(ilustração: Ahnet Richard)
1
Betinho
Vilaverde, 21 anos, estudante, menino-prodígio musical, meio nerd, meio tímido,
na noite do seu aniversário de maioridade foi convidado por um grupo de colegas
do curso de Direito para um jantar comemorativo no melhor restaurante da
cidade, onde depois de vinhos e discursos elogiosos ele, ainda eufórico diante
daquela primeira incursão na vida noturna, acabou se vendo, madrugada adentro,
num terraço discreto onde batia o luar, numa mesa com quatro casais atracados
aos beijos enquanto ele, de violão em punho, desfiava seu repertório, desde
“Samba em Prelúdio” até “Here, there and everywhere”.
2
Lindaura
Dias da Costa, 41 anos, dona de casa em Uberlândia (MG), tem uma tia idosa que
mora em Belo Horizonte numa casa com dez cachorros e quatro criadas. A tia vive
de uma pensão de montepio que data da Era Vargas, e mal se mantém, mas Lindaura
crê firmemente que quando Dona Eulália (pois este é o seu nome) passar desta
para melhor deixará para ela, Lindaura, a casa, a mobília, e todo o dinheiro
que hipoteticamente está entesourado em algum colchão ou cofre-forte. Esse
dinheiro inexiste; a velha mal sustenta o próprio canil, mas esse sonho dá a
Lindaura forças para persistir na batalha, ainda mais num tempo como o de hoje.
3
Valtemir
Ferreira dos Santos, 28 anos, auxiliar de escritório, voltava para casa num
domingo à noite, no Grajaú, quando ao pegar uma rua lateral viu dois caras
empurrando um carro enguiçado, ia até passar direto, mas um deles disse, “ajuda
aí, campeão!”, e ele que estava há dois meses numa academia, julgou ser este o
momento adequado para demonstrar seus recentes superpoderes, e aplicou os
bíceps à traseira do veículo, para daí a menos de um minuto ver uma viatura da
PM dobrar a esquina cantando pneu, parar junto com uma freiada e com o grito
“todo mundo encostado no muro!” e ele abrir seu sorriso mais amarelo para
dizer: “olha, eu tava só empurrando, viu?”.
4
José
Carlos Belarmino Padilha, 61 anos, dono da cadeia de lojas Girassol, presidente
da Associação Comercial do município, um belo dia (uma bela noite), numa mesa
discreta na boate Feelings, tomou
coragem depois do quinto uísque e segredou, à beldade de bustiê, minissaia e
botinhas que pousara na cadeira ao lado, alguma ânsia secreta que lhe palpitava
no peito desde a adolescência, e experimentou a epifania de vê-la afastar a
orelha do seu bigode grisalho, sorrir, passar de leve pelo rosto dele as unhas
cobertas de esmalte fúcsia, e dizer com sorriso maternal: “Não tem problema, bem,
eu também adoro.”
5
Vivi
da Cunha Silveira, 9 anos, estudante, recebeu da mãe uma nota de 50 reais e a
incumbência de trazer da farmácia algo anotado num papel, mas logo depois da
esquina viu um belo rapaz de olhos azuis chorando e aproximou-se compadecida,
sabendo então que era um príncipe europeu cujo trono fora invadido por um cruel
país beligerante, e agora estava precisando de dinheiro para comprar a passagem
de ônibus de volta à capital onde tentaria recuperar a Presidência da República,
uma história que a deixou de lágrimas nos olhos e a mãe de olhos fuzilantes e
mãos nos quadris dizendo: “diga logo que perdeu, você acha mesmo que eu sou
assim tão besta?!”.
6
Paulo
Roberto Barbosa Lemos, 61 anos, professor no curso de Letras da USP, certa vez
fez uma viagem na ponte aérea SP-Rio ao lado do escritor Rubem Fonseca, tendo
os dois conversado sobre assuntos gerais, entre eles o uso de armas brancas
para a prática de assassinatos; um ano depois deu-se a publicação do romance “A
Grande Arte”, cuja leitura proporcionou a Paulo o deslumbramento revelatório,
que dura até hoje, de ter dado ao grande ficcionista o tema de sua obra-prima,
mal sabendo ele que na época daquele voo o livro já estava praticamente
concluído.
7
Maura
dos Santos Villarim, 61 anos, professora aposentada em Blumenau, grande leitora
de Agatha Christie e de Jane Austen, escreve há décadas um volumoso diário
íntimo com reflexões e revelações que jamais teria coragem de publicar em vida,
mas imagina que após sua morte os filhos descobrirão tudo aquilo, maravilhar-se-ão,
e providenciarão o lançamento que irá catapultar para a fama póstuma a tímida
professora; mal sabe ela que quando morrer, em 6 de novembro de 2027, os
herdeiros jogarão aquela tralha toda na lixeira, e a Natureza se encarregará do
resto.
8
Suyung
N-Kat-48, habitante de Bgront-bg, planeta arquipélago no sistema das Plêiades,
passou mais de doze wytungs à espera de que aparecesse algum randomjob capaz de
assegurar sua sobrevivência e a de quatro garynths, dois markumbellis, três e
meio sempawqs e uma vrimbuliana que eram seus dependentes; coube-lhe, contudo,
a dúbia honra de ser o único de sua categoria numérica a morrer de fome nos
últimos trinta e três foltaimes desde a Revolução do Prego Envenenado.