domingo, 4 de novembro de 2018

4401) A escola Pulp Fiction (4.11.2018)



A gente fala dos gêneros literários usando uma espécie de jargão, mas esse jargão precisa ser aferido de vez em quando.

Pulp fiction é uma expressão que muita gente ainda associa apenas ao gênero policial, por causa do filme de Tarantino. Para um leitor de ficção científica é mais que óbvio que uma pulp fiction de FC existe, existiu; é inevitável.

Mais do que os gêneros, em si, há um aspecto da pulp fiction que eu acho importante, é o fato de ser em grande parte uma literatura feita de improviso. Não o improviso do repente musical ou poético, que se dá ao longo de segundos. Mas o improviso do romancista de folhetim do século 19, que toda semana tinha que entregar uma pilha de folhas manuscritas.

Não dava para ficar ajeitando, ficar corrigindo. O que era improvisado, ficava.

É um improviso parecido com os dos cordelistas nordestinos comentando fatos da guerra, da política ou dos esportes. Correndo atrás da notícia, uns. Correndo atrás de uma história para entregar no dia tal, para outros, e assim por diante.

No caso da pulp fiction, era um modo de produção profissional, americanamente metódico. Isaac Asimov orgulhava-se de escrever uma história inteira direto na máquina, sem rascunhos, criando à medida que datilografava, colocava “The End” no final, punha tudo num envelope e mandava para uma revista. “Só revisava,” disse ele a certa altura, “se todas as revistas conhecidas devolvessem aquela história. Só então compensava mexer nela.”

Tem alguns escritores da FC e do romance policial dos anos 1930-40-50 que são verdadeiras máquinas de escrever ambulantes, produzindo histórias em linha de montagem incessante, e de vez em quando acertando com uma história realmente bem bolada.

Max Brand, autor de tantos westerns, teria escrito publicado cerca de 45 milhões de palavras, segundo uma avaliação de Frank Gruber (em seu livro de memórias The Pulp Jungle, 1967). Quando ele concordou com esse cálculo, Gruber perguntou-lhe como conseguia. E ele:

– Você consegue escrever catorze páginas por dia?

Gruber diz que já tinha escrito muito mais do que aquilo, num dia só. Mas era só de vez em quando. E Max:

– Pois o x do problema é esse. Você tem que fazer catorze páginas todos os dias, sem exceção, não importa que dia seja. No fim de um ano inteiro, isso chegará perto de um milhão e meio de palavras.

(Os norte-americanos sempre comparam a extensão dos seus textos em termos de palavras, não de laudas ou páginas.  Isso já vem desde o tempo da máquina de escrever e do linotipo, não tem nada a ver com informática.)

Gruber, um escritor de thrillers competentes, diz a certa altura: “Em 1935 eu escrevi cinquenta e sete histórias e vendi cinquenta e cinco. Cerca de vinte das histórias tinham cinco mil palavras ou menos. As demais eram mais longas, de tal modo que a média de palavras entre elas era bem superior a cinco mil.”

Para ter uma idéia do que significam cinco mil palavras, pode-se comparar com este texto, que em sua última revisão está com [1.343] palavras no total.

Frank Gruber (1904-1969) publicou dezenas de títulos e foi uma das metralhadoras mais prolíficas de sua geração. Ele tem muitas séries policiais e de faroeste. A que mais li foi a dos livros sobre uma dupla de caras espertos que se metem em situações perigosas, Johnny Fletcher e Sam Cragg. Vários deles saíram pela Colecção Vampiro (Livros do Brasil, Lisboa).

Gruber diz em suas memórias:

Ao longo da minha vida profissional eu vendi umas quatrocentas histórias. A maior parte delas foi escrita entre os anos de 1934 e 1941. De 1941 em diante, escrevi apenas umas cinco ou seis histórias curtas, menores do que um romance.

Já publiquei cinquenta e três romances.

Eu preferiria ter que escrever vinte e quatro contos curtos do que escrever um romance – do ponto de vista da resistência física e mental necessárias para isso. Com uma história, você não está na companhia dela mais do que algumas horas, ou até minutos, até chegar ao fim da tarefa.

Um romance é um esforço interminável. Você pensa até cair exausto. Você escreve até estar a ponto de gritar. Você pára. Você descansa.  Mas você tem que voltar pra lá de novo. Tem que retomar os fios da narrativa, reacender o entusiasmo, recapturar o sentimento. (p.  176)

Mas Frank Gruber é um grão de areia a mais nessa praia infinita dos datilografadores compulsivos. Robert Silverberg (atualmente com 83 anos) conta um pouco dessa produção em série num ensaio (“Sounding Brass, Tinkling Cymbal”) incluído numa antologia importante, Hells Cartographers (ed. Brian Aldiss & Harry Harrison, 1975).

Diz Silverberg, referindo-se à sua fase inicial de contista precoce para os pulp magazines:

[Randall] Garrett me disse que os editores tinham mais probabilidade de comprar uma história do um autor com quem já tivessem batido algum papo do que de estranhos que faziam contato unicamente por via postal. E era verdade! Vendi cinco histórias em agosto de 1955, três em setembro, três em outubro, seis em novembro e nove em dezembro.

Algumas histórias vendem logo nas primeiras tentativas; outras percorrem às vezes o circuito completo de todas as possibilidades de publicação. Mas quando o escritor acerta a mão com o gosto, o repertório, as expectativas do público, as histórias começam a ser publicadas. Um ano depois da fase descrita acima, Silverberg já podia fazer uma contagem diferente:

Eu escrevia com espantosa rapidez, tendo vendido quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (inclusive uma serialização em três partes, escrita com Garrett, para publicar em Astounding SF), no mês seguinte.

“No fim de 1956,” avalia Silverberg, ou seja, quando ele contava 21 anos, “eu já contabilizava mais de um milhão de palavras publicadas.”  Antes dos 30 anos, já era um homem rico, e comprou a mansão onde tinha morado o prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia.

Ambos os sistemas conseguem funcionar: a literatura pitoresca e rápida, e a literatura introspectiva e lenta.

Alguns escritores, hoje célebres, trabalharam na indústria, viveram de literatura, e têm alturas literárias impressionantes, lado a lado com páginas da mais pedestre pulp fiction. É o caso de Raymond Chandler, Philip K. Dick, H. G. Wells, Stephen King e tantos outros. O próprio Edgar Poe era isso.

O autor profissional sabe que se vender a história que acabou de finalizar poderá pagar um dos aluguéis atrasados, encher a geladeira de comida, e aguardar o próximo cheque caído do céu editorial.

Sabe que o combinado no contrato foi: “Entrega texto final dia 30”, e será entregue o texto final no dia 30, nem que a vaca tussa.

Quem escreve assim toma decisões dramatúrgicas rápidas, e paga para ver.

Um autor é grande pelas qualidades excepcionais que tem, não é porque “não tem defeitos”. Em outras palavras: o que o torna um grande escritor não é propriamente o que ele faz “correto”, é o que ele faz de novo, de diferente, de pessoal. Em diferentes planos da criação artística se distingue o criador que apenas executa com perfeição, mas pouco dá de si mesmo. E o criador que rompe fronteiras, desobedece códigos, comete uma porção de erros, produz obras meio falhadas, mas no meio disso tudo abre possibilidades de que as mentes mais certinhas jamais suspeitariam.

Seria interessante um laboratório no futuro onde inteligências artificiais “canalizassem’ em forma de software os cacoetes estilísticos e as ponderações filosóficas, biológicas e ideológicas do defunto autor. James Joyce ressurgiria para reler e discutir o Ulisses, Proust para terminar Em Busca do Tempo Perdido, Dickens para revelar o segredo de Edwin Drood, Guimarães Rosa para checar cada sinal gráfico do seu épico sertanejo.

Se uma Inteligência Artificial começar a produzir textos de ficção, como parece que já estão produzindo, é provável que produza um poema ou esquete vanguardista, algum desses estilos onde quem manda é o freguês, cada um interpreta como quiser. Duvido que o computador consiga produzir uma pulp fiction que se possa tomar como um capítulo perdido das Espadas de Lankhmar ou das aventuras do Sombra.