terça-feira, 24 de junho de 2008

424) Che Guevara e a arte de matar (29.7.2004)


(capa de Nadir, de Ricardo Soares)

Uma das maiores contradições de quem quer fazer o Bem é a aparente impossibilidade de fazer um Bem que seja puro, sem nenhuma dosezinha de Mal. Parece que não existe esta fórmula. Um ditado antigo diz: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.” Um jagunço sertanejo costumava dizer: “Eu detesto brigar. Quando um cara me chama pra briga eu mato ele bem rapidinho, só pra não ter que brigar.” Tudo isto me vem à mente ao ver o Diário da Motocicleta de Walter Salles e pensar no que terá transformado aquele rapaz idealista do filme no Che Guevara que liderou guerras de guerrilhas em Cuba e outros países, e que certamente matou muita gente pelo meio o caminho.

Será que não tem outro jeito? Será que contra um inimigo armado é obrigatório usar armas, será que contra um inimigo desleal é preciso ser desleal, será que contra um inimigo que não recua diante de nenhuma sordidez é preciso não recuar também diante de nenhuma sordidez? Só assim, em igualdade de condições, teremos alguma chance de derrotá-lo? Lembro de uma frase de Sartre em algum do volumes de Situations (cito de memória): “Quando enfrentamos um inimigo numa luta de vida ou morte, quando uma barreira de fogo o separa de nós, é preciso considerá-lo como a própria encarnação do Mal, senão não teremos chance de derrotá-lo”. Essa retórica guerrilheira foi largamente capitalizada pela direita, principalmente nos EUA, onde ser marxista era sinônimo de ser comedor-de-criancinhas.

Esta ética cruel, no entanto, não tem nada a ver com esquerda ou direita, com capitalismo ou comunismo. A guerra tem uma ética (ou anti-ética) própria que prescinde de ideologias. Todo ato intencional de matar é um assassinato, não importa se se trata de legítima defesa, de um carrasco executando um condenado em nome do Estado, ou de um soldado matando um inimigo em nome da Liberdade e da Democracia. Quem vai à guerra é para matar. É a ética do crime, a ética da briga de rua. Recordo a descrição impecável de Ricardo Soares em seu romance Nadir (Campina Grande, 1975): “Pirajibe sempre imaginara que um dia haveria de enfrentar o João Cláudio. Seu último sucesso, numa briga, remontava aos quinze anos. Depois é que aprendeu, em teoria, que, ao enfrentar um homem, deveria colocar o medo de matar ou de ferir gravemente de lado. Brigar pra valer. Nada de avaliar conseqüências, pois isto, já sendo um medo, derrotá-lo-ia de saída. Foi o que procurou pensar quando enfrentou João Cláudio. Sabia que ele era ágil, feroz e criminoso. Fez-se criminoso, feroz e ágil.”

Será mesmo preciso igualar-se ao inimigo, para ter alguma chance de derrotá-lo? Será que só é possível chegar a Poder e manter o Poder fazendo o jogo sujo do Poder? Brecht dizia que para mudar o mundo a gente não devia recusar-se nem mesmo a se aliar ao carrasco. O problema é que tem cada vez mais gente se aliando aos carrascos, e o mundo não muda nem a pau.

0423) As mãos sujas de Che Guevara (28.7.2004)



O lançamento do bom filme Diário da Motocicleta de Walter Salles tem trazido a figura de Che Guevara de volta às páginas dos jornais. Um artigo recente de Sean O´Hagan no The Observer faz uma reavaliação do mito do Che, ressaltando a ironia de um revolucionário radical ter se transformado em ídolo romântico. No filme recente do “Casseta & Planeta”, um personagem confunde Guevara com Raul Seixas, uma piada que ressalta a semelhança de destinos de dois personagens tão diferentes. Diz O´Hagan que a figura de Che hoje em dia lembra mais a de um herói romântico como Byron do que a de um soldado que matava a sangue frio; o filme de Salles reforça este lado dourado da lenda.

Parte deste mito se deve à famosa foto que Alberto Korda fez de Che, com o cabelo ao vento e a estrela na boina, quando este estava numa sacada de Havana, ouvindo Fidel Castro discursar, em 5 de março de 1960. Existe naquela foto um pouco do olhar de bezerro desmamado de Gael Garcia Bernal no Diário da Motocicleta (não, não estou ironizando o ator, que é bom); mas existe também o que O´Hagan chama de “absoluta implacabilidade”. Àquela altura, Guevara não era mais o rapaz ingênuo que saiu de moto para conhecer o mundo e acabou conhecendo as injustiças sociais da América Latina. Era o revolucionário que tinha seguido o conselho de Bertolt Brecht: “Mergulhe na lama, abrace o carrasco, mas mude o mundo, porque ele precisa ser mudado.”

Guevara matou muita gente com as próprias mãos, antes que elas fossem cortadas pelos soldados bolivianos que o executaram. O´Hagan cita um trecho de um discurso seu onde ele diz: “O que nos impulsiona é um ódio incessante ao nosso inimigo, que nos transforma em máquinas de matar, eficientes, seletivas, frias, violentas.” Não é este o tipo de retórica apreciado pelos rapazes e moças que compram posters ou camisetas com a imagem do ídolo. A frase que eles preferem (ainda bem) é a famosa “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” Uma frase que tenta nos garantir que é possível ser revolucionário e continuar sendo poeta, ser soldado e continuar sendo um namorado carinhoso, ser um líder e continuar sendo um sujeito legal.

Há outra frase de Che, menos conhecida, mas que tem a ver com a parte final de Diário da Motocicleta, quando ele trabalha como médico num hospital de leprosos no meio da selva. Diz ele: “Um dia o mundo compreenderá por que deixei de curar homens doentes e fui matar homens sãos.” É esse salto qualitativo (para usar o velho jargão marxista) que transformou aquele rapaz tímido, asmático, e que não sabia dançar, no soldado que fuzilou sem pena muita gente em Sierra Maestra, e que, na crise dos mísseis de Cuba, sugeriu que os mísseis atômicos fossem disparados contra os EUA. Che tinha um lado cruel, um lado sombrio, mas, como na famosa foto, as sombras servem apenas para realçar o seu lado luminoso.

0422) Refilmagens (27.7.2004)



Em geral, por puro e simples preconceito, eu me recuso a ver as refilmagens que o cinema americano faz de filmes estrangeiros. Besteira minha. Não existe coisa melhor do que isto para nos mostrar o que é a indústria cultura norte-americana, mas mostrar mesmo, pra valer, com a riqueza de detalhes de um quadro de Renoir e a frieza clínica de uma tomografia computadorizada. A maioria dessas refilmagens se deve a um gesto mental típico do produtor e comerciante hábil: o sujeito vê um concorrente fazendo algo de uma maneira que ele considera meio desajeitada, meio amadorística, e pensa de imediato: “Mas que cara burro. Eu posso fazer isso muito melhor do que ele, e ganhar muito mais grana.” Surgem então as refilmagens que querem açambarcar a idéia básica do filme original, e dar-lhe um tratamento que (acham eles) vai ser mais adequado ao gosto do público americano.

Surgem assim refilmagens como Kiss me goodbye de Robert Mulligan, que reaproveita a idéia de Dona Flor e seus Dois Maridos, ou Três solteirões e um bebê, baseado no sucesso francês Trois hommes et un couffin. Um dos exemplos mais conhecidos é o thriller francês La femme Nikita de Luc Besson, rapidamente refeito nos EUA com Bridget Fonda, sob o título Point of no return. Quando essas coisas se dão no interior do cinemão comercial, tudo bem, porque na verdade eu até hoje não distingo um hamburger do Bob´s de um do MacDonald´s. O problema é quando pegam os clássicos do cinema. Até hoje recusei-me a ver Breathless, a refilmagem do Acossado de Godard, como também Willie & Phil de Paul Mazursky, que não é outra coisa senão um “remake” do clássico Jules et Jim de Truffaut.

Em princípio, nada contra. Quando não se conhece o filme original, aceita-se a refilmagem com o mesmo prazer com que aceitei Vanilla Sky de Cameron Crowe (aquele em que Tom Cruise fica desfigurado num acidente de carro e daí em diante nem ele nem nós sabemos mais se o mundo é real ou não), porque não cheguei a ver Abre los Ojos, o original espanhol. O problema é quando se pega um filme de verdade, arranca-se dele a carne, a alma, a substância, e enfia-se ali uma trinca de atores em evidência, e um fio de enredo que só se parece com o original quando é resumido em duas ou três linhas numa resenha. Parece aqueles CDs em que a banda Mastruz Com Leite regrava “os grandes sucessos de Elba Ramalho”, com uma cantora imitando a voz de Elba.

Dias atrás, conversando com amigos, ficamos conjeturando como Hollywood adaptaria alguns clássicos do cinema. Alguém perguntou como seria La Strada de Fellini. Eu sugeri que o papel do brutamontes Zampanò, que fora de Anthony Quinn, seria entregue a Arnold Schwarzenegger; o da ingênua Gelsomina, que fora de Giulietta Masina, seria entregue a Julia Roberts; e o “Louco”, antes interpretado por Richard Basehart, seria agora Jim Carey. Vocês acham engraçado? Pois todo ano acontece algo assim.

0421) Navegar é preciso (25.7.2004)




É um texto famoso de Fernando Pessoa, desses que se incorporam à memória cultural de um povo. Cito de memória: “Navegadores antigos tinham um lema: navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim este lema, adaptando-o à minha vida e à minha missão no mundo: viver não é necessário, o que é necessário é criar.” 

Para a minha geração, a frase lembrada por Pessoa foi popularizada por Caetano Veloso em sua canção “Os argonautas”, no seu “disco branco” saído em 1969, logo após sua prisão pelo regime militar. 

Nenhum de nós tinha a menor idéia de quem fosse Fernando Pessoa. Era apenas um nome que Caetano tinha bradado, enfurecido, para a platéia que o vaiava durante sua interpretação de “É proibido proibir”, num daqueles festivais. Com a vaia, o cantor interrompeu o canto e disparou na direção da platéia um monólogo a plenos pulmões com uns dez minutos de duração, no qual, a certa altura, gritava: “Hoje não tem Fernando Pessoa!”

Fernando Pessoa? Quem diabo é esse cara? Corremos todos para as enciclopédias e descobrimos que era um “poeta modernista português, falecido em 1935”. Ficamos mais perplexos ainda. Oi... quer dizer que o Modernismo tinha chegado em Portugal?! Pensávamos que Portugal tinha estacionado em Camões e Gil Vicente. 

Aí saiu um compacto simples, tendo no lado B a faixa “Ambiente de festival”, com a vaia do teatro e a diatribe de Caetano, e no lado A a canção “É proibido proibir” (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão... e estava escrito no portão...”), na qual, a certa altura, brotava a voz surda e angustiada de Caetano recitando: “Esperai! Cai no areal e na hora adversa que Deus concede aos seus...” Eram os versos do poema “D. Sebastião”, na parte III de Mensagem, único livro publicado em vida por Fernando Pessoa.

Até hoje não sei o que diabo têm a ver Dom Sebastião e o slogan “É proibido proibir”; mas foi este talvez o primeiro link “pessoano” na obra de Caetano, retomado depois com “Os argonautas”: “O barco... meu coração não agüenta tanta tormenta, alegria, meu coração não contenta...” 

"Os Argonautas":
https://www.youtube.com/watch?v=Pi34gRiCt_Y 

Era um fado nostálgico em tom menor, ao som de bandolins, onde se misturavam temas como a navegação sem rumo e o vampirismo (“O barulho do meu dente em tua veia... o sangue, o charco...”). E o refrão, em tom maior ascendente, triunfante: “Navegar é preciso... Viver não é preciso!”

Só muitos anos depois é que vi comentários sobre a ambigüidade da frase. “Precisão” pode significar necessidade: navegar é necessário, viver não é necessário. Mas pode significar também exatidão, e aí teríamos: navegar é uma ciência exata, viver não o é. O que está muito mais de acordo com os argonautas da Escola de Sagres, com suas bússolas, astrolábios e portulanos. 

Naufrágios, calmarias e tempestades, no entanto, nos mostram a ingenuidade dessa distinção. Viver e navegar estão submetidos ao mesmo princípio de incerteza. Não nos esqueçamos de que para navegar é preciso viver, não é preciso?






0420) Muito livro, pouco leitor (24.7.2004)

(Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra)

Quando entro numa livraria, chega sinto um aperto no coração diante de tanta coisa boa que tem. Nunca os livros brasileiros foram tão bons, tão bem apresentados, tão bonitos e agradáveis de manusear (a Companhia das Letras foi uma editora que ajudou muito a subir este nível). Por outro lado... o livro anda muito caro. Nas livrarias do Rio, o que tem de livro por 35 ou 40 reais não é brincadeira, e não me refiro a livros em papel cuchê com ilustrações coloridas, é o livro comum mesmo, com 200 ou 300 páginas.

No Brasil, aumenta sem parar o número de editoras e o número de títulos lançados. Mas não aumenta o número de leitores, nem o de livrarias, nem o de bibliotecas. O que temos é livros cada vez melhores e mais caros, destinados a um público consumidor que é sempre o mesmo: uma elite minoritária, esclarecida, gente que tem dinheiro no bolso, que ama os livros, e que não faz questão de pagar mais caro por um livro cuja importância é capaz de reconhecer. Há dez anos, uma pessoa nessa faixa de consumo podia escolher todo mês (suponhamos) entre 10 e 20 novos títulos para decidir o que comprar. Hoje, essa mesma pessoa tem 30 ou 40 títulos para escolher.

O problema é que tantos novos livros e tantas novas editoras brigam ferozmente pelo mesmo público, um público que não cresce. Não é nem uma questão de preço, porque álbuns de luxo são um produto com vendagem garantida no Brasil. (É um pouco como no mercado imobiliário, onde os corretores dizem: “A coisa mais difícil hoje em dia é vender um quarto-e-sala, porque a população do quarto-e-sala não tem dinheiro. Mas apartamento com 4 suítes, quantos a gente oferecer a gente vende – tem gente comprando um pro filho, um pra nora, um pro neto, um pra alugar...” Isto é Brasil.) O problema é que mesmo quem pode comprar livros sem perguntar o preço só compra uma quantidade limitada, ou porque não tem tempo de ler, ou porque não quer abarrotar a casa. Não adianta aumentar a oferta: há um limite para a possibilidade de compra.

A solução é expandir o mercado – vender livros a outras pessoas, fora dessa elite. Mas como, se está todo mundo liso? Desde que me entendo de gente há tentativas de fazer livros populares. Os livros de bolso das Edições de Ouro estão aí até hoje, mas no meio do caminho tombaram coleções importantes como a “Catavento” da antiga Editora Globo (Porto Alegre), a BUP (Biblioteca Universal Popular) da Civilização Brasileira, o “Jornalivro” que nos anos 1970 era vendido em bancas, as numerosas coleções mirins com que a Brasiliense sacudiu o mercado nos anos 1980. Hoje temos coleções de livros de bolso voltadas principalmente para os clássicos da literatura (livros que são de domínio público) como a da Martin Claret, ou de clássicos contemporâneos que já foram tão reeditados que podem negociar direitos mais baratos, como nos livrinhos da L&PM vendidos nos aeroportos. Mas tudo ainda muito longe do poder aquisitivo do grosso da classe média.

0419) Privacidade zero (23.7.2004)



(capa do exemplar do Secretário de Justiça)

Os assinantes da revista Reason tiveram um susto no mês de junho ao receber seu exemplar pelo Correio. Ao pegar a revista, William Thompson, morador de Nova York, não acreditou. A chamada de capa, em grandes letras, dizia: “William Thompson, eles sabem onde você está!” E um subtítulo, em letras menores: “Os benefícios não-celebrados de uma nação transformada em banco de dados”. A ilustração mostrava uma foto aérea do quarteirão onde ele morava, com um círculo vermelho assinalando o seu prédio. “Fiquei famoso!” pensou William, e ligou para seu pai, Bob Thompson, que mora em Miami. O pai atendeu e foi logo dizendo: “Você não vai acreditar... Meu nome e a foto daqui de casa saíram na capa da Reason!”

“Reason” é uma dessas revistas liberais tipicamente norte-americanas, defensoras “da liberdade e das escolhas individuais em todas as área da atividade humana.” A revista se propôs a enviar, para cada um dos seus 40 mil assinantes, um exemplar com capa personalizada, contendo seu nome, a foto do lugar onde ele morava, e (na matéria interna) dados sobre sua vizinhança. (Os exemplares vendidos nas bancas saíram com uma capa padrão, não personalizada) Assim, cada assinante recebeu a “sua” revista, inclusive o todo-poderoso John Ashcroft, Secretário de Justiça dos EUA.

A façanha técnica foi resultado de uma aliança da revista com vários parceiros. O banco de dados foi fornecido pela Entremedia, uma empresa de marketing direto de San Bernardino (Califórnia), que baixou da Internet todas as fotos aéreas e os mapas, além dos dados sobre os assinantes e suas ruas, recolhidos do saite do Escritório de Recenseamento dos EUA. A empresa levou uma semana criando um arquivo individual para cada um dos assinantes. Armazenados em dois discos rígidos, os arquivos foram transferidos para o Laboratório de Comunicação da Cal Poly (California Polytechnic State University, em San Luis Obispo), onde os dados foram organizados, diagramados, e alimentados numa máquina Xeikon DCP 50D, fornecida pela Xeikon America. Cada capa foi impressa individualmente e depois reunida ao corpo da revista.

Segundo o editor-chefe da “Reason”, Nick Gillespie, a equipe levou seis meses reunindo dados e imprimindo cópias-teste antes de se lançar à empreitada. “Nenhuma das principais pessoas envolvidas trabalhava no mesmo escritório, nem sequer no mesmo fuso horário,” disse ele. E qual o objetivo disto tudo? A revista pretende mostrar ao cidadão comum que, em certa medida, já vivemos na civilização do “Big Brother” – o de George Orwell, por favor, não aquela bobagem da Rede Globo. No momento em que o Governo (norte-americano, no caso) quiser reunir uma quantidade massacrante de dados sobre qualquer cidadão, isto pode ser feito em questão de horas. “Isto levanta questões sobre privacidade,” admite Gillespie, “mas também torna nossa vida mais fácil e mais próspera. Talvez estejamos dando adeus ao conceito de privacidade, mas já era tempo.”