1
Eu me lembro das lojas de instrumentos agrícolas que
havia na rua João Pessoa, quando eu era garoto e às vezes passava uns dias no
apartamento de Tia Adiza, lá no final da rua, no Monte Santo. Em algumas lojas
havia tratores vermelhos, com rodas traseiras imensas, muito maiores do que as
rodas dos carros, pneus com sulcos profundos e geométricos. O banco do
motorista era pequeno, desconfortável, sem acolchoado, mas eu olhava de longe e
tudo que eu queria na vida era sentar ali pelo menos uma vez. A cor vermelha
era profunda, brilhante. Muitos anos depois, foi a cor desses tratores que me veio
à mente quando escutei a canção”Meu Nome é Pablo”, com Milton Nascimento: “Meu
nome é Pablo, como um trator é vermelho”. E quando li o famoso poema de William
Carlos William, “The Red Wheelbarrow”: “Tanta coisa depende / de um
carro-de-mão vermelho / brilhante de água da chuva / entre galinhas brancas”.
2
Eu me lembro que na campanha presidencial de 1960
meu pai torcia pelo general Henrique Teixeira Lott e minha mãe por Jânio
Quadros. As pessoas usavam adereços de metal dourado que pregavam na roupa
(isso era muito antes dos buttons,
que as pessoas hoje chamam de bóttons).
O símbolo de Lott era uma espada, o de Jânio uma vassoura. Eram adereçozinhos pequenos,
com uns 2 centímetros no máximo, presos à roupa com um broche. Eu torcia por
Lott meio por identificação com meu pai, e porque a espada me parecia um
símbolo masculino, e a vassoura um símbolo feminino. Lembro também de uma
propaganda de Jânio que era um disco fonográfico gravado em cima de um cartaz
do tamanho de um livro: a gente colocava na vitrola e ele tocava uma música: “Ele vem aí, não demora não... ele vem aí
com a vassoura na mão! / Tanto faz ser de Mato Grosso / tanto faz ser de Macaé
/ o que interessa é ser bom brasileiro / isso ele é!”.
3
Eu me lembro, ainda no capítulo sobre “espadas”,
que eu tinha tamanha idéia-fixa com as histórias de aventuras medievais,
fantasia heróica, etc., que os meus dois santos preferidos eram São Jorge e
Santa Joana d’Arc, porque eram os únicos santos que eu via vestidos de armadura
e empunhando uma espada. Eu também tinha uma devoção por Santa Luzia, de quem
tinha uma gravura, uma mulher alva, de roupa preta, segurando uma bandeja onde
havia dois olhos humanos. Dizia-se que os olhos dela tinham sido arrancados
durante uma sessão de tortura, e por isso ela era protetora da vista. Como eu
tinha muito medo de ficar cego, todas as noites, depois de rezar, eu dizia: “A
bênção Santa Luzia, protegei a minha vista.”
4
Eu me lembro das peladas no Alto Branco, na beira
da estrada; eu teria uns 12 anos e a única bola que a gente tinha era a famosa
Bola Verde, que era de plástico e tinha um rasgão, de modo que cada vez que a
gente “prensava uma bola” tinha que parar o jogo e desamassar a respectiva com
as mãos. Nossa independência começou depois que comecei a trabalhar no Diário
da Borborema, com 15 anos, e eu e Severino Brasil, que também trabalhava lá,
rachamos o preço de uma bola de couro no. 3, com gomos marrons e brancos, na
Casa Esporte, quase em frente à TV Borborema, e descemos eufóricos no fim da
tarde pelo Beco dos Bêbos, a rua Alexandrino Cavalcanti, o Ponto Cem Réis, a
ponte do canal e a subida do Alto Branco, correndo e trocando passes pelo meio
da rua até chegar na casa dele, que era pertinho da nossa.
5
Eu me lembro que meu pai, charadista nato,
colecionava uma revista portuguesa chamada Brasil
Enigmista, cheia de charadas, palavras cruzadas, rébus, etc. A revista
tinha uma seção chamada “Você é o Sherlock”, escrita por Leiria Dias, com pequenos casos policiais cuja
narração era interrompida a certa altura. Havia concursos para ver quem deduzia
quem era o assassino (e justificava). Publicavam contos também, e me lembro de
ter lido uma história de "William Irish" (pseudônimo de Cornell Woolrich) chamada
“Prato Frio”, um crime dentro de um elevador enguiçado e cheio de gente.
6
Eu me lembro que minha mãe, costureira dedicada,
colecionava uma revista chamada Jornal
das Moças, cheia de matérias sobre moda, vida doméstica, beleza, etc. Tinha também uma seção de piadas, e uma de
curiosidades com o nome “Tudo Isto é Verdade”. E tinha uma história em quadrinhos, serializada, em preto e branco: “Mark Taylor”, com as aventuras de um cara no norte gelado
dos EUA, ou Canadá. Como eu pegava as revistas fora de ordem, acabava lendo esses quadrinhos como quem pula capítulos rayuelamente, numa ordem totalmente
imprevista, mas que não nos impede de montar o quebra-cabeças.