Há um subgênero literário
que não tem nome, mas o nome seria “Histórias De Alteração Brusca Da Realidade
Por Causa De Um Ínfimo Detalhe”.
É o caso deste curto
romance ou novela de Emmanuel Carrère, O
bigode (“Le Moustache”, 1986; Companhia das Letras, 2011, trad. André
Telles).
A história começa com o
narrador, durante o banho, tendo o impulso de raspar o bigode que usa há anos.
Pergunta à esposa o que ela acha, ela responde da sala que pode ficar legal;
ele raspa o bigode. Enquanto isto, a esposa dá um pulo lá embaixo para resolver
alguma coisa.
O problema é que, na
volta, ela não faz nenhum comentário sobre o rosto raspado. O marido fica, com
a cara boboca de todo marido, esperando a opinião dela, e nada. É como se nada
tivesse mudado na cara dele.
Daí em diante é como se o
tecido do espaço-tempo tivesse se rasgado (como dizem os autores de ficção
científica) e nunca mais pudesse ser recomposto. Ninguém comenta a cra nova, ninguém
se lembra de que ele já teve bigode. Quanto mais ele recorre a comprovações
externas de sua antiga bigodice (testemunho de amigos, fotos, etc.) mais
encontra provas de que nunca teve bigode.
A alusão à FC não é
gratuita; Carrère é autor de um livro sobre Philip K. Dick (que não li ainda),
e o universo de PKD é um desses em que basta um detalhezinho não “bater” para
que o personagem se veja num mundo paralelo. O mundo está sempre por um triz.
Há num livro dele o exemplo
famoso de um cara cujo universo desmorona porque ele entra no banheiro de sua
casa, às escuras, procura o fio pendurado com a “pera” do interruptor de luz,
não acha, e descobre depois que no seu banheiro isso nunca existiu – o
interruptor é embutido na parede, sempre foi.
E agora?
“Tudo agora mesmo pode
estar por um segundo”, disse Gilberto Gil, referindo-se à fragilidade da vida.
(Qual de nós tem 100% de certeza de que estará vivo daqui a uma hora?) No presente caso, não se trata de um instantezinho
do tempo, mas de um objetozinho no espaço. O mundo é normal, rotineiro, seguro.
Aí um dia você pensa: "Vou tirar aquele quadro da parede”. Tira, e o mundo
começa a desmoronar, e nem botando o quadro de volta a gente é capaz de
consertar o estrago.
Pode-se pensar no
protagonista de História do Cerco de
Lisboa (1989) de José Saramago: ao revisar as provas de um livro de
História ele inclui a palavra “não” numa frase, fazendo com que os Cruzados NÃO
tivessem vindo em socorro do rei português contra os mouros. Com o livro
afirmando isto, a História muda. (Não li o romance – estou me baseando numa
sinopse.)
Faz lembrar também, num
nível mais metalinguístico, O Sumiço (“La
Disparition”) de Georges Perec – um mundo onde desaparece um personagem que
simboliza a letra E, e todo o resto desse mundo tem que se reorganizar, tapando
os buracos deixados pela ausência dessa letra.
A angústia do personagem
de O bigode é, em primeiro lugar, por
achar que a mulher ficou doida e que conseguiu criar uma gigantesca conspiração
paranóica para convencê-lo de que ele nunca teve bigode. Em segundo lugar, ele
começa a perceber que talvez seja ele quem está ficando doido – e sua vida
desmorona, sim, catastroficamente, transformando-o num pária em terra estrangeira.
É uma história que parte
do cotidiano mais besta para o absurdo mais inquietante, como certas narrativas
de David Lynch em que os personagens tomam atitudes irreparáveis e
desnecessárias. Fazem isso movidos por algo que não sabemos, porque vemos
apenas a fixidez dos seus olhos e a autodestruição desnecessária que executam
como resignados robôs.
De Carrère eu só tinha
lido O Adversário, a história de um
cara que dá um golpe financeiro “na moita” durante anos e acaba assassinando a
família inteira quando percebe que vai ser desmascarado. Tem em comum com O bigode essa aparente placidez de uma
existenciazinha pequeno-burguesa e francófona, toda nos conformes, que um belo
dia desmorona sem que ninguém (a família num caso, o protagonista no outro)
esperasse por aquilo.
É num certo sentido uma
história fantástica, porque mesmo admitindo que o personagem seja (ou tenha
ficado) louco certas “quebras” da realidade parecem indicar mesmo uma ruptura
philipkdickiana com o Real. A diferença é mais uma questão de estilo. Tanto o
protagonista de O Bigode quanto os de
Dick se interrogam constantamente, sem parar, sobre a natureza da realidade,
reavaliam e reinterpretam o tempo todo o que lhes acontece. Mas em Carrère isso
se dá num contexto organizadíssimo, cartesiano, sem as fraturas de pensamento e
de estrutura que Dick exibe em livros como Valis.
O livro de Carrère, alucinatório e apolíneo, parece um bilhete de suicida
escrito numa caligrafia impecável.
Um comentário:
Da mesma forma, em 1Q84,de Murakami, tudo muda quando a personagem principal desce de uma via expressa pela escada de emergência.
Uma pequena correção, é La Moustache. Abração.
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