses huguenotes desembarcam na América do Norte e ali se envolvem em aventuras com índios, colonos, vaqueiros e caçadores.
 
Sobre o primeiro romance histórico de Doyle, A Narrativa de Miquéias Clarke (1889), escrevi aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4631-o-soldado-e-o-fanatico-religioso.html
 
Uma excelente recolha de seus contos fantásticos, insólitos, “da penumbra e do invisível”, foi publicada recentemente pela Editora Bandeirola:


A obra de Conan Doyle demonstra que os gêneros literários são uma criação dos editores, dos livreiros e da imprensa, muito mais do que dos escritores. O meio século em que durou a carreira de Doyle (entre 1880 e 1930 aproximadamente) foi um período que a literatura da Inglaterra talvez nunca venha a igualar, em qualidade e quantidade. Doyle tinha como contemporâneos, concorrentes, e muitas vezes como amigos, autores como H. G. Wells, H. Rider Haggard, Arthur Machen, G. K. Chesterton, M. R. James, Oscar Wilde, Bram Stoker, Algernon Blackwood, Lord Dunsany, Rudyard Kipling, R. L. Stevenson...
 
Todos esses autores escreviam o que se chama hoje de romances policiais, romances de aventuras, romances de ficção científica, romances de costumes, romances de crítica social, romances de horror... Escreviam com liberdade, com ousadia, usando as fórmulas do momento mas sem se deixarem usar por elas. Tinham algo a dizer, e não uma receita a repetir. Cada um deles tinha uma voz literária própria, capaz de dobrar diante de si as convenções de qualquer gênero artificialmente criado pelos classificadores.
 
Hoje, 22 de maio, é a data do 162º. aniversário de nascimento do escritor. Aqui embaixo, coloco o link para o saite "Literatura Policial", que compartilhou esta entrevista, talvez o único registro da voz e da imagem de Doyle falando para uma câmera de cinema. Durante dez minutos, ele comenta a origem dos romances de Sherlock Holmes e do seu interesse posterior pelo Espiritismo.
 
https://literaturapolicial.com/2017/05/19/assista-ao-video-de-arthur-conan-doyle-falando-sobre-sherlock-holmes/
 





quarta-feira, 19 de maio de 2021

4705) "Love, Death & Robots": O Gigante Afogado (19.5.2021)




 

Uma das séries de FC mais simpáticas que tem na Netflix é Love, Death & Robots – uma série de animação, em episódios curtos, com histórias bem escolhidas (é uma série no formato “antologia”, com histórias independentes entre si), técnica em geral excelente, e boa variedade de estilos.
 
Entrou há pouco tempo a Temporada 2, e tive uma certa surpresa em ver que a temporada se encerra com a adaptação de um conto famoso de J. G. Ballard, “The Drowned Giant” (1964), adaptado e dirigido por Tim Miller.
 
É a história de um corpo humano gigantesco, que aparece de repente numa praia da costa da Inglaterra. Um homem jovem, morto. Aparentemente normal, não fosse pelo fato de que tem uns quinze metros de altura. O narrador da história é um professor que está fazendo pesquisas na biblioteca local, e narra o acontecido, e tudo que se seguiu – uma história que deixou nele uma marca profunda.
 
A ficção científica de J. G. Ballard é impregnada de uma atitude de espanto silencioso e contido diante de fatos extraordinários. Seus narradores em geral observam mais do que agem, e quando agem é porque são forçados a isso pelos fenômenos espantosos a sua volta. Reagem com preocupação, susto, terror, conforme o caso, mas sua atitude é basicamente de aceitação de um fato consumado.
 
Quando aquele corpo gigantesco vem dar na praia, ninguém (nem no conto, nem no filme) questiona a existência de uma pessoa com aquelas dimensões. A surpresa de todos é rigorosamente a mesma que seria de se esperar caso fosse uma baleia morta. Susto, curiosidade: nenhum questionamento do tipo “mas isto é impossível, é fantástico”.



No conto de Ballard, a presença física do cadáver é esmagadora, é como uma prova de si mesma, que dispensa explicações.
 
O que eu achava fascinante era em parte a escala imensa de suas dimensões, o enorme volume de espaço ocupado por seus braços e pernas, que pareciam confirmar a identidade de meus próprios membros em miniatura, mas, acima de tudo, o mero e categórico fato de sua existência. Não importa o que fosse suscetível de dúvidas em nossa vida: o gigante, morto ou vivo, existia de forma absoluta, proporcionando a nós um vislumbre de um mundo feito de “absolutos” similares, dos quais nós, espectadores ali naquela praia, éramos apenas cópias imperfeitas e pouco significativas.
(trad. BT)
 
Como um Gulliver naufragado, o corpo do gigante vem dar na praia mas já chega morto, indefeso, e nós, em nossa Lilliput, somos capazes de subir nele, fazer molecagens, pixações, pequenas profanações que precedem o desmonte final.
 
Um fluido escuro e salobro minava dos cotos dos membros que tinham sido amputados, manchando a areia branca e os mariscos. Ao caminhar sobre os pedregulhos da praia, notei que uma certa quantidade de piadas, slogans, suásticas e outros sinais tinham sido recortados na pele já cinzenta, como se o início da mutilação daquele colosso imóvel tivesse liberado um fluxo reprimido de rancor. O lobo de uma orelha tinha sido varado por uma estaca pontiaguda de madeira, e uma pequena fogueira tinha sido acesa no centro do peito dele, enegrecendo a pele.
 
A adaptação de Tim Hill é excelente, captando com perfeição o tom do original, com uma animação figurativa sóbria, que produz a necessária impressão de realidade, essencial para o efeito pretendido por Ballard.


Há poucas divergências em relação ao conto. No livro, o corpo aparece vestido com uma espécie de tanga feita de tecido; no filme, está nu. No livro, o ir e vir das ondas mexe com o cadáver, muda sua posição e o faz vir para mais perto da areia; no filme, ele fica encalhado o tempo todo no mesmo ponto. Apenas divergências mínimas.
 
Amputado, desmanchado, o gigante feito em pedaços vai sendo distribuído pela cidade, para empresas que fabricam fertilizantes ou alimento para o gado. Um dos seus ossos vai parar, simbolicamente, na fachada de um “Açougue Ballard’.


 
Love, Death & Robots tem se mostrado uma série de grande virtuosismo técnico e de bom gosto na escolha dos argumentos: vários episódios se baseiam na obra de outros autores muito bons, como Harlan Ellison, Joe Lansdale, Michael Swanwick, Joe Scalzi etc.  Alguns episódios têm um clima infantil, estilo Toy Story, outros são mais adultos. Há uma boa variedade de temas, ambientações, tratamentos visuais, traço, técnicas de animação, lembrando um pouco aquela “estética de revista” de filmes como Heavy Metal. Com episódios curtos, entre 10 e 20 minutos, cada temporada vale como uma boa antologia de contos.
 
O conto de Ballard foi publicado pela primeira vez em sua coletânea The Terminal Beach (1964), e já em 1965 saiu na Playboy norte-americana com o título “Souvenir”. Foi incluído na antologia do Prêmio Nebula, Nebula Award Stories (1965, ed. Damon Knight) e também em The Book of Fantasy (1988), a versão em inglês da famosa Antología de la Literatura Fantástica organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo (não aparece na edição argentina que possuo, e que é bem anterior).  







domingo, 16 de maio de 2021

4704) Dicionário Aldebarã XXII (16.5.2021)




("Castelo e Sol", Paul Klee, 1928)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.


“Viamag”: a emoção contraditória de receber uma notícia importante (ruim ou boa), absorver seu significado, avaliar todas as consequências possíveis daquele fato, preparar-se para elas, e algum tempo depois receber o desmentido (bom ou ruim), e ter que se adaptar de volta à antiga situação.
 
“Jancib-tan”: o ato de partilhar alguma coisa com alguém: um pão, uma fruta, um copo de bebida, um guarda-chuva para atravessar uma rua. Estende-se para outras situações mais abstratos: assistir juntos um espetáculo, ouvir uma música, lembrar um fato passado, ou estarem os dois juntos por coincidência no momento de algum acontecimento importante para o mundo.
 
“Teressimbe”: conjunto de dois espelhos presos entre si por uma haste, e virados um para o outro. Usa-se para se pentear, cortar, tingir os cabelos, porque assim pode-se ver ao mesmo tempo a frente do rosto e a parte de trás da cabeça.
 
“Kaprilla-kambe”: refere-se às situações tensas em que dois indivíduos, ou grupos de indivíduos, estão presentes ao mesmo tempo num território disputado pelos dois, mas não desejam deflagrar um conflito imediato, de modo que ou simplesmente fingem ignorar a presença dos outros (como se fossem invisíveis) ou limitam-se a cumprimentos formais e lacônicos, como se não estivessem se reconhecendo mutuamente.
 
“Tezillen”: termo (que tanto pode ser usado em tom elogioso quanto em tom depreciativo) para indicar qualquer objeto que se destaca em um conjunto: uma pessoa de passo errado num batalhão em marcha, um livro desalinhado na estante, uma árvore verde no meio de um grupo de árvores ressequidas (ou o contrário), o melhor ou o pior aluno da classe.
 
“Onderrid”: pequenas moedas artesanais, rememorativas, com frases curtas e imagens, que as pessoas confeccionam em casa e que levam consigo para depositar num local que lhes recorda uma pessoa querida que já faleceu. Servem como homenagens simbólicas dedicadas ao morto, como se dissessem “lembrei-me de você quando visitei novamente esta praia, este restaurante, esta árvore”.
 
“Kottig”; certas perturbações nervosas que fazem uma pessoa perder ao mesmo tempo o sono e a noção do tempo, e passar uma noite inteira acordada, entregando-se a tarefas banais ou excêntricas, sentindo o tempo inteiro a impressão de que passaram-se muitos dias e o sol não nasceu.
 
“Jurukammi”: qualquer situação humana que envolva grande número de pessoas e onde a quantidade passa a se sobrepor às individualidades envolvidas, como numa guerra, um acidente com muitas mortes, uma multidão que protesta.
 
“Lilevald”: a sensação crescente de premonição que se tem à medida que se aproxima uma data de grande importância pessoal ou coletiva, sensação que consiste numa mistura de medo e de determinação, e onde se tem a impressão de que as possibilidades tornam-se cada vez mais numerosas à medida que a hora se aproxima e os acontecimentos convergem todos para o mesmo ponto.
 
“Darrib”: literalmente, “pequeno dia”; o horário noturno em que a lua aparece no céu, principalmente quando está cheia, deixando a noite mais clara e permitindo que as pessoas acordem levantem, conversem, visitem-se umas às outras, executem alguma tarefa necessária na noite bem iluminada.
 
“Pessaf”: costume pouco saudável durante as festas, comemorações etílicas, etc., de juntar numa só caneca os restos de diferentes bebidas que estão espalhados, e coagir alguém a beber tudo, à custa de promessas, ameaças, apostas, etc.
 
“Megssen”: a idéia de algo que apesar de ter inteireza e individualidade próprias pode ser visto também como parte de um todo maior: um elo numa corrente, um segmento de reta, um copo de água, um indivíduo na sua linha de antepassados e descendentes, uma lembrança, uma história, um país.
 






quinta-feira, 13 de maio de 2021

4703) O suspense e as narrativas de ficção (13.5.2021)

 


Um conto de Isak Dinesen (pseudônimo literário da baronesa Karen Blixen), “Copenhagen Season”, se passa por volta de 1870, na época de ouro da nobreza da Dinamarca. (Digo “época de ouro” sem ter a menor idéia se era mesmo, mas quando a gente se refere a nobrezas européias qualquer época pode ser chamada de ouro, pela distância, ignorância e impaciência que nos separam.)
 
Ela começa descrevendo os hábitos sociais daquela casta nobre, que era em grande parte uma nobreza rural, de grandes senhores de terras, que dedicavam uma parte do seu ano à convivência social na cidade. Durante esses meses, caravanas de nobres se dirigiam para as cidades, com filhos, filhas, genros, noras, netos, servos, cocheiros, governantas, criados e criadas de quarto, palafreneiros, alabardeiros, sei mais o quê.
 
Era nesse período que quase todas as noites havia um baile no palácio não sei de quem, ou na mansão da família não sei das quantas, onde os jovens exibiam seus bigodes encerados e seus espadins, as moças os seus ombros nus e seus espartilhos. Valsava-se muito, como nos contos de Machado de Assis. Era uma época (diz a autora) em que a população feminina brilhava e coloria a cidade, que no restante do ano era masculina, severa, de trajes escuros.
 
Toda essa nobreza girava em torno de famílias, de sobrenomes. Não ter um sobrenome era sinônimo de não existir. Sobrenome era sinônimo de terras, de propriedades rurais, de trabalhos alheios e rendas incessantes. E ela dirige seu foco para duas famílias nobres, os Von Galen e os Angel. Eram famílias unidas por um casamento meio desequilibrante, porque os Van Galen eram muito mais ricos e importantes, os Angel tinham uma origem mais distante e menos abastada, mas uma paixão repentina uniu as duas casas nobres em matrimônio.
 
Ela começa então a descrever a prole que brotou nessa geração, a beleza dos Van Galen, e o caráter fascinante da família Angel, caráter que ela define como “uma imensa alegria de viver” e ao mesmo tempo uma tendência irreversível para a ruína e a tragédia.


Entre os Van Galen destaca-se a jovem Adelaide, considerada a mais bela de toda a corte, e sua beleza é descrita em termos que lembram os dos nossos folhetos de cordel. Todas as comparações possíveis com a natureza, o firmamento, as flores, as pedras preciosas, são chamadas à ação para descrever a beleza da moça.
 
Em seguida somos conduzidos a ver de perto um rapaz. Ele é Ib Angel, jovem e valoroso oficial do exército, primo-pobre de Adelaide e apaixonado em segredo por ela, desde a infância, consciente de que a distância de sangue entre os dois não lhe permitiria aspirar a sua mão, mas a relação familiar poderia pelo menos dar-lhe o consolo de serem amigos, serem próximos. A menos que ele vá lutar na guerra da Europa...
 
A certa altura, diz a narradora:
 
Perto do final daquela estação, Ib descobriu que se tornara, de forma inesperada, o herói do dia em Copenhague. Ao amanhecer, depois de uma noite de farra, ele travou um duelo de sabres com o adido militar da Suécia e Noruega...
 
E a história começa aí.
 
Fui conferir a contagem. A autora levou 21 páginas para começar a história. Que é o reencontro de Ib com sua prima Adelaide, na noite desse dia em que ele trava um duelo sem maiores consequências.
 
Só desse ponto em diante a autora começa a usar frases do tipo “Fulano levantou-se e foi até a porta”, “ Sicrana atravessou o salão para falar não sei com quem”, “Beltrano aceitou uma xícara de chá e sentou-se junto à condessa” – frases sobre ações que acontecem no momento em que são narradas. Até então, tudo eram rememorações, descrições, e mesmo quando surgia algum diálogo era uma frase antiga de alguém que ela citava para ajudar com um exemplo.
 
Qualquer manual de escrita criativa irá desencorajar um autor a passar 21 páginas enchendo linguiça antes de começar sua história. E de certo modo eles têm razão. Por que? Porque essa linguiça tem que ser de alta qualidade, de alto interesse, e acima de tudo temperada com uma variedade de sabores que dependem do “dom” da escrita, seja isso o que for, e que Ms. Blixen tem de sobra.

É possível, sim, passar vinte páginas descrevendo um ambiente social sem transformar isso num manual sociológico. Ela poderia ter escrito algo tipo:
 
No último quadrante do século, a ascensão econômica da burguesia rural, mais tradicionalista e de hábitos mais pragmáticos, a fez travar uma aliança de interesses com a burguesia urbana de Copenhague, mais cosmopolita e mais próxima aos centros de poder. As conflagrações militares da Europa contemporânea decorriam longe do país, mas no equilíbrio instável de forças entre monarquias e republicanos mesmo um apoio de pequena monta poderia fazer pender a balança para um lado. Jovens ambiciosos da nobreza e do oficialato dinamarquês viam nesse momento conturbado a possibilidade de uma ascensão social e política que lhes teria sido impensável em tempos de paz.
 
Mas não, isso é sociologuês, não é prosa de ficção. Infelizmente, muita ficção por aí está repleta disso; a fantasia e a ficção científica, inclusive.

Ela não diz nada disso, ela vai mostrando as conversas nos salões, descreve um pouco dos hábitos rudes dos rapazes ricos criados em meio aos cavalos e das moças ricas criadas em meio às costureiras e bordadeiras. Fala das festas intermináveis, das discussões de salão de chá em que artistas envelhecidos e espertalhões se grudam na nobreza para divertir suas tardes infindáveis em troca de um pouco de prestígio e quem sabe de alguns trocados na bolsa.
 
Vinte páginas de descrição, de rememórias? Por certo, mas a autora de vez em quando nos dá um cutucão para dizer: “Aguenta aí, que vem história.” De vez em quando ela larga um aviso do tipo: “Na época em que transcorreu a história que vamos contar...” É como se dissesse ao leitor: “Sim, é muita descrição, mas lá na frente vai ficar mais animado.”
 
Atrair, e afastar-se um pouco. É o jogo de sedução das debutantes dinamarquesas, cobertas de pérolas e diamantes, e o mesmo jogo que a baronesa faz com o leitor. O leitor não se afasta porque quem se afasta é ela, dando-lhe algumas pistas de fatos ou ambientes ou personagens interessantes, e em seguida indo tratar de um segundo assunto. O leitor a segue até o segundo em busca de mais alguma migalha do primeiro. E quando ela, num roçagar de saias e num abanar de leque, dirige-se para o terceiro assunto, já é a lembrança do segundo que faz o leitor acompanhá-la, obediente, salões afora.

 
Há uma conspiração de forças que tende a afastar o leitor do texto o tempo inteiro: a preguiça mental, o desinteresse, o tédio, a lembrança de um afazer urgente, a proximidade do controle remoto da TV... O autor (a autora) deve lembrar-se disso o tempo inteiro e não parar um só instante de dar pequenos puxões na corda de atenção que liga o livro ao leitor. Não pode deixá-lo ir embora. Tem que prometer o tempo todo, como as jovens dinamarquesas prometiam algo o tempo todo, com o decote, o sorriso, o olhar por sobre o leque.
 
Ou (para usar uma comparação mais próxima da gente) manter a atenção do leitor focada numa história é como manter no ar uma pipa, coruja, arraia, pandorga. O vento quer levá-la embora. A linha quer mantê-la aqui. Na tensão entre os dois, a pipa se ergue, dança, volteia. Cada frase interessante do texto é um pequeno puxão nessa linha, aumentando a tensão e prendendo o leitor.
 
Alguma coisa vai acontecer, é um dos impulsos essenciais da literatura de ficção. É a percepção constante de que as próximas linhas, as próximas páginas, nos reservam algo que não sabemos exatamente o que vai ser, mas que vemos se preparando ao longo de tudo que lemos antes, daquilo que estamos lendo agora, “vem comigo, vou te mostrar”, diz o livro, e o leitor vai.

"A tua presença morena": 
https://www.youtube.com/watch?v=N3fX_RvGYv4&ab_channel=RicardoMaia
 
Uma canção antiga de Caetano Veloso, gravada por Maria Bethania, tem um verso que exprime bem esse processo: “A tua presença... mantém sempre teso o arco da promessa”. É um arco (arco de disparar flechas) submetido a um tensionamento, a corda é puxada para trás e todo o arco de madeira se contrai, ansioso para voltar à posição anterior. Há um termo em alemão, Spannungsbogen, que exprime exatamente essa idéia. (Spannung é tensão, suspense, e Bogen é arco.) 
 
A prosa de ficção bem sucedida é aquela que faz a gente agarrar um livro de 400 ou 700 páginas e ler até o fim, porque a cada passo recebemos gratificação suficiente pelo esforço dispendido até ali e ao mesmo tempo recebemos estímulos que nos fazem erguer a cabeça e querer saber o que existe mais adiante. O que vai acontecer depois.
 
Vi alguém citar uma frase de Jacques Derrida onde ele dizia que “todo título (de uma obra) é uma promessa”. Pura verdade, e já comprei muitos livros de autor desconhecido e temática ignorada porque o título me intrigou. Posso, contudo, ampliar esse conceito e dizer: Toda frase, todo parágrafo, todo trecho de uma obra literária é uma promessa. É uma resposta, e ao mesmo tempo conduz o leitor a uma pergunta nova. Que é sempre a mesma pergunta, a mais antiga de todas: “Eita! E agora, o que vai acontecer?”.
 

(Karen Blixen)