domingo, 24 de agosto de 2014

3586) "Missa do Galo" (24.8.2014)



(ilustração: Renato Alarcão)

Já tive muita professora de Português chata, mas nenhuma mais chata do que uma que tive no Ensino Médio há muitos anos, contando eu dezessete, ela trinta. Na primeira semana, me mandou ler e comentar uma história chata sobre uma noite de Natal. Eu morria de medo de ser reprovado, e faltei no dia. Foi no Educandário PhD, o famoso “Ou Paga ou Dá”. Eu era também do grupo de teatro, e naquele tempo teatro era pretexto para alguém comer alguém, como aliás sempre foi.

É verdade que não era tão pentelha feito o resto. Era meio tristinha, nem bonita nem feia, mas receptiva. O caba tendo quinze anos a mais estava tudo resolvido. O ano foi se passando, eu fiquei em segunda época ou recuperação (sei lá como se falava naquele tempo, não sei mais nem em que década foi), e ela fez comigo a decisiva prova oral.

Eu tinha lido a história, que era sem pé nem cabeça, não acontecia nada. Era diferente dos “Três Mosqueteiros”, que era grande, tinha erro de continuidade até no título, mas era mais tchans. Dia da prova ela mandou abrir o livro com a história. Sentou na cadeira em frente. Perguntei se não estava chateada por eu ser o único que ficou para aquela prova, atrasando as férias dela. Ela disse que tudo bem. Perguntou se eu não estava chateado por estar fazendo prova, etc., e eu respondi o mesmo. Ela estava com olhos de quem não tinha dormido, a noite inteira pensando.

Me pediu pra dizer minhas leituras, falei minhas agaquê, meus mangá.  Ela me vigiando, me espionando pelo meio das pestanas... A certa altura estranhou algumas coisas que eu disse que tinha lido. Me arrependi no ato, porque estava gostando daquilo, era uma prova diferente. Ela parecia estar indo e voltando, andou pela sala, valorizou a saia e os saltos que tinha escolhido. Devia achar  muito importante poder controlar o olhar do cara, ter o poder de reprovar o cara... É sempre assim.

Puxou outros assuntos de corta-lourenço e eu olhava seus braços claros. Menos magros do que se poderia supor. Falei que o conto era um estudo da vida urbana na cidade. Que no tempo do império havia grande preponderância da religião. “É mesmo?” disse ela, formando um espanto meio exagerado, mas eu senti que estava indo bem. Ela perguntava minhas influências, se debruçava com um casulo morno de perfume. Tentando desconcentrar minha leitura em voz alta. Me olhando numa fisgada rápida de surpresa, ou senão devagar e demoradamente. No fim, quando eu já não sabia o que estava recitando, ela empunhou a caneta, me deu o sete-e-meio que eu precisava pra passar, me desejou boas férias, disse que era uma pena e sumiu para sempre, e eu nem me lembro mais dela.