quinta-feira, 25 de junho de 2009

1129) “Crianças ameaçadas por rouxinol” (27.10.2006)


É um quadro de Max Ernst feito em 1924, no início do movimento surrealista parisiense. Joguem no Google Imagens seu título original, Deux enfants menacés par un rossignol e verão reproduções sofríveis que dão uma idéia geral da obra.

Sua estranheza começa pelo título, escrito no rodapé, seguido da assinatura de Ernst. Na imagem, o rouxinol não parece ameaçar ninguém, apenas sobrevoa a cena horizontalmente, numa atitude que só pareceria ameaçadora se fosse um avião de bombardeio.

O quadro mostra uma espécie de terreno baldio coberto de grama ou mato rasteiro, flanqueado por um longo muro. Ao fundo, vemos um arco-do-triunfo de cimento cinza, tendo em cima um vulto com o braço esquerdo erguido. Mais atrás, a silhueta de uma cúpula que lembra uma mesquita, tendo uma torre ao lado, ambas meio encobertas pela névoa.

Alguns objetos sólidos, pregados sobre o quadro, se projetam para fora dele. Do lado esquerdo, um portãozinho de madeira, com dobradiças e grades verticais. À direita, uma espécie de casinhola ou pombal, toda fechada, tendo pregada na parte da frente uma daquelas faquinhas arredondadas de passar manteiga. Um pouco acima da casinhola, uma maçaneta redonda de madeira, tendo ao centro um botão vermelho.

E quem são as duas crianças? Há quatro personagens humanos no quadro. Todos têm uma tonalidade cinza que contrasta com as cores fortes do restante, como se fossem personagens de um filme em preto-e-branco perdidos num filme a cores.

Há uma mulher caída no chão, como que desacordada ou morta. Perto dela, outra mulher, de cabelos desgrenhados, corre com uma faca na mão, sendo sobrevoada pelo rouxinol e olhando para ele. Em cima da casinhola, há um personagem masculino mas sem rosto, que corre levando nos braços uma criança de cabelos longos, e estende a mão na direção da maçaneta.

O quadro produz um efeito contraditório de perspectiva. A presença dos objetos colados nos faz considerar como parte do quadro os retângulos concêntricos da moldura. Mas o espaço da pintura (o Real-do-quadro) é rompido por estes objetos, que se tornam fantásticos porque não pertencem ao mundo bidimensional do quadro, por serem feitos de uma matéria maciça que não corresponde à das pessoas retratadas.

Outro efeito sutil de interpenetração de mundos é obtido por Ernst ao pintar trechos do céu sobre o último retângulo interno da moldura, fazendo-a participar do quadro (que é pintado sobre uma folha de madeira, não sobre tela).

Max Ernst é, para mim, o maior dos surrealistas. Sua obra tem temas em comum com as de Magritte e De Chirico, mas vai muito além de ambos. Em matéria de honestidade moral e de criatividade visual, é muito superior a Dali (que só o supera em técnica pictórica e em onirismo).

Mais que apenas pintar, Ernst justapõe materiais e signos de diferentes naturezas, e suas obras são as que chegam mais perto do ideal surrealista: reproduzir o funcionamento real da mente humana.







1128) Coincidências (26.10.2006)




Entre 1999 e 2000, o escritor Paul Auster coordenou um programa de rádio nos EUA onde ele lia colaborações enviadas pelos ouvintes. Ele pedia histórias verídicas, com a condição de que fossem histórias que desafiassem “nossas expectativas sobre o mundo”, episódios que revelassem “as forças misteriosas e desconhecidas que movem nossas vidas”. 

O livro resultante chama-se True Tales of American Life, e foi publicado no Brasil como Achei Que Meu Pai Fosse Deus (Companhia das Letras, 2005). É um livro para se ter por perto, abrir ao acaso, ler uma historieta e ficar pensando.

Fiz isto hoje e me deparei com “Land of the Lost”, enviado por Erica Hagen, da Califórnia. Diz ela que alguns anos antes de ser professora trabalhou como atriz, e apareceu num seriado de TV chamado “Land of the Lost”. No episódio em questão, a protagonista era uma garotinha, e Erica fazia o papel da mesma personagem, já adulta, que viajava de volta no Tempo e aparecia a si mesma para avisar que estava em perigo. 

Anos depois disto, ela resolveu fazer um passeio até Burma, na Malásia. Conheceu Rangun, Mandalay e outras cidades. Um dia, estava visitando um templo budista e entabulou conversa com um cavalheiro local, muito culto, que falava excelente inglês. Ele lhe serviu de cicerone no templo, explicando-lhe detalhes da cultura local.

Ao chegar a hora do almoço, o cavalheiro convidou Erica a almoçar em sua casa. Chegando lá, ela foi apresentada à família. E a neta do cavalheiro, uma menina de oito ou nove anos, declarou de repente: “Eu conheço você!” 

Foi lá dentro e trouxe um daqueles antigos aparelhinhos chamados TeleVisex, uma espécie de binóculos onde se colocam discos de papelão com fotos estereoscópicas. Um desses discos era sobre o seriado “Land of the Lost”, e lá estava Erica, numa das cenas do filme.

O dono da casa tinha trabalhado como marinheiro num navio mercante. De passagem por Nova York, comprou aquele aparelhinho para a neta. Anos depois, Erica resolve ir a Burma, vai ao mesmo templo que o avô da menina, os dois travam amizade, ele decide convidá-la para almoçar, ela aceita... O relato dela acaba assim: 

“O mais espantoso de tudo foi a reação daquela família. Não ficaram nem um pouco surpreendidos. Uma vez que tinham minha foto, acharam perfeitamente natural que o Destino acabasse por me trazer até a sua porta”.

Este assunto pode ser encarado de muitas maneiras, e escolherei uma. 

Existem dois tipos de pessoas. Para o primeiro tipo, os fatos, os acontecimentos da vida, são linhas divergentes, que partem do mesmo ponto central e se afastam sem parar. Estas pessoas acreditam, por exemplo, que o Universo foi criado com um Big Bang. Sob esta premissa geométrica, só é possível que duas linhas se cruzem se uma força externa, visível, interferir sobre elas. 

E o segundo tipo acredita (com Teilhard de Chardin) que “tudo que se eleva para as alturas converge para um mesmo ponto”.







1127) Bagdá e a favela (25.10.2006)



Eu não sei se é o Rio que está ficando parecido com o Iraque, ou o Iraque que está ficando parecido com o Rio. Os soldados americanos que patrulham Bagdá trabalham sempre em conjunto com policiais iraquianos. Em tese, eles estão ali para dar suporte à polícia iraquiana, porque têm mais experiência, armamento superior, etc. Os iraquianos são estagiários. Estão ali para aprender, na dura lei do batente, como devem se comportar, como devem agir para manter a Lei e a Ordem. Quando tiverem aprendido tudo e puderem impor a Lei e a Ordem com a eficiência dos Fuzileiros Navais, os americanos irão embora.

Sabe quando isto vai acontecer? No dia em que o Olaria for campeão brasileiro. Porque, segundo a imprensa americana, o que mais desespera os soldados estacionados no Iraque são a incompetência e a inapetência dos policiais iraquianos. Vejamos um exemplo. Um grupo de americanos e iraquianos foi patrulhar um bairro onde havia milícias terroristas. Os iraquianos foram encarregados de fechar as ruas, para que nenhum carro saísse, enquanto os americanos vasculhavam as casas. Horas depois, quando os americanos voltaram, souberam que todos os carros dos milicianos fugiram passando pelas barreiras.

Muitos dos soldados recrutados pelos iraquianos são xiitas, adversários históricos do regime sunita de Saddam Hussein. E eles fazem vista grossa às ações das milícias terroristas xiitas, das quais há pelo menos 23 já identificadas pelos americanos. Ou seja: quando se trata de prender ou revistar sunitas, eles aderem com entusiasmo. Para fazer o mesmo com os de sua comunidade, eles recorrem a todo tipo de subterfúgio. Revistam superficialmente, liberam todo mundo, fazem vista grossa.

É algo muito parecido com o que ocorre nos morros do Rio. A distância social entre o soldado da PM e o bandido é “desse tamanhinho”. Nasceram na mesma comunidade, passaram pelas mesmas dificuldades, convivem nos mesmos ambientes. São primos. Um arranjou emprego com o Governo. O outro, com o crime organizado. Na hora em que estão frente a frente sob as luzes da TV ou sob a vigilância dos superiores, o PM fala grosso, manda bala. Mas basta estarem a sós, vale a lei da boa vizinhança, que admite desde uma liberação rápida (“cai fora, aproveita, eu falo que tu fugiu”) até a cumplicidade explícita (“me dá o bagulho, eu levo na viatura e depois a gente racha o apurado”).

Hoje, nós somos os americanos em nosso próprio país. Nós, as “classes privilegiadas”, somos o país invasor. Ficamos tentando obrigar os invadidos a se policiarem e se prenderem uns aos outros, para que possamos viver tranquilos. Mas eles acham que existe algo de errado nessa guerra. Os soldados iraquianos (e os PMs cariocas) não necessariamente odeiam aqueles que estão lhes dando ordens. Mas de vez em quando pensam: “Vem cá – por que é que eu tenho de matar meu primo só pra que esse cara, que eu nunca vi mais gordo, possa dormir em paz?”

1126) O gol do gandula (24.10.2006)



O “gol do gandula” aconteceu no jogo entre Santacruzense e Atlético de Sorocaba, no campo do primeiro (interior de São Paulo). O time da casa, que perdia de 1x0, fez um ataque e a bola chutada para o gol saiu pela linha de fundo, batendo na rede pelo lado de fora. A rede amorteceu a bola e esta caiu no chão. De longe, deu impressão de gol, e foi justamente o que pensaram o bandeirinha (que correu para o centro de campo, indicando gol) e a juíza (era uma juíza), que confirmou. Quando começou o bate-boca – porque todos os jogadores próximos ao lance viram o que tinha de fato acontecido – o gandula (que torcia pelo time da casa, claro) chegou de mansinho e empurrou a bola com o pé para dentro do gol. A juíza chegou, ofegante, trazida pelos jogadores do Atlético, mas aí viu a bola no fundo da rede e deve ter dito: “Foi gol, sim, olha a bola aí”.

Quem quiser conferir, tem no YouTube: http://www.youtube.com/results?search_query=Santacruzense). Mas para encurtar a história, o gol valeu, o jogo acabou 1x1. E quando a bagunça foi a julgamento, o tribunal concordou, validou o gol, e manteve o resultado. Isto levanta a questão: alguém tem o direito de mexer no resultado de um jogo de futebol? Na justiça esportiva, o documento definitivo sobre o que aconteceu na partida é a “súmula”, um relatório redigido pelo juiz depois do jogo. O que está ali é lei, e fim de papo. Se na súmula a juíza disse que foi gol mesmo, não adianta a TV ter mostrado ao Brasil inteiro (a esta altura, ao mundo inteiro) que não foi.

Esta discussão se liga lateralmente à questão da interferência da Justiça comum na justiça esportiva. Se um time se sente prejudicado numa decisão dos tribunais esportivos e recorre à Justiça comum, é um Deus nos acuda. Aconteceu várias vezes, e o clube que pratica este sacrilégio arrisca-se a sofrer o pior dos exílios. Basta dizer que houve um ano em que não aconteceu Campeonato Brasileiro, porque a Justiça obrigou a participação do Brasiliense nesse campeonato, e o jeitinho brasileiro foi decretar que nesse ano não haveria Campeonato Brasileiro. Haveria uma “Copa João Havelange”, com os mesmos times que teoricamente iriam disputar o Campeonato Brasileiro – e o Brasiliense de fora, porque a sentença da Justiça não previa “Copa João Havelange” nenhuma.

O futebol é um gueto que não admite ingerências. Quem manda lá dentro são os caciques de sempre. Não querem interferência da Justiça comum; não querem interferência da televisão. Sabem que no dia em que permitirem que um video-tape cancele a decisão de um árbitro, estarão abrindo mão do próprio poder. Não adianta falar em modernização ou mostrar que em outros esportes (o tênis, p. ex.) já se usa o tira-teima eletrônico para decidir jogadas. O gueto jurídico e político do futebol dificilmente abrirá mão da estrutura que montou ao longo de cem anos. É um feudo, um coronelato mais lucrativo do que a indústria canavieira.

1125) Sobre Prestes e Vargas (22.10.2006)


(Luís Carlos Prestes, o "Cavaleiro da Esperança")

É impossível sabermos o que uma pessoa está pensando, ou o que pensou num instante qualquer da vida. Podemos apenas ouvir o que ela diz, observar o que ela faz, comparar com ditos e feitos anteriores, e fazer suposições. Funciona – e vivemos assim desde as cavernas. Pode não ser o ideal, mas dá para ir tocando o barco.

Nas entrevistas que deu ao longo da vida, Luís Carlos Prestes afirmava que apertou a mão de Getúlio Vargas porque no momento em que o Brasil precisava se colocar contra o Nazismo ele, Prestes, tinha que colocar os interesses da Pátria acima dos seus interesses pessoais, ou seja, da sua revolta pelo que Vargas tinha feito a Olga Benário. Esqueçamos agora a questão histórica e pessoal de Prestes (“Foi mesmo isto, ou ele tinha outras motivações?”) e vamos discutir o princípio geral. Suponhamos, por hipótese-de-trabalho, que Prestes falou a verdade, e de fato agiu daquele forma pelo motivo que alegou. Agiu certo ou errado?

Olga Benário fôra encarregada pela URSS de proteger Prestes a todo custo. Casou com ele, lutou ao seu lado na clandestinidade, salvou-lhe a vida algumas vezes. Por ironia, hoje é mais famosa entre os jovens do que ele, sendo celebrada em livro, filme, etc. Presa por Getúlio, grávida, foi entregue pelo ditador à polícia de Hitler, e depois de dar à luz morreu num campo de concentração. Em honra à sua memória (dizem) o viúvo jamais poderia cumprimentar publicamente e apoiar politicamente o ditador que a entregou para a morte. Mas suponhamos que o viúvo tenha achado mais importante, naquele momento, incentivar o rompimento de Vargas com o Eixo e o envio de tropas brasileiras para combater o nazi-fascismo. Isto não seria motivo suficiente para fazê-lo esquecer por um instante sua tragédia pessoal?

O Brasil é cheio de políticos que colocam, acima dos interesses do país (que, diga-se de passagem, eles são regiamente pagos para defender) as suas amizades pessoais, suas conveniências familiares, suas fidelidades de Partido ou de clã. Nossa República desconhece o conceito abstrato de Pátria, a não ser na hora de fazer discurso. O que nela existe de sentimentos nobres (lealdade, fidelidade, generosidade, etc.) se destina à parentela, aos amigos e aos aliados de ocasião. É por isto que o gesto de Prestes nos horroriza, porque achamos que seria moralmente mais nobre o ajuste de contas com o ditador, e a Pátria que se danasse.

Prestes nunca deu certo na política brasileira. Era um mito revolucionário, não uma raposa política como Lênin ou Trotsky. Um sujeito com uma idéia fixa, com um Ideal. Vi-o falar muitas vezes na TV: nunca o vi sorrir. Parecia-me um homem seco, inflexível, que impunha respeito mas não despertava afeto. Excelente como símbolo de um causa; devia ser péssimo no varejo-de-conchavos que são os corredores do Congresso. A política brasileira pode até ter superado os seus defeitos, mas bem que poderia ter herdado as suas qualidades.