O primeiro uísque desceu queimando e desceu bem, labareda,
vida boa garganta adentro, vertigem e turbilhão de desafio, vontade de dizer na
cara de tudo, “pode vir quente que eu estou fervendo, sou imortal, não tenho
medo de nada”, pé dentro no acelerador pra não chegar atrasado, para já estar
lá, soltando uma gargalhada com a piada que Vivi Catanduva acabara de dizer,
por entre o ruído das vozes e da música do coquetel, uma piada maldosa e
compassiva, se é que isto pode haver, piada que ela torceu pelo canto da boca
sem tirar os olhos do autor que, suado, autografava e sorria, posava para as
fotos e os olhares. Foi a vez de Lucio Manhães balançar seu próprio drinque e
comentar qualquer coisa inesquecível, enquanto os garçons passavam erguendo as
bandejas por sobre as cabeças da multidão que se espremia. Eu vivia ali um
pequeno momento de glória, os quinze microssegundos de fama das Edições Marco
Franchesi, porque naquela noite tudo estava dando certo, meu autor estava
vendendo espantosamente bem e me fazendo um homem rico, era a oitava noite de
autógrafos em um mês, em oito capitais, a imprensa não largava o nome dele,
como um cão não larga um osso. Na passagem do próximo garçon pesquei o segundo
uísque, enquanto a voz de mulher ao meu lado murmurava, “Marco, vai devagar,
você está correndo muito”, mas um uísque é pouco, dois é bom, dois dão o fogo
ideal para dissolver na boa o turbilhão feérico de vozes e suores e perfumes,
de multidão comprimida numa livraria da moda, a sensação de que meu modesto
ombro está fazendo avançar o carro-de-boi da História. Este segundo uísque é aquela bênção, aquela
chancela de invulnerabilidade e deleite, aquela licença de entrar sambando no
Paraíso. Segundo uísque é como segundo soco, pega o vitimado com 50% de si
mesmo. E rápido. Frase vai, frase vem.
Quando vejo estou com o terceiro na mão. Olho o copo, um círculo com cubos de
gelo translucentes, entrechocantes. Fico hipnotizado. Sinto algo fremir de
encontro à minha perna, e uma melodia espalhafatosa que nunca escolhi emerge do
meu celular. Ao meu toque, a tela revela uma estrada, à noite, imagem nítida
que eu seguro, como um espelho. A traseira de um caminhão. Ele dá sinal de lanterna
à direita. A guinada, a ultrapassagem, a aceleração, a constatação súbita dos
dois gigantescos faróis à frente. O copo de uísque se espatifa no piso.
Exclamações. Lucio Manhães faz gestos pedindo serviçais e esfregões. Vivi
Catanduva ainda agarra convulsa o celular, numa crise de choro: “Me ligaram
agora, meu Deus, uma tragédia com Marco Franchesi, ele e a esposa, vindo para
cá, meu Deus, que coisa... Ele me disse que não perderia de jeito nenhum essa
festa.”
sábado, 25 de agosto de 2012
2958) O Cavaleiro das Trevas (24.8.2012)
O terceiro filme da série Batman dirigido por
Christopher Nolan tem competência e tem pequenas frustrações. É um diretor
criativo querendo injetar novidade numa fórmula da cultura de massas. Ele não
pode injetar tanta novidade que cause um estranhamento nas platéias. Nolan e seus produtores sabem muito bem que o
que a maioria dos fãs de Batman querem é “um pouco mais daquilo mesmo”, mas não
são todos. Se hoje em dia os fãs aceitam
que Batman leve uma surra do vilão e tenha que passar um tempo se recuperando
isto já é prova suficiente do amadurecimento mental (seja isto o que for) dessa
platéia.
Nolan fez na sua trilogia uma espécie de compressão
temática de tudo que compõe a mitologia Batman, utilizando um bom elenco fixo,
e atraindo participações memoráveis. Um bilionário recluso, cercado por uma
equipe high-tech de fazer inveja à de James Bond, decide combater o crime em
sua cidade, em parte por motivos freudianos (a morte dos pais, o medo de
morcegos). As contradições e os desvãos
escusos dessa decisão arrogantemente individual são explorados nestes três
filmes, em que Batman deixa de ser um “cruzado de capuz” acima do Bem e do Mal.
Ele se torna um livre atirador numa briga pesada que envolve a polícia, os
gênios-do-mal e os pequenos transtornos (como a Mulher Gato) que se atravessam
na sua frente. E isto deixa mais visíveis
as suas contradições como agente da lei. Bandido rico, bandido bem armado, mas
bandido.
Batman é rico, é impaciente com a incompetência do
Estado, e resolve criar um Estado-de-um-homem-só para salvar seus conterrâneos.
O vigilantismo dessa atitude o deixou permanentemente em xeque. Ele não é um
cruzado. É um bilionário que quer fazer administrar o mundo pelos seus próprios
critérios.
O sucesso dos filmes mais recentes de Super-Heróis
reflete dois processos. Por um lado, o
mundo real está ficando mais carnavalizado, mais decorativo, mais quadrinhesco;
pessoas de 50 anos ficariam perplexas com o modo como nos vestimos, nos
adornamos. Por outro lado, esse comércio forçado entre os dois mundos faz com
que alguns heróis comecem a perder a invulnerabilidade infantil de sua fase
“gibi” e passem a se contaminar de mundo real. Foi a novela gráfica de Frank
Miller, “The Dark Knight Returns” (1986), que iniciou este processo. Agora, com
os blockbusters do cinema, ele chega a um público maior. É uma lenta pororoca
entre as mitologias e fantasias que criamos a respeito de nós mesmos, e o modo
como elas deixam de ser fantasias consolatórias para serem fantasias neuróticas
em que toda a energia do problema original ressurge intacta e resiste até à
bomba atômica.
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