Circulou por estes dias nas redes sociais um documento
“fake” que fingia reproduzir uma carta endereçada a Albert Einstein, em 1907, pela
Universidade de Berna, negando sua candidatura a um Doutorado. Desconfiei um
pouco porque a carta (em suposto fac-símile) estava em inglês,
quando o mais natural era que estivesse em alemão, mas o que me interessou mesmo
foi o que ela dizia no último parágrafo:
“Mesmo tendo em conta que o senhor propõe uma interessante teoria no seu artigo publicado nos Annalen der Physik, achamos que as suas conclusões sobre a natureza da luz e a conexão fundamental entre o espaço e o tempo são um tanto radicais. De um modo geral, consideramos que suas suposições são mais de ordem artística do que de uma Física verdadeira."
O debate Ciências x Artes é uma hidra de mil cabeças. Sempre que ela espicha uma dessas cabeças no
meio da discussão eu me lembro do artigo clássico de C. P. Snow, “As Duas
Culturas” (1959), no qual ele lamenta a distância entre o que hoje em dia a
gente chama “a galera de Exatas e a galera de Humanas”. Snow lamenta que cada
uma dessas turmas entenda tão pouco do que faz a outra, e livra um pouco a cara
dos cientistas; segundo ele é mais fácil um cientista conhecer música, pintura
e literatura do que um artista conhecer ciências. (Aqui: http://www.newstatesman.com/cultural-capital/2013/01/c-p-snow-two-cultures)
Pra mim, a melhor formulação desse impasse é a de Arthur
C. Clarke:
“Uma pessoa que conheça tudo sobre as comédias de Aristófanes e nada sobre a Segunda Lei da Termodinâmica é tão inculta quanto aquela que dominou a teoria quântica mas pensa que Van Gogh pintou a Capela Sistina”.
Nas regiões mais elevadas do pensamento criativo, ali
onde ocorrem as grandes idéias que revolucionam todo o pensamento de uma época,
não há muita distinção entre o pensamento criador artístico e o pensamento
criador científico.
O insight
criativo, a associação inesperada de idéias, a ruptura conceitual, o momento do
Eureka!, tudo isso são resultados de
um longo e cansativo processo. É uma concentração mental alimentada por tensão
emocional e por um grande número de informações sendo manipuladas
incessantemente de todas as formas pelo raciocínio e pela memória associativa, até
que se dá o “clique”.
Isso é particularmente visível no caso de Einstein, que
como cientista era uma figura um tanto heterodoxa. Num depoimento a Jacques
Hadamard (citado em A Experiência
Matemática, David & Hersh, Ed. Francisco Alves, 1985, trad. João Bosco
Pitombeira), o cientista falou:
“As palavras ou a linguagem, como são escritas ou faladas, não parecem desempenhar qualquer papel em meus mecanismos de pensamento... as entidades físicas que parecem servir como elementos no pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claras que podem ser ‘voluntariamente’ reproduzidos e combinados... Os elementos mencionados acima são, em meu caso, visuais e alguns do tipo muscular. Palavras convencionais ou outros sinais devem ser procurados laboriosamente somente em um estágio secundário.” (Davis & Hersh, p. 347)
As intuições visuais e musculares de Einstein explicam suas
analogias através de imagens, capazes de deflagrar um curto-circuito conceitual
nas idéias aceites.
Ele sugeria: Se um indivíduo pudesse viajar pelo espaço
montado num raio de luz, e segurando diante de si um espelho, ele se veria
refletido nesse espelho? Einstein usa um detalhe ínfimo (o ir-e-vir da luz no
espaço de 1 metro, num contexto-limite) para questionar todo o fundamento de uma “lei” abstrata e mostrar que ela não tem um valor absoluto.
Por outro lado, o princípio relativístico de que à medida
que a velocidade aumenta os corpos materiais “se achatam” na direção para onde
se deslocam é uma intuição muscular que, no caso de Einstein (talvez pensando
na sensação de achatamento-por-aceleração que sofremos horizontalmente num trem
ou verticalmente num elevador), acabou fornecendo uma indicação utilizável. (Link:
https://en.wikipedia.org/wiki/Length_contraction).
(Mas é bom lembrar que são incontáveis os exemplos de analogias aparentemente
corretas mas que não levam a nada.)
O que os apócrifos burocratas de Berna chamam de
“suposições de ordem artística” é justamente um dos caminhos mais trilhados
pelos cientistas para atingirem, de um salto, verdades universais a que seria
talvez impossível chegar através do método pedestre (embora também legítimo) de
cálculos miúdos, onde são grandes as chances de andar em círculos, voltar ao
ponto de partida, pegar mil veredas que só levam a becos sem saída.
Matemáticos e cientistas em geral costumam louvar certas
formulações por sua “beleza estética” ou “elegância”, critérios que têm muito
pouco a ver com os volúveis conceitos de beleza e elegância no dia-a-dia, mas indicam
o quanto uma síntese é compacta, simples, coerente, e ao mesmo tempo capaz de
ser constantemente testada e funcionar.
Nem tudo que Einstein supôs era a melhor resposta para as
questões que ele abordava; muito da sua obra foi superado (até agora) pela
Física Quântica, cujo espírito probabilístico lhe desagradava. Mas as suas
intuições “artísticas” continuam valendo. Thomas S. Kuhn, no seu essencial A Estrutura das Revoluções Científicas (1962;
Ed. Perspectiva, 1982) lembra:
“Se um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado desde o início por pessoas práticas, que examinassem tão-somente sua habilidade relativa para resolver problemas, as ciências experimentariam muito poucas revoluções de importância. (...) Mesmo hoje a teoria geral de Einstein atrai adeptos principalmente por razões estéticas, atração essa que poucas pessoas estranhas à Matemática foram capazes de sentir.” (p. 198-199)