segunda-feira, 12 de julho de 2021

4723) O realismo é desnecessário? (12.7.2021)




Digamos que eu sou um professor de Matemática do 1º. grau e estou explicando algumas coisas básicas de percentagem para meus alunos. Depois de explicar como aquilo funciona, eu proponho um problema.

 

Joãozinho recebeu dez reais dados por sua mãe. Deu 40% do que havia recebido a Verônica. Do que lhe sobrou, deu 50% a Pedro, e 50% a Maria. Quantos reais receberam Verônica, Pedro e Maria?

 

Parece um problema fácil, mas nem tanto assim. Eu já vi figurão questionar um assessor que disse: “Doutor, eles disseram que dos 25% restantes eles ficam com 50%”, e o figurão dizendo, “Ô cavalgadura, como é que você pode tirar 50 onde só tem 25?”.  No Brasil é mais fácil acabar com a corrupção do que com a burrice. 

 

Voltemos às percentagens. Eu poderia ter proposto o mesmíssimo problema acima em outros termos. Por exemplo:

 

Joãozinho mora numa vila operária com a mãe, os irmãos e a avó. Eles moram lá mas estão sendo despejados porque quado o pai de Joãozinho morreu eles perderam o direito de morar nessa casa, que pelo contrato deve ser destinada aos operários da fábrica local. A mãe de Joãozinho costura para fora e quando recebe uma grana extra ela dá ao garoto para suas pequenas despesas. Naquele sábado, foi isso que aconteceu, porque ela conseguiu vender dez casaquinhos de lã para a Cooperativa do bairro, e deu 10 reais a Joãozinho. Ele resolveu usar aquele dinheiro para pagar dívidas com seus colegas, porque o pai sempre lhe ensinou a saldar primeiro as dívidas e só depois gastar com diversão. Joãozinho usou 40% do que havia recebido para pagar a Verônica, a filha da vizinha, duas revistas usadas que ela lhe vendera, com a condição de pagar assim que pegasse em dinheiro. De modo que ele correu logo na casa dela e deixou com a mãe dela as notas bem dobradinhas num envelope, junto com um bilhete. Em seguida, contou o dinheiro que lhe restava e resolveu dar 50% daquele total a Pedro, que lhe pagara um sorvete na véspera; e voltando para casa chamou sua irmã Maria e lhe deu os outros 50%, para ajudar às economias que ela guardava num cofrinho.

 

Observem que o problema matemático é rigorosamente o mesmo, e até os nomes dos respectivos personagens foram mantidos.

 

Se um professor de Matemática ler esses exemplos provavelmente dirá: “OK, entendi, mas o primeiro problema está muito mais adequado. O segundo está até interessante, tem uma historinha até realista; mas está cheio de detalhes que só fazem atrapalhar a visão do problema. Esses detalhes desviam nossa atenção do verdadeiro problema a ser resolvido.”

 

Pois bem: este exemplo meio desajeitado tenta explicar uma pendenga de mais de um século entre dois tipos de literatura: a literatura de mistério detetivesco e o romance realista.

 

A literatura de mistério detetivesco (também chamada literatura policial, criminal, dedutiva, etc., por causa de suas muitas ramificações) propõe um problema muito claro ao leitor, dá-lhe os indícios necessários e o desafia a resolver sozinho o enigma sem esperar pelas páginas finais, onde o detetive dá a resposta.

 

São mentalidades diferentes. Ao detetive, e ao escritor de romance policial, só interessam os dados do problema. Daí o fato de que os “decálogos” dessa literatura condenarem a interferência de envolvimentos amorosos, agitações políticas, críticas sociais, todos esses elementos da vida real que só fazem turvar e atrapalhar o enunciado do problema.

 

Conan Doyle dá um exemplo involuntário disso, num conto pouco conhecido dos aventuras de Sherlock Holmes (“The Adventure of the Retired Colourman”, 1926). O dr. Watson foi encarregado por Holmes de ir a um bairro distante examinar a casa do cliente, e volta mais tarde com seu relatório:

 

 – A casa de Mr. Josias Amberley chama-se ‘Sossego’,  – expliquei. – Penso que havia de lhe interessar, Holmes. É como se um patrício caído na pobreza fosse morar na companhia de seus inferiores.  Você conhece o arrabalde, as monótonas ruas com suas casas de tijolo, as cansativas estradas suburbanas.  Bem no centro delas, uma ilhota de antiga cultura e conforto, fica essa velha casa, rodeada por um muro alto de tijolo cozido ao sol, ao qual os líquens em profusão e o musgo que o encima emprestam um aspecto especial, muro esse...

-- Basta de poesia, Watson – disse Holmes com severidade. – Já sei que há um muro alto de tijolo.

(“Mr. Josias Amberley”, em Histórias de Sherlock Holmes, trad. Agenor Soares de Moura)

 

Watson olha para tudo com olhos que não direi de médico, mas de um londrino comum, constatando as diferenças sociais que se exprimem no urbanismo e na arquitetura, tentando através do bairro e da aparência da casa deduzir algo sobre o suspeito. Holmes vai direto ao ponto, e o leitor não se surpreende quando descobre, mais tarde, que Holmes pulou o muro e revistou a casa do cliente, do qual suspeitou desde o início.

 

Eu diria que a grande evolução da literatura policial na segunda metade do século 20 foi a gradual mistura entre as exigências da história policial clássica (enredo, mistério, concatenação precisa, pistas, racionalização do problema, etc.) e as exigências do romance mainstream clássico (verossimilhança psicológica, verossimilhança na descrição de ambientes, vida doméstica, vida social, etc.).

 

Os exemplos citados no início, sobre Joãozinho e seus 10 reais, são exemplos extremos. É claro que se o interesse é de ilustrar uma questão meramente matemática, a primeira formulação, mais curta, é a ideal, pois nada deve desviar a atenção do aluno para a questão numérica.

 

Se o interesse do autor é criar um mistério do tipo lógico-dedutivo, ele pode resumir esse mistério em meia dúzia de páginas. Não há necessidade de descrever a mansão, nem a vizinhança, nem a cidade, nem a aparência física das pessoas, nem transcrever seus diálogos sobre outros assuntos... O mistério detetivesco, reduzido a si mesmo, cabe na meia dúzia de páginas daqueles enigmas-de-revista, tipo “Você é o Sherlock!”.

 

Mas – aqui vem o grande MAS – se o interesse é contar uma história de ficção, mesmo que seja uma ficção policial, é preciso lembrar que o compromisso de “contar uma história” está no prato oposto da balança, e exige, sim, a criação de um ambiente físico, um ambiente social, um ambiente psicológico.

 

Seria injusto dizer que os autores do romance policial clássico só escreviam “personagens de papelão” e só repetiam clichês psicológicos. É verdade que Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, John Dickson Carr e outros nem sempre estão “no topo de sua forma”, e aqui-acolá a gente pega um livro meio que escrito no piloto automático. Mas os melhores livros deles mostram não somente sua engenhosidade na invenção de um crime complexo e no processo dedutivo que o esclarece, mas na descrição de um ambiente social, principalmente naquela Inglaterra de papéis sociais tão esperados e previsíveis que bastam dois traços para definir um personagem.

 

E mostram também o entrechoque complexo de temperamentos, personalidades, imposturas, dissimulações, em que Agatha Christie era mestra, e que fez Raymond Chandler queixar-se mais de uma vez que ela falsificava os personagens – apresentava-os como sendo de tal ou tal maneira, e no final, por conveniência do enredo, mostrava que eram lobos em pele de cordeiro, ou o contrário disso.

 

O enigma detetivesco e o romance realista eram, cem anos atrás, dois extremos de uma escala aparentemente irredutível. O romance policial de hoje é o resultado de cem anos de adaptação entre os dois, mostrando que essa coexistência não é impossível.