sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

4554) O Klingon e as atividades sem propósito (28.2.2020)




O que é uma atividade sem propósito?

Um sentido possível: uma atividade que provavelmente não terá utilidade para ninguém. Exemplo: alguém desenhar um triângulo em cada poste elétrico, quando andar pelas ruas.

Dois: uma atividade meio boba, realizada apenas por diversão ou desfastio. Exemplo: alguém anotar as formas que vê nas nuvens do céu: camelo, castelo, baleia, chapéu...

Três: uma atividade que pode até vir a ser útil, mas a própria pessoa que está fazendo não sabe para que serve. Exemplo: alguns ramos da Matemática Pura.

A civilização humana foi construída através de projetos conscientemente concebidos e executados, mas há muita coisa feita sem nenhum propósito específico e que com o tempo acabou se tornando útil, sem que ninguém tivesse previsto.

Um exemplo muito conhecido, e que sempre me volta à memória, é o de Thomas Edison, ao inventar o fonógrafo. Ele considerava que a gravação da voz humana seria utilíssima para o estudo de idiomas, o que não deixa de ser. Usar os discos fonográficos para a reprodução (e a venda em massa) de canções populares foi uma utilização que só lhe ocorreu bem depois. Não fazia parte do mundo em que ele vivia.

Quando o fonógrafo “foi pras ruas”, logo foram encontradas outras utilidades para ele.

Embora o utilitarismo pareça mandar no mundo, grande parte de nossas atividades mais sérias e mais exigentes se dá sem que a gente imagine para que aquilo vai servir algum dia. 

Ocorre na Matemática, por exemplo: um matemático do século 19 inventa uma forma de organizar certos cálculos, capazes de lidar com números complexos, etc.  Não sabe para que pode servir, mas sabe que funciona. No século 20, um físico ou um biólogo ou um economista se depara com um problema complicado, mas que é possível reduzir a números: e descobre que o modo ideal de calcular aquilo fora inventado cem anos antes, praticamente “no escuro”.


(Minkovski e Einstein)

Ocorreram fatos assim na carreira de Einstein, se não me falha a memória. Ele próprio admitia que seus recursos matemáticos eram limitados, pelo menos para se igualarem ao alcance espantoso de suas intuições sobre o universo físico. Há um episódio em que o matemático Minkovski veio publicamente em socorro dele, exibindo cálculos que ele próprio, Minkovski, tinha desenvolvido, cálculos capazes de confirmar matematicamente o que Einstein estava descobrindo.

Quando as teorias de Einstein sobre as distorções do espaçotempo começaram a “estourar as costuras” da Geometria vigente, chegaram às mãos dele as chamadas geometrias não-euclidianas de Lobatchevsky (1793-1856) e de Riemann (1826-1866), que até então muita gente considerava apenas curiosidades, façanhas intelectuais sem serventia coletiva.

É como se os matemáticos dissessem: a Natureza, o mundo físico, tem um zilhão de processos que não somos capazes de avaliar, de calcular, de controlar. Mas quando inventamos um tipo de cálculo ou de controle lógico, mais cedo ou mais tarde ele acaba sendo visto como a melhor descrição de algo que acontece nos átomos, ou nas células do corpo.


Ou nos processos econômicos. Lembro o filme Uma Mente Brilhante (“A Beautiful Mind”, Ron Howard, 2001) com Russell Crowe, onde ele faz o matemático John Nash, que era esquizofrênico e genial. Algumas fórmulas propostas por Nash só se revelaram úteis, para o estudo da Economia, muitos anos depois de publicadas, quando ele já estava meio mergulhado na doença. Sua teoria dos jogos não-cooperativos, descrita em um trabalho de 1950, lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia 44 anos depois.

É como se a Matemática produzisse respostas e estas ficassem arquivadas à espera da pergunta correspondente. O que faz sentido, se virmos o trabalho científico com os olhos de Einstein, para quem o que faltava à Ciência não eram respostas certas, mas perguntas novas. Muitas dessas perguntas (ele deve ter pensado) iriam ter respostas já prontas, descobertas importantes mas que até então ninguém sabia para que servia.

Um exemplo em que sempre penso como “atividade inútil” é a criação de idiomas artificiais, tão classificativos e cheios de regras que ninguém se daria o trabalho de entender sua gramática. Paulo Rónai dedicou o livro Babel e Anti-Babel (Ed. Perspectiva, São Paulo) a esses indivíduos meio excêntricos, dos quais o mais bem sucedido parece ser o Dr. Zamenhof, que criou o Esperanto.


O idioma Klingon surgiu de maneira diferente: foi inventado com o propósito de mostrar como falavam os alienígenas Klingon na série “Star Trek”, e foi falado pela primeira vez no filme Star Trek: The Motion Picture (1979). Está claro que para os produtores e todos os artistas envolvidos a língua klingon tinha um propósito muito claro. Era um detalhe a mais de verossimilhança para encorpar um universo ficcional. Como a linguagem dos elfos criada por Tolkien em O Senhor dos Anéis.

The Klingon Dictionary foi publicado em 1985 por Marc Okrand, o linguista contratado peça produção de “Star Trek” para inventar o idioma daqueles alienígenas de testa gigantesca.  Desde então, o Klingon Language Institute já publicou traduções em klingon de obras clássicas como Hamlet, A Epopéia de Gilgamesh e o Tao Te King.

Uma linguagem sem povo, à espera de quem a utilize.









terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

4553) A Idade da Burrice (25.2.2020)




Já devo ter escrito aqui neste blog a respeito do Darwin Award, um prêmio humorístico que todo ano é concedido, simbolicamente, a pessoas que morrem acidentalmente por terem cometido uma enorme burrice.

O nome do prêmio alude à Teoria da Evolução, de Darwin, e sugere, com certo sarcasmo cruel, que a Humanidade evolui assim: os muito burros acabam se matando de tanta burrice, e os menos burrinhos (nós) sobrevivemos.

Não é uma tese cientificamente comprovável, até porque muitos dos “inteligentes-4-estrelas” imaginam que são “inteligentes-5-estrelas” e acabam se metendo em complicações das quais não conseguem mais sair. And so it goes, diria Kurt Vonnegut Jr.  Vida que segue.


Hoje em dia, nas redes sociais, existe uma verdadeira conspiração de pessoas inteligentes contra as pessoas burras. Exemplos concretos de burrice-alheia são fotografados, compartilhados, escarnecidos. Por que? Provavelmente porque ver a burrice alheia nos dá a ilusão de que somos inteligentes. “Ah, isso aí eu não faria nunca, eu não sou tapado a esse ponto!...” 

E existe, em muitas dessas críticas ou gozações, um indisfarçável tom de superioridade social. Mangar de quem é burro é tão divertido quanto mangar de quem é pobre. Ficamos nos sentindo ora um Ludovico Sabetudo, ora um Tio Patinhas. 


A burrice é perigosa, mas igualmente perigoso é quando o esnobismo social nos dá prazer em ridicularizar uma pessoa que compra um produto pensando que era outra coisa, que não entende como um Banco funciona, que pede um prato num restaurante e se horroriza quando ele é servido, que vai para o exterior e se assombra porque lá não falam o seu idioma, que destrói um aparelho por não fazer idéia de como ele é usado, que não sabe pôr o cinto de segurança no avião...


Esta página no link abaixo enumera algumas dessas mancadas. Muitas delas inadmissíveis. Outras, eu próprio poderia cometer por distração, ou por burrice mesmo. (Eu não sei trocar uma resistência de chuveiro, não sei pregar um botão, não sei andar de bicicleta, não sei plugar os periféricos do meu computador – tenho que pedir a alguém.)

(As fotos que ilustram este texto são dessa página.)

Vejo nos “Comentários Da Internet” a esse tipo de páginas (já li dezenas delas) um ranço de desprezo, quase de ódio, pelas pessoas burras. Um fato bobo que poderia ser apenas engraçado acaba gerando um sentimento diferente, frases tipo “ é bom que morra mesmo”, etc.

Lembro das comédias do cinema mudo, das trapalhadas em que se metiam O Gordo e O Magro, ou Buster Keaton, ou mesmo Os Três Patetas. Eles praticavam bobagens absurdas o tempo inteiro, demoliam casas, desconjuntavam automóveis, infernizavam jantares, pela sua absoluta incapacidade de fazer funcionar a coisa mais simples.


O cinema vinha abaixo de risadas, mas eu sempre senti nessas risadas um viés de simpatia. Pode ser projeção emocional minha, que tenho um gene samaritano. Mas eu sentia naquele cinema cheio de adultos e de crianças ums simpatia instintiva por aqueles desastrados. Um riso sem desprezo. Como quando nos divertimos ao ver um filho pequeno, um neto, tentando uma pequena façanha motora e não conseguindo, ou atrapalhando palavras que ainda não conhece direito. Rimos daquilo, mas é um riso de compreensão, de acolhimento afetivo, não de menosprezo.

Não vou me deter aqui nesse desprezo, que é o vinagre universal dos nossos tempos. Quero falar mesmo é da burrice, se é burrice a palavra adequada.

Talvez a palavra mais certa seja justamente “inadequação”. As pessoas vivem em mundos sociais diferentes, e quando passam de um para o outro faltam-lhes as informações necessárias para se adequarem ao outro. Quando saem da sua “bolha”, da sua “zona de conforto”, nada funciona do mesmo jeito, e o mundo não as preparou para isso. Preparou para que vivessem atrás de cancelas, de grades, de rotinas.


Essas pessoas “burras” irão mesmo se auto-extinguir, como sugerem os gozadores por trás do Darwin Award? Não acredito. E lembro aqui um dos meus filmes preferidos, Idiocracia (Mike Judge, 2006).

A premissa de Idiocracia, exposta logo nas sequências iniciais, é de que o mundo do futuro vai ser inteiramente povoado por idiotas, pela simples razão de que as “pessoas inteligentes” se programam para ter 1 ou 2 filhos, e os idiotas continuam tendo dúzias. O filme é uma comédia escrachada, e não há que exigir verossimilhança científica numa proposta como essa. Idiocracia é apenas uma fábula escrachada, no estilo Monty Python.

O problema é outro. Esse mundo do ano 2505 é asustadoramente parecido com o de hoje, porque os absurdos que vemos na tela são meras extrapolações de coisas que acompanhamos em nosso dia-a-dia. Cada alfinetada ali dói pra caramba. Há um escracho contínuo com a publicidade, a televisão, as corporações, os governos, a ciência, a política, o show-business... Nada escapa. Ninguém sobrevive.

A gente tem a tentação de voltar àquelas queixas apocalípticas de sempre – falhamos como civilização, o projeto da Humanidade deu com os burros nágua, etc.

Nesse mundo futuro, no entanto, a gente percebe que a burrice não é um defeito pessoal, uma limitação das pessoas, algo como um ouvido surdo ou um olho vesgo. A burrice social é o resultado de séculos de emburrecimento planejado. Um processo que em algum momento alguém achou que seria necessário – para manter as massas sob controle. Multidões burras, trabalhando feito escravos e se dopando com produtos de má qualidade disputados a tapa.

Só que havia uma porção de variáveis não-previstas, e o sistema que programou a burrice foi engolido e digerido por ela. A burrice social virou um vírus incontrolável. O Sistema deu sem querer um tiro no pé, que gangrenou.

O futuro com que Idiocracia nos ameaça é o prolongamento lógico do sistema atual, no qual se supõe que as pessoas serão capazes de passar mais mil anos trabalhando 12 horas por dia, comendo cheetos com Coca-Cola e votando em quem lhes dizem para votar. Não vão. Como se diz por aí, é mais fácil destruir um planeta do que acabar com o capitalismo. Ou evitar que ele se suicide.











sábado, 22 de fevereiro de 2020

4552) Luis Buñuel, 120 anos (22.2.2020)



Luis Buñuel (22.2.1900 - 1983) 


“É incontestável que [os norte-americanos] possuem o senso do cinema a um grau muito mais elevado que nós.” (1927) (Kyrou, 81)



“De todos  os seres vivos que encontrei, Federico [Garcia Lorca] é o primeiro. Não falo nem do seu teatro nem da sua poesia, falo dele. A obra-prima era ele, parece-me mesmo difícil imaginar alguém parecido.” (Suspiro, 171)


(Lorca e Buñuel)

“Sou materialista, no entanto isto não quer dizer que recuse a imaginação, a fantasia, ou mesmo a existência de certas coisas inexplicáveis. Racionalmente, não acredito que um homem que perdeu as mãos possa fazê-las crescer de novo, mas posso agir como se acreditasse, pois o que me interessa é o que acontece depois.” (Objects, 183)



“Pessoalmente, não gosto de música nos filmes, acho que é um elemento covarde, uma espécie de truque, salvo em certos casos, naturalmente. (...) Considero-a como um elemento parasita, que serve, principalmente, para valorizar cenas que não têm, aliás, nenhum interesse cinematográfico.” (Kyrou, 111)



“Um refugiado chileno deu do México uma definição patusca: ‘É um país fascista atenuado pela corrupção’”. (Suspiro, 232)



“Na cena da sala em El, quando o protagonista recebe a mulher que se tornará sua esposa, inseri um meio-close-up de uma mulher que na verdade pertencia a uma sequência anterior, com outro cenário e outro figurino. Ninguém jamais percebeu.” (Objects, 51)



« [Numa entrevista em 1956] – Vai filmar La Femme et le Pantin [o livro que resultou em Este Obscuro Objeto de Desejo]?  – Sim, quando tiver encontrado uma atriz capaz de fazer o papel principal: uma mocinha sensual, virginal e demoníaca.” (É o papel que no filme, de 1977, foi interpretado por duas atrizes.) (Kyrou, 98)



“O mistério, elemento essencial de toda obra de arte, falta em geral nos filmes. Autores, realizadores e produtores têm grande cuidado em não perturbar nossa tranquilidade, deixando fechada a maravilhosa janela da tela sobre o mundo libertador da poesia.” (Kyrou, 86)


(Um Cão Andaluz)

“As heresias me interessam assim como todos os inconformismos do espírito humano me interessam, seja na religião, na cultura ou na política. Um grupo cria uma doutrina, e milhares de indivíduos aderem a ela. Então, alguns dissidentes começam a surgir, pessoas que acreditam em tudo que aquela religião prega, exceto um ou dois detalhes. São punidos, são expulsos do grupo, perseguidos, e tem início então uma porção de guerras sectárias nas quais as pessoas cujas crenças diferem apenas um pouquinho tornam-se mais odiadas do que o inimigo comum.” (Objects, 192)


(Belle de Jour)

“A digressão é a minha maneira natural de contar, um pouco idêntica ao romance picaresco espanhol. (...) Começo uma história, abandono-a imediatamente para fazer um parêntesis, que me parece mais atraente, e depois esqueço o meu ponto de partida e fico perdido.” (Suspiro, 181)



“É precisamente esta a natureza do surrealismo: nem tudo precisa ser surrealista num quadro de um pintor surrealista, basta um pequeno detalhe, que pela lógica não podia estar presente ali.” (Objects, 109)


(Max Ernst)

“Em dezenove ou vinte filmes, tenho três ou quatro francamente maus, mas em nenhum deles fraudei meu código moral. Ter um código é pueril para muitas pessoas, mas para mim não. Sou contra a moral convencional, os fantasmas tradicionais, contra o sentimentalismo, contra toda essa sujeira moral da sociedade introduzida no sentimentalismo. Evidentemente, fiz maus filmes, mas sempre moralmente dignos.” (Kyrou, 103)



“No México, fui um dia convidado a visitar as instalações [de uma escola de cinema]. Apresentaram-me quatro ou cinco professores, entre eles, um jovem corretamente vestido, que corava quando falava. Pergunto-lhe o que ensina e ele responde-me: ‘A semiologia da imagem clônica’. Por minha vontade, tê-lo-ia assassinado.” (Suspiro, 243)



“Os sonhos são uma continuação da realidade, da vida desperta. Num filme eles só têm valor se não anunciarmos: ‘Isto é um sonho’. Porque então o espectador dirá: ‘Ah, eis um sonho. Não é algo importante.’ O público fica desapontado e o filme perde seu mistério, seu poder de perturbar as pessoas.” (Objects, 212)



“Passei horas deliciosas nos bares. O bar é para mim um local de meditação e recolhimento sem o qual a vida é inconcebível.” (Suspiro, 45)


(com sua esposa, Jeanne)




Fontes:

Objects of Desire – Conversations with Luis Bunuel, José de la Colina & Tomás Pérez Turrent, New York, Marsilio, 1992.

O Meu Último Suspiro, Luis Buñuel, Lisboa, Distri, s/d.

Luis Buñuel, Ado Kyrou, Rio, Civilização Brasileira, 1966











quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

4551) Algumas notas sobre "O Irlandês" (19.2.2020)





O Irlandês (“The Irishman”, 2019), de Martin Scorsese, é como se fosse o líquido de um mesmo barril servindo para encher uma garrafa nova. Quem já viu filmes de gangster envolvendo os nomes de Scorsese, De Niro, Pesci, Pascino, Keitel e mais alguns outros pode ter certeza de que vai ver “um pouco mais daquilo mesmo”.

É o cinemão de Hollywood naquilo que tem de mais eficaz, e eu vi de uma assentada só, com pequenas paradas para pesquisar na Wikipedia nomes e fatos. É um resumo de décadas da vida política e da crônica policial dos EUA. Não senti o tempo passar. O filme não é longo. Poderia ser reduzido? Sim. Qualquer filme pode ser reduzido e ganhar mais tensão narrativa. Qualquer um, inclusive A Saída dos Operários das Fábricas Lumière.

A primeira coisa que me chamou a atenção nos primeiros vinte minutos, foi que o músico Robbie Robertson (“The Band”) escolheu dois baiões para caracterizar o espírito dos anos 1950 nos EUA. Ouvimos ao fundo, em cenas de restaurante ou de loja, “El Negro Zumbón”, conhecido aqui no Brasil como “Baião de Anna”, que é, curiosamente, um baião italiano.  Rômulo e Romero Azevedo já tinham me mostrado na trilha sonora de Os Boas Vidas (1953) de Fellini.

O baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varreu os anos 1950 de ponta a ponta, tendo sido, como nesse exemplo, não só tocado mas imitado na Europa. No filme “Anna” (1951), de Alberto Lattuada, é Silvana Mangano, cheia de charme e de “el bayón”, que canta “El Negro Zumbón” numa cena digna das cenas de boate nas chanchadas da Atlântida.


O outro baião de O Irlandês é o “Delicado”, de Waldir Azevedo, que a orquestra de Percy Faith, num arranjo muito bom, levou ao primeiro lugar da parada musical norte-americana:

Scorsese é um diretor de “cinemão” e não abre mão disso. O filme talvez tenha precisado de 3 horas e tanto porque, ao contrário de outros thrillers seus, é baseado em personagens reais. Em casos assim, o roteirista e o diretor consultam estantes inteiras de livros de referência e em geral sentem-se na obrigação de fazer ressalvas e esclarecimentos sobre fatos políticos reais: a campanha de Kennedy, o escândalo de Watergate, a invasão frustrada da Baía dos Porcos, o sumiço de Jimmy Hoffa...

Lidar com fatos extensamente discutidos e documentados sempre aumenta um roteiro. Numa história inventada, foi isso e pronto. Numa história real, a cada segundo alguém ergue o braço questionando o que viu na tela.

Jimmy Hoffa, por exemplo, é um crime insolúvel, um dos desaparecimentos mais famosos dos EUA, juntamente com os de Ambrose Bierce, o Juiz Crater, e outros. A versão do filme é aceitável: foi morto e cremado às escondidas, e fim. Uma adaptação dirigida por Danny DeVito e escrita por David Mamet, em 1992, Hoffa, sugere um final igualmente plausível para o personagem, interpretado por Jack Nicholson.

Outro gangster notório mostrado no filme é Joey Gallo, abatido a tiros de revólver num pequeno restaurante onde comemorava seu aniversário num pequeno grupo. Ao ser alvejado, Gallo correu para a rua, para desviar o tiroteio da mesa onde estava a família. Gallo mereceu uma canção de Bob Dylan, escrita com Jacques Levy, “Joey” (no álbum Desire, 1976).

A canção é esta:

Desire foi um álbum em que Dylan voltou a fazer canções contextualmente políticas: “Hurricane”, defendendo um boxeador acusado de assassinato, e “Joey”, celebrando esse mafioso, em versos que lhe renderam muitas críticas. Dylan chegou a afirmar que os versos eram todos de seu parceiro musical na época, Jacques Levy, cujas letras celebravam seus próprios heróis, que nem sempre Dylan admirava. Outro exemplo disso é “Catfish”, em homenagem a um craque do beisebol, gravada por Dylan nessa mesma época mas só lançada em 1991.

O filme não tem novidades, como também não tem defeitos que me incomodem. Talvez não tenha a movimentação de, digamos, Os Intocáveis de Brian de Palma. Mas apesar de Scorsese ser bom diretor de cenas de ação ele é muitas vezes, em filmes até bem diferentes entre si, um acompanhador de opções feitas por alguns personagens ao longo da vida. Ele acompanha e mostra como esses destinos ficam muitas vezes a um fio da destruição, e quando menos esperamos o herói está calvo, octogenário, uma cadeira de rodas numa casa de repouso.

O cinema deu aos mafiosos um charme que eles talvez nunca tenham tido, por isso eles talvez convivam sem muita tensão com essas obras que os apontam como criminosos frios, cheios de cobiça. Os mafiosos de Manhattan tentam ter estilo, tentam apresentar lendas pessoais e narrativas próprias que lhes deem uma dimensão maior. Nisso, criminosos acabam reproduzindo os rituais e as etiquetas dos cidadãos de bem. Criminosos gostam de se sentir importantes, gostam de banquetes de homenagem, gostam de posses e formaturas, da concessão de títulos, gostam das cerimônias de aceitação mútua entre poderes que disputam uma área. Jantares no capricho, discursos, medalhas de honra-ao-mérito, placas comemorativas, elogios incessantes, tudo isso cimentando publicamente a foto-da-nuvem dessa turbulência permanente que é a luta pelo poder, pelo comércio ilegal, pelos mercados locais.

Gente que vive para o poder gosta de cultivar esses hábitos, para impressionar círculos concêntricos da opinião pública: festanças, boca livre, uma orquestra, um mafioso septuagenário cantando “Al Di La”. Tudo isso ajuda a tecer os equilíbrios estratégicos, as convivências no-limite, as ameaças constantes, as alianças de olhos bem abertos.

Numa das últimas cenas, alguns homens estão num carro em movimento pela cidade. Um deles avisa que o banco de trás está molhado porque ele teve que ir buscar um peixe. Isso desencadeia entre eles uma discussão que gira em círculos, e que ninguém consegue fechar. Que peixe era? Como assim, comprou um peixe sem saber o que era? Era para um amigo? Que amigo? Seu amigo entende de peixe?

Bandidos, sejam eles milicianos, mafiosos, yakuzeiros, ou membros da Strange Magnificence, vivem num clima permanente de paranóia, de desconfiança. Veem uma ameaça em cada objeto, em cada frase, em cada pessoa que surge numa esquina. Bandido vive da traição (convidar um cara para um encontro secreto de líderes, com tudo já pronto para a execução sumária, por exemplo) e quem disso usa disso cuida. Que mancha é essa? Peixe? Que peixe?

O poema de Bertolt Brecht, “A Máscara do Mal”, diz (na tradução de André Vallias):

Pende em minha parede um talhe japonês
máscara de um demônio maligno, dourada.
Compadecido eu vejo
as veias estufadas na testa, mostrando
como é estafante ser maligno.










sábado, 15 de fevereiro de 2020

4550) "They Live" de John Carpenter (15.2.2020)




Dias atrás estive em São Paulo, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, para participar do Cineclube Sci-Fi, uma programação de exibição e debate de clássicos da ficção científica, sob a coordenação eficiente e simpática de Sabrina Paixão e Cláudia Fusco.

Eles Vivem (“They Live”, 1988), de John Carpenter, foi o filme que debatemos, e que gerou discussões proveitosas durante cerca de duas horas.

Eles Vivem é uma obra curiosa, um filme B com certos cacoetes amadorísticos, certo apego afetivo a clichês narrativos, mas por outro lado tem momento de uma narrativa vigorosa, reviravoltas surpreendentes, e um conteúdo crítico presente do começo ao fim, em sua distopia de um país invadido por seres poderosos e manipuladores.

O protagonista, John Nada, é um cara musculoso e simplório (tipo o Pedro Orósio de “O Recado do Morro” de Guimarães Rosa), cheio de boas intenções mas de assimilação meio lenta. Ele se depara com uma conspiração aterrorizante e cruel, em escala planetária. O que fazer? Sabe que é apenas um cara bronco, sem grana, sem nenhum poder além da musculatura que o ajuda a agarrar um policial pelas costelas e arremessá-lo bem longe.

É o tipo do filme que se tivesse grande orçamento botaria nesse papel um bronco com mais pedigree, como Schwarzenegger ou Stallone. John Carpenter teve a idéia de colocar como protagonista um lutador de wrestling, Roddy Piper, cujos talentos como ator são modestos, para dizer o mínimo.

Me lembrou um meme cruel que li certa vez, a mensagem de um apaixonado para a suposta namorada: “Eu preciso de você mais do que Ben Affleck precisa de aulas de interpretação.”

Curiosamente, isso acaba funcionando, porque deixa mais abismal a sensação de perplexidade e de impotência do personagem quando descobre a conspiração interplanetária. Se alguém pode representar (sem a necessidade de atuar) um sujeito perdidão é Roddy Piper.

O gimmick (ou pequeno truque) principal do filme é o uso de óculos escuros especiais que permitem aos personagens filtrar as imagens e distinguir não somente os humanos dos ETs, como perceber as mensagens subliminares (“Compre!”, “Reproduza-se!”, “Obedeça!”) presentes em toda a parafernália das capas de revistas, anúncios, cartazes, outdoors, etc.



“Óculos mágicos” são um antigo motivo da literatura fantástica, e até aqui no Brasil temos um honroso precursor, Joaquim Manuel de Macedo, com A Luneta Mágica (1869). Nesse romance, um rapaz míope recebe sucessivamente dois pares de óculos mágicos: o primeiro lhe permite ver o mal que há nas pessoas, e o segundo lhe mostra o lado bom. Como o rapaz é bastante ingênuo (Roddy Piper poderia interpretá-lo numa adaptação para a tela), acaba se dando mal em todas as situações.

A cena mais famosa do filme é a da briga no beco entre John Nada e seu amigo Frank, com toda a estilização, exagero e artificialidade das lutas de wrestling. Vê-se que Carpenter é um aficionado da luta-livre, acha bacana, e se diverte esticando ao máximo um confronto onde dois caras fortões parecem estar dando pancadas demolidoras um no outro, mas mal dão sinais de terem apanhado.

Muito melhores são as duas cenas de violência policial: a destruição dos acampamentos dos Sem Teto, que nos lembra, detalhe por detalhe, as centenas de cenas idênticas que já vimos nos telejornais brasileiros, e a invasão da polícia no lugar de reunião da resistência clandestina. Carpenter é um bom diretor de cenas de ação, com movimentos bem coreografados, cortes rápidos, uma boa noção espacial: não desorienta o espectador mas consegue reproduzir a sensação de caos e desorientação de momentos assim.

“Vim aqui pra mascar chiclete e meter pé-na-bunda, e o chiclete acabou”, é a frase famosa do filme, quando John Nada entra numa agência bancária de carabina em punho.  Ao que se diz, era uma das frases que o lutador inventava e anotava num caderninho para dizer no ringue. Entrou para o filme e ficou famosa.

Carpenter tem nesse filme um estilo menos tenso, menos cuidadoso e menos “realista” do que em clássicos anteriores como Fuga de Nova York (1981) e O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982). Talvez por ser esta uma narrativa conduzida praticamente em todas as cenas pelo personagem principal, ela parece mais solta, menos intencional, menos “eficiente” do que os dois filmes anteriores, que são filmes de ação e suspense conforme o figurino.

Essa competência anterior certamente gerou a expectativa que fez They Live estrear em número 1 nas biheterias norte-americanas, e foi certamente esta narração mais pedestre, mais distanciada, mais arrastada, que fez o filme cair bruscamente nas semanas seguintes.

O forte de They Live é o seu recado político onde fica bastante clara a comparação do autor entre os alienígenas predadores e o grande capital neo-liberal que naquela década começou a passar o rodo no mundo, na era Reagan-Thatcher.

Carpenter extrai um ótimo contraste visual entre os EUA empobrecidos e mendicantes da primeira parte do filme, e o subterrâneo meio surrealista das sequências finais. Tendo conseguido furar as defesas dos ETs, John Nada e Frank vão parar num labirinto de corredores que são uma alusão direta aos “bunkers” do complexo militar-industrial-financeiro que governa hoje as grandes e as pequenas nações.

No meio desse labirinto, ele vão parar num incongruente salão de banquete, com candelabros, mesas finas, cristais, homens de smoking e mulheres de vestido longo. Parece uma festa da Câmara do Comércio ou um daqueles jantares de apoio a uma candidatura presidencial.

Não é isso, mas é algo próximo disso: é uma comemoração da aliança firmada entre os ETs e os humanos que decidem apoiá-los em sua invasão. Não existem invasões sem algum tipo de colaboração por parte de algum grupo entre os invadidos.

Dos corredores blindados do bunker os dois vão parar no salão de banquete, dali para o ponto de teleporte onde os indivíduos são desmaterializados e remetidos para Betelgeuse, a estrela de onde vêm os invasores, e dali para o estúdio de TV de onde provêm toda a programação colorida e festiva que envia mensagens subliminares de conformismo e obediência.

Com essa sucessão de ambientes improváveis o diretor consegue um impulso narrativo acelerado para as cenas finais onde os dois amigos, já desmascarados, e perseguidos por todo mundo, tentam sabotar a antena que emite o sinal.

Eles Vivem pode ter decepcionado, em suas primeiras semanas, o público mais amplo que John Carpenter havia conquistado com seus filmes de ação impecáveis. Ele tem, no entanto, qualidades de tema e de execução que suplantam em muito suas eventuais “tosqueiras”.

Disse Howard Hawks (reza a lenda) que um filme é bom quando “tem três cenas boas e nenhuma ruim”. Dessa frase dele eu extraio uma verdade paralela: se um filme B tem três cenas boas, não importa o quanto as outras sejam ruins. E nem é este o caso de Eles Vivem, que na verdade só perde um pouco quando comparado a filmes melhores do diretor, mas tem méritos próprios de verdade política e de estranheza visual.











quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

4549) Minhas canções: "O Valor do Nordestino" (12.2.2020)



Durante alguns anos da década de 1970, trabalhei na organização do Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Alguém me perguntou uma vez quanto eu ganhava. Resposta: não ganhava nada, era feliz. Tinha um bom pretexto para passar dias, noites e madrugadas conversando sem parar com cantadores de viola. Com o que aprendi nesses anos formei uma poupança de onde faço saques diários até hoje, e que está longe de se esgotar.

Uma das minhas atribuições era fazer parte da Comissão de Seleção – a comissão que escolhe os assuntos e os motes que serão sorteados no palco, em cima da hora, para que os cantadores improvisem. Todo ano eu me auto-nomeava para essa comissão, e era aprovado pelos verdadeiros organizadores do Congresso, os membros da ARPN (Associação de Repentistas e Poetas Nordestinos): José Gonçalves, Ivanildo Vila Nova, José Laurentino, Santino Luiz, Moacir Laurentino, Juvenal de Oliveira...



Um mote que forneci num desses Congresso deu o que falar:

Se não fosse o valor do nordestino,
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Os repentistas reclamaram que o mote era “ruim de rima”, porque só admitia poucas palavras: escarcéu, troféu, xaréu, mundéu... Eu argumentei que tinha mil outras: cordel, anel, coronel, Babel, mel, fel... E ninguém aceitava. A rima tinha que ser exata. Argumentei que o som era o mesmo, e que rima-se pelo som, não pela grafia. Mas o Colosso da Tradição não arredava pé. Cantador gosta de dificuldade!

(É por isso que quando uma vez recitei Morte e Vida Severina, de João Cabral, para alguns deles, ouvi o comentário: “É, a linguagem é bonita, a crítica social também, mas ele rima qualquer-coisa com qualquer-coisa...”)

Algum tempo depois, lembrei-me que não sou cantador, sou, como João Cabral, um mero beneficiário indireto do que eles produzem; e compus uma série de glosas ao meu próprio mote, cantadas em variações da melodia do martelo agalopado.

Quando fui morar em Salvador em 1977, iniciei uma parceria musical com Zelito Miranda, quando ambos fazíamos parte do Teatro Livre da Bahia, sob a direção de João Augusto, em encenações memoráveis como Oxente Gente, Cordel (1978).

Hoje em dia Zelito incendeia multidões com seu “forró temperado”, e ainda canta várias músicas desse tempo, de quando participávamos juntos das famosas “coletivas musicais” de uma época em que, vejam só, a grande queixa dos músicos baianos é que não tocava música baiana nas rádios de Salvador, a não ser os discos dos tropicalistas e dos Novos Baianos.

“O Valor do Nordestino” era um desses trabalhos em martelo agalopado que eu e ele cantávamos juntos, alternando os versos, no Restaurante Universitário, no Teatro Castro Alves, no Teatro Vila Velha, nos palcos improvisados da Ufba e nas Residências Universitárias de que Salvador era cheia.

No espetáculo Oxente Gente, Cordel esta canção era um dos números musicais da nossa dupla, “O Galo de Campina” e “Zé Miranda de Serrinha”.

Fizemos um sem-número de parcerias que nunca foram gravadas, mas esta aqui ficou parcialmente registrada por Zelito num DVD:


Abaixo, a letra original completa, que acabei publicando no folheto (hoje uma raridade!) que acompanhava a peça do Teatro Livre.




Quem vê tanta avenida e edifício,
construção, catedral e viaduto,
muitas vezes nem pensa no matuto
que lutou com suor e sacrifício,
exercendo a dureza de um ofício
sem pensar em medalha nem troféu,
confiando que alguém de lá do céu
compensasse o rigor do seu destino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Operário da construção civil
em São Paulo ou no Rio de Janeiro
dá um duro danado o mês inteiro
e o que ganha não chega a ser 3 mil.
Vem de lá do Nordeste do Brasil
faz igreja, faz ponte, faz motel,
faz a vila onde mora o crioléu
e faz casa de luxo pra granfino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não passa
de mais um joão-ninguém desempregado
e com tudo que vê fica espantado:
com a pressa, o barulho e a fumaça.
Vai dormir sobre o banco de uma praça
sem emprego, a vagar de déu em déu,
se cobrindo com as folhas de papel
de um jornal semanário ou matutino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A cidade possui um ar cinzento
que irrita a garganta e o pulmão
e no meio da tal poluição
se eleva a floresta de cimento:
espigão de escritório e apartamento
tem a torto e a direito, e a granel,
e quem faz esas torres-de-Babel
é o nortista migrante e peregrino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Ele fez pavilhões no Anhembi
fez Congonhas e Ibirapuera,
Interlagos e a Via Anhanguera,
o hotel Hilton, o Othon, o Normandie;
ele fez os degraus do Morumbi
onde a massa alvinegra da Fiel
nos domingos faz festa e escarcéu
grita gol, solta bomba e canta hino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não traz
nem bagagem, nem roupa, nem dinheiro,
traz somente a herança de vaqueiro:
duas mãos, a coragem, nada mais...
E constrói avenidas e canais,
constrói posto pra Esso e para a Shell,
constrói torre e antena da Embratel
e constrói a boate e o cassino.
Se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino em São Paulo ou Guanabara
é tratado dum jeito diferente
porque lá no Nordeste toda a gente
tem respeito a seu nome e sua cara.
Mas no Sul é chamado “pau de arara”,
“paraíba”, “baiano” ou “tabaréu”:
quando fala com gente de anel
só lhe tratam por “zé” ou “severino”...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino no Sul é cidadão
que não vale uma prata de dez réis:
quase sempre nem pode pôr os pés
nesse prédio que fez com a própria mão.
Vez por outra ele cai da construção
e o destino se torna mais cruel:
fica morto, a família fica ao léu,
e ninguém diz o nome do assassino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A tarefa que exerce é muito dura,
muito mais que a do próprio arquiteto:
faz coluna, parede, piso e teto,
e o cimento com a pedra ele mistura;
faz com viga e concreto a estrutura,
faz o forro, o lambril, põe o painel;
quando acaba a pintura com um pincel
chega um rico, e se torna o inquilino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Houve um tempo em que o homem do sertão
quando estava faminto e injustiçado
tinha um rifle, um facão bem amolado,
e virava Corisco ou Lampião.
Hoje em dia ele vai num caminhão,
chega lá, constrói ponte e faz hotel;
mas vai lendo um folheto de cordel
que é pra não se esquecer de Virgolino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

·         Alguns detalhes nessa letra, que ainda sei de cor quase por inteiro, são bem “de época”. Nomes de hotéis e logradouros, por exemplo, eu tirei dos jornais – quando escrevi estes versos eu não conhecia São Paulo, onde só desembarquei justamente para a encenação da peça onde eles eram cantados.

·         Um conselho aos jovens: saibam que toda vez que vocês mencionarem cifras monetárias numa letra (“e o que ganha não chega a ser 3 mil”) o teor desse verso vai oscilar dramaticamente ao longo das décadas, de acordo com a inflação. Em 1977 (consultei agora) o salário mínimo era de Cr$ 1.106,40 cruzeiros, e a primeira versão da letra referia-se a “2 mil”. Era um dos versos mais chatos de cantar, porque cinco anos depois o mínimo já estava em torno de 23 mil.

·         “Crioléu” parece uma rima forçada, mas na época era uma palavra posta em circulação por Henfil, no Pasquim. A editora Codecri, que o Pasquim manteve durante anos, ganhou seu nome de um hipotético “Comitê de Defesa do Crioléu”, inventado nas tirinhas do irmão de Betinho.

·         Se cobrindo com as folhas de papel de um jornal semanário ou matutino...” – qualquer fã de Jackson do Pandeiro reconhece aí uma alusão clara à canção “Meu Enxoval” (“com quatro mil réis eu compro o enxoval: Diário da Noite e a Última Hora”).

·         “A herança de vaqueiro: duas mãos, a coragem, nada mais”. Não foi intencional, mas ainda acho este verso um comentário inconsciente ao de Carlos Drummond (“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”). 

·         “Vez por outra ele cai da construção”: ecos inevitáveis de Chico Buarque (“Construção”, 1971) e do filme de Ruy Guerra (A Queda, 1978).

·         “Quase sempre nem pode pôr os pés / nesse prédio que fez com a própria mão.” Referência também inevitável a outro grande sucesso da época, a canção “Cidadão”, de Zé Geraldo: “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar...”