O exemplo de Orwell me trouxe à mente o de uma obra que
na minha lembrança está sempre pertinho da obra dele, e que é o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley,
cujo título faz uma citação de A
Tempestade, de Shakespeare:
“Ó, maravilha! Que criaturas adoráveis estão aqui! Como é belo o gênero humano! Ó admirável mundo novo que possui gente assim!”(William Shakespeare, A Tempestade, Ato V)
Huxley era um grande escritor também, e estava muito em voga na época de minha adolescência, via Editora Civilização Brasileira. Além do Admirável Mundo Novo, me marcaram muito O Gênio e a Deusa, O Macaco e a Essência e principalmente o díptico As Portas da Percepção / O Céu e o Inferno, livro que me fascinou desde pequeno por causa da ilustração da capa, que acabou me inspirando uma das minhas pragas favoritas quando estou com raiva de alguém: “Quero que ele vá pro inferno de cabeça pra baixo!”.
Huxley (nascido em 1894) foi professor de Orwell (nascido em 1903) a certa altura da vida, e os dois se respeitavam. Quando 1984 fez sucesso, o autor mandou enviar ao ex-mestre uma cópia do livro, a que Huxley respondeu com uma carta elogiosa e cordial. Na mesma carta, contudo, ele reafirmava (o ano era 1949) um princípio já declarado em seu próprio livro: que as ditaduras do futuro seriam menos baseadas na repressão policial e na tortura, e mais dependentes da propaganda, das drogas e de outras formas de controle. Ou seja, é mais prático, ao invés de oprimir uma população infeliz, dar a essa população uma ilusão qualquer de felicidade, e fazer com que ela colabore com o regime voluntariamente.
Na próxima geração, acredito que os governantes mundiais irão descobrir que o condicionamento ainda na infância e a narco-hipnose [combinação do uso de drogas e hipnose] são mais eficazes, como instrumento de exercício do poder, do que cassetetes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser plenamente satisfeita ao se fazer com que as pessoas amem a sua escravidão; é melhor do que chicoteá-las e dar-lhes pontapés para que obedeçam. (trad. BT)
Não me refiro a traduções literais (The Time Machine será sempre A
Máquina do Tempo, acho, e The Glass
Key será sempre A Chave de Vidro).
Mas às fórmulas que, no idioma de chegada, envolvem uma certa maneira criativa
de expressão, que acaba se impondo, e eu diria até acabam intimidando um
tradutor mais cauteloso.
Penso num dos mais célebres entre nós, O Morro dos Ventos Uivantes, que é o
nome quase obrigatório de todas as traduções do Wuthering Heights (1847) de Emily Brontë, com variações para o
singular, em algumas edições.
Nos EUA, o clássico de Marcel Proust À La
Recherche du Temps Perdu tem duas traduções vigentes: In Search of Lost Time, mais próxima do original, e Remembrance of Things Past, que para
muitos leitores de lá ficou indissoluvelmente ligado à experiência da leitura e
da lembrança.
Todo este cerca-lourenço até aqui é para chegar no título
do livro de Huxley, que é Brave New World
e no Brasil tornou-se, com toda razão, Admirável
Mundo Novo. Em algum ponto do meu percurso eu já quis checar essa
correspondência, para saber se uma eventual tradução Bravo Mundo Novo seria correta – porque sempre me acostumei a ver
“bravo” como mero sinônimo de “corajoso”, ou, em sua versão paraibana “brabo”,
sinônimo de “enraivecido”.
Mas de fato, o Dicionário
Houaiss assinala que bravo, em
sua acepção 11, corresponde a “digno de
admiração; notável”.
Caso alguém optasse por essa maneira de traduzir, estaria
errado? Certo que não. Mas logo a Falange Lacradora se ergueria empunhando
chuços e trinchetes, bradando que o tradutor foi preguiçoso e usou um "falso
cognato". Estariam errados? Totalmente, não, porque em última análise estariam falando em nome de
uma tradução que é consagrada pelo tempo e pela memória, além de ser um
octossílabo perfeito e (penso eu) uma expressão mais clara e eloquente do que a
nova forma proposta.
(Aldous Huxley)
(Aldous Huxley)