Joãozinho recebeu dez reais dados por sua mãe. Deu 40% do que havia
recebido a Verônica. Do que lhe sobrou, deu 50% a Pedro, e 50% a Maria. Quantos
reais receberam Verônica, Pedro e Maria?
Parece um problema fácil, mas nem tanto assim. Eu já vi figurão
questionar um assessor que disse: “Doutor, eles disseram que dos 25% restantes
eles ficam com 50%”, e o figurão dizendo, “Ô cavalgadura, como é que você pode
tirar 50 onde só tem 25?”. No Brasil é
mais fácil acabar com a corrupção do que com a burrice.
Voltemos às percentagens. Eu poderia ter proposto o
mesmíssimo problema acima em outros termos. Por exemplo:
Joãozinho mora numa vila operária com a mãe, os irmãos e a avó. Eles moram
lá mas estão sendo despejados porque quado o pai de Joãozinho morreu eles
perderam o direito de morar nessa casa, que pelo contrato deve ser destinada
aos operários da fábrica local. A mãe de Joãozinho costura para fora e quando
recebe uma grana extra ela dá ao garoto para suas pequenas despesas. Naquele
sábado, foi isso que aconteceu, porque ela conseguiu vender dez casaquinhos de
lã para a Cooperativa do bairro, e deu 10 reais a Joãozinho. Ele resolveu usar
aquele dinheiro para pagar dívidas com seus colegas, porque o pai sempre lhe
ensinou a saldar primeiro as dívidas e só depois gastar com diversão. Joãozinho
usou 40% do que havia recebido para pagar a Verônica, a filha da vizinha, duas
revistas usadas que ela lhe vendera, com a condição de pagar assim que pegasse
em dinheiro. De modo que ele correu logo na casa dela e deixou com a mãe dela as
notas bem dobradinhas num envelope, junto com um bilhete. Em seguida, contou o
dinheiro que lhe restava e resolveu dar 50% daquele total a Pedro, que lhe
pagara um sorvete na véspera; e voltando para casa chamou sua irmã Maria e lhe
deu os outros 50%, para ajudar às economias que ela guardava num cofrinho.
Observem que o problema matemático é rigorosamente o
mesmo, e até os nomes dos respectivos personagens foram mantidos.
Se um professor de Matemática ler esses exemplos
provavelmente dirá: “OK, entendi, mas o primeiro problema está muito mais
adequado. O segundo está até interessante, tem uma historinha até realista; mas
está cheio de detalhes que só fazem atrapalhar a visão do problema. Esses
detalhes desviam nossa atenção do verdadeiro problema a ser resolvido.”
Pois bem: este exemplo meio desajeitado tenta explicar
uma pendenga de mais de um século entre dois tipos de literatura: a literatura
de mistério detetivesco e o romance realista.
A literatura de mistério detetivesco (também chamada
literatura policial, criminal, dedutiva, etc., por causa de suas muitas
ramificações) propõe um problema muito claro ao leitor, dá-lhe os indícios
necessários e o desafia a resolver sozinho o enigma sem esperar pelas páginas
finais, onde o detetive dá a resposta.
São mentalidades diferentes. Ao detetive, e ao escritor
de romance policial, só interessam os dados do problema. Daí o fato de que os
“decálogos” dessa literatura condenarem a interferência de envolvimentos
amorosos, agitações políticas, críticas sociais, todos esses elementos da vida
real que só fazem turvar e atrapalhar o enunciado do problema.
Conan Doyle dá um exemplo involuntário disso, num conto pouco
conhecido dos aventuras de Sherlock Holmes (“The Adventure of the Retired
Colourman”, 1926). O dr. Watson foi encarregado por Holmes de ir a um bairro
distante examinar a casa do cliente, e volta mais tarde com seu relatório:
– A casa de Mr. Josias Amberley chama-se
‘Sossego’, – expliquei. – Penso que havia
de lhe interessar, Holmes. É como se um patrício caído na pobreza fosse morar
na companhia de seus inferiores. Você
conhece o arrabalde, as monótonas ruas com suas casas de tijolo, as cansativas
estradas suburbanas. Bem no centro
delas, uma ilhota de antiga cultura e conforto, fica essa velha casa, rodeada
por um muro alto de tijolo cozido ao sol, ao qual os líquens em profusão e o
musgo que o encima emprestam um aspecto especial, muro esse...
--
Basta de poesia, Watson – disse Holmes com severidade. – Já sei que há um muro
alto de tijolo.
(“Mr.
Josias Amberley”, em Histórias de Sherlock Holmes, trad. Agenor Soares
de Moura)
Watson olha para tudo com olhos que não direi de médico,
mas de um londrino comum, constatando as diferenças sociais que se exprimem no
urbanismo e na arquitetura, tentando através do bairro e da aparência da casa
deduzir algo sobre o suspeito. Holmes vai direto ao ponto, e o leitor não se
surpreende quando descobre, mais tarde, que Holmes pulou o muro e revistou a
casa do cliente, do qual suspeitou desde o início.
Eu diria que a grande evolução da literatura policial na
segunda metade do século 20 foi a gradual mistura entre as exigências da
história policial clássica (enredo, mistério, concatenação precisa, pistas,
racionalização do problema, etc.) e as exigências do romance mainstream
clássico (verossimilhança psicológica, verossimilhança na descrição de
ambientes, vida doméstica, vida social, etc.).
Os exemplos citados no início, sobre Joãozinho e seus 10
reais, são exemplos extremos. É claro que se o interesse é de ilustrar uma
questão meramente matemática, a primeira formulação, mais curta, é a ideal,
pois nada deve desviar a atenção do aluno para a questão numérica.
Se o interesse do autor é criar um mistério do tipo
lógico-dedutivo, ele pode resumir esse mistério em meia dúzia de páginas. Não
há necessidade de descrever a mansão, nem a vizinhança, nem a cidade, nem a
aparência física das pessoas, nem transcrever seus diálogos sobre outros
assuntos... O mistério detetivesco, reduzido a si mesmo, cabe na meia dúzia de
páginas daqueles enigmas-de-revista, tipo “Você é o Sherlock!”.
Mas – aqui vem o grande MAS – se o interesse é contar uma história de ficção, mesmo que
seja uma ficção policial, é preciso lembrar que o compromisso de “contar uma
história” está no prato oposto da balança, e exige, sim, a criação de um
ambiente físico, um ambiente social, um ambiente psicológico.
Seria injusto dizer que os autores do romance policial
clássico só escreviam “personagens de papelão” e só repetiam clichês
psicológicos. É verdade que Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, John
Dickson Carr e outros nem sempre estão “no topo de sua forma”, e aqui-acolá a
gente pega um livro meio que escrito no piloto automático. Mas os melhores
livros deles mostram não somente sua engenhosidade na invenção de um crime
complexo e no processo dedutivo que o esclarece, mas na descrição de um
ambiente social, principalmente naquela Inglaterra de papéis sociais tão
esperados e previsíveis que bastam dois traços para definir um personagem.
E mostram também o entrechoque complexo de temperamentos,
personalidades, imposturas, dissimulações, em que Agatha Christie era mestra, e
que fez Raymond Chandler queixar-se mais de uma vez que ela falsificava os
personagens – apresentava-os como sendo de tal ou tal maneira, e no final, por
conveniência do enredo, mostrava que eram lobos em pele de cordeiro, ou o
contrário disso.
O enigma detetivesco e o romance realista eram, cem anos
atrás, dois extremos de uma escala aparentemente irredutível. O romance
policial de hoje é o resultado de cem anos de adaptação entre os dois,
mostrando que essa coexistência não é impossível.