sábado, 14 de janeiro de 2012
2766) Coração Numeroso (14.1.2012)
É um dos meus poemas preferidos de Drummond, um dos primeiros que me conquistaram por completo. Até hoje me surpreende que já aparecesse em seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930), por ser de algum modo um poema-síntese que parece já exprimir a visão de um autor maduro. Fala do Rio, mas deve se referir a alguma viagem ocasional, pois precede a mudança do poeta para lá: “Foi no Rio. / Eu passava na Avenida quase meia-noite. / Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis. / Havia a promessa do mar / e bondes tilintavam, / abafando o calor / que soprava no vento / e o vento vinha de Minas”. Soa como uma síntese do complexo processo que fez do poeta um carioca adotivo sonhando eternamente com uma Minas que passou a existir apenas na sua memória e imaginação. Drummond, mesmo escrevendo fartamente sobre o Rio, nunca tirou Minas da cabeça. Sua obra é uma obra de exílio e de aceitação do exílio; de ida sem volta e de aceitação amadurecida do fato de não poder mais voltar. Este poema é sua primeira, precoce e definitiva declaração de amor pelo Rio de Janeiro.
A falta inicial de Minas e a inadaptação crônica do poeta com o mundo o fazem dizer, vagando a esmo na cidade estranha: “Meus paralíticos sonhos desgosto de viver / (a vida para mim é vontade de morrer) / faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente / na Galeria Cruzeiro quente quente / e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, / nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso”. Quem não já se sentiu assim numa cidade grande e anônima, sem conhecer ninguém, sem se encaixar? Numa cidade onde a vida humana soa alienada, distanciada, estrangeirizada e irredutível? Quem não já vagou de noite sem ter porta a que bater, nome que chamar, recanto onde dormir? Acabemos com isso, claro.
“Mas” (diz o poeta) “tremia na cidade uma fascinação casas compridas / autos abertos correndo caminho do mar / voluptuosidade errante do calor / mil presentes da vida aos homens indiferentes, / que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. // O mar batia em meu peito, já não batia no cais. / A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu / a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor”. É, pra mim, um dos grandes momentos da poesia de Drummond: o instante em que a mera existência da cidade toma de assalto o indivíduo numa espécie de náusea sartreana ao contrário. Escolhas verbais, pontuação, fragmentação sintática do texto, a equivalência sutil mar=coração, esse inesperado e insubstituível “meu amor”... É um momento de fusão perfeita entre o ser e o mundo, entre a idéia, a emoção e a palavra. Drummond insuperável.
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