quinta-feira, 10 de setembro de 2020

4619) "Noites no Circo" de Angela Carter (10.9.2020)



Nós somos as prostitutas do riso, porque, tal como prostitutas, sabemos bem o que somos; sabemos que não passamos de simples mercenários dando duro no trabalho e ainda assim os que nos alugam pensam que estamos numa diversão perpétua. Nosso trabalho é o entretenimento deles, e por isso eles pensam que é nosso entretenimento também. Assim, existe sempre um abismo entre a noção deles, de que nosso trabalho é diversão, e a nossa, de que a diversão deles é a nossa labuta.
(p. 119, trad. BT)
 
Nights at the Circus (1984) é um romance circense centrado na figura da Mulher Alada – sim, uma mulher de verdade com asas de verdade, que passou por mil peripécias na vida. Foi adotada e criada por um bordel inteiro de prostitutas londrinas, até ser a estrela principal de um circo onde esvoaça inacreditavelmente.
 
Sophie Fevvers (pois este é o seu nome) conta na Parte I do livro sua odisséia picaresca até então, tendo como ouvinte o jornalista Walser, que torna-se seu discreto fã. Na Parte II o repórter acompanha o circo, disfarçado de palhaço, até São Petersburgo (a ação se desenrola nos últimos meses de 1899). Há uma Parte III que acontece na Sibéria e é ainda mais anticonvencional do que as outras duas.
 
Angela Carter (1940-1992) é uma das grandes escritoras do Fantástico em língua inglesa. É uma autora que tem um senso de realismo imenso – suas descrições de ambientes e de pessoas são precisas, exuberantes, imprevisíveis, consistentemente verdadeiras. Ao mesmo tempo, tem uma percepção do Fantástico que não se limita à aparição eventual de fantasmas ou monstros. Na realidade da história, descrita por ela com toda nitidez e verossimilhança, essas coisas também existem. Ou podem ter existido. Ou estão a um passo de existir.
 
Os únicos sons que vêm da área reservada aos animais são o contínuo ronronar dos grandes felinos, como um mar distante, e os tinidos distantes dos elefantes de carne e osso do Coronel Kearney, enquanto eles balançam as correntes presas às suas pernas, como fazem o tempo todo, todo o tempo que passam acordados, pois em sua milenária e longeva paciência eles sabem muito bem como, em uma centena de anos, ou em um milhar de anos, ou mais, quem sabe, ou amanhã, ou dentro de mais uma hora, porque tudo não passa de uma aposta, uma chance em um milhão, mas em todo caso existe uma chance de que se eles continuarem balançando as correntes, um dia, algum dia, os fechos de suas algemas irão se partir.
(p. 106)
 
A Editora Rocco fez nos anos 1980 uma força danada para divulgar a obra dela por aqui, creio que por obra e graça da saudosa Vivian Wyler. Publicou “As Máquinas Infernais do Dr. Hoffman”, “A Paixão da Nova Eva” e outros. Acho que nos tempos mais recentes o mais conhecido dela no Brasil é a antologia 103 Contos de Fadas (Cia. Das Letras, trad. Luciano Vieira Machado), ótima compilação de histórias que têm protagonistas femininas e foram colhidas na cultura oral de vários países e continentes.
 
Noites no Circo tem uma prosa exuberante, especialista em botar pessoas de baixa extração social derramando uma prosa de fazer inveja a qualquer Poeta Laureado vitoriano, mas pontilhado de palavrões, metáforas obscenas e humor de ponta-de-rua, para manter o senso de proporção. Numa história que envolve prostitutas, palhaços sádicos, fotógrafos de ectoplasmas mediúnicos, presidiárias lésbicas fugidas de um panóptico, xamãs em transe lisérgico e bandoleiros que assaltam na neve, há uma disparidade confortável de mentalidades e texturas verbais, mas a graça da autora é tornar plausíveis as falas de toda essa galeria de excêntricos, sem nunca sair do tom de sua própria narrativa.
 
A Rússia é uma esfinge. Ó grande imobilidade, antiga, hierática, um quadril escanchado na Ásia, o outro sobre a Europa... que destino exemplar estás tricotando com o sangue e os tendões da história, em teu útero adormecido?
Ela não responde. Os enigmas ricocheteiam em seu costado, pintado em cores tão exuberantes quanto as de uma tróica de camponeses.
A Rússia é uma esfinge; São Petersburgo, o belo sorriso em seu rosto. Petersburgo, a mais adorável das alucinações, miragem tremeluzente nas vastidões desérticas do Norte, que se vislumbra por uma fração de segundo entre a floresta negra e o mar gelado.
Dentro da cidade, a bela geometria de todas as perspectivas; fora dela, a Rússia ilimitada, e a tempestade que se aproxima.
(p. 96)
 
Angela Carter é uma figura única na literatura inglesa. Em alguns departamentos de letras ela é incluída num grupo de críticos demolidores do antigo Império, e em outros ela faz parte de uma geração de escritores de ficção científica que inclui J. G. Ballard e Michael Moorcock. Feminista em inúmeros textos e pronunciamentos, mas igualmente fascinada pelo Surrealismo e pelos visionaristas que influenciaram o movimento, como Sade e Baudelaire. Seu nome é citado muitas vezes como uma representante britânica do “realismo mágico”, pela liberdade de fabulação que ela se permite, recorrendo aos episódios mais escandalosamente fantásticos e depois voltando ao trilho comum do realismo, em que as pessoas pegam o trem, bebem chá, trocam de roupa, escovam os dentes.
 
Como ela mesma diz, ao descrever Sophia Fevvers:
 
Porque, vejam bem, ter asas e não ter braços implica em uma coisa impossível; mas ter asas e ter braços é o impossível duplamente improvável; o impossível ao quadrado.
(p. 15)