“Acordei misturado às noções que a noite fabrica” (p. 265). Jurandir, narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva / Alfaguara, 2014) é um tipo particular de narrador literário não-confiável. Não é o narrador que mente, é o que não sabe. Não é o que quer esconder de nós o seu passado, é o que deu um jeito de escondê-lo de si mesmo. Preso a uma existência humilhada, Jurandir tem um defeito físico que ele deu um jeito de, em certos momentos, usar como pretexto para um ritual de prazer. Sem sonhos de grandeza, ele arruma um jeito de se alegrar com as pequenas coisas, a sensação de conforto de uma rotina que ele é capaz de repetir, um fio de futuro em que pode confiar.
Me pareceu, também, a voz de um ex-drogado (ele toma
remédios, quando interno na clínica), alguém que obedece ordens com
docilidade, sem discutir, sem precisar entender, mas que de repente tem uns
assomos de onisciência e faz a última coisa que se esperaria dele. Jurandir recorda metodicamente os mesmos
fatos, procurando alguma coisa que existia neles e não existe mais. O sexo com a esposa e com a namorada lhe traz
um pouco disto; o amor físico é “o canal rumo a um tempo em que somos apenas o
que somos, sem arrazoados nem idéias que nos estraguem a hora. É só assim que esquecemos do passado.” (p.
243).
Nesses momentos ele lembra Milgrim, o ex-drogado usado por
William Gibson em Território de Espiões (2007) e Zero History (2010), o
homem com um buraco na memória (“Meus últimos dez anos estão em modo
não-linear, ainda estou tentando organizar isso tudo”). O mundo de Milgrim é o aqui-e-agora. “Qual fora a
última vez em que estivera em Paris? Era como se nunca tivesse ido lá. Alguém tinha ido, alguém com vinte-e-poucos
anos. (...) Um Eu mais novo, hipotético.
Antes que as coisas tivessem começado a não correr bem, depois a piorar, depois
piorar ainda mais, até que a essa altura ele deu um jeito de se ausentar a
maior parte do tempo. Tanto quanto era
possível.”