Volta e meia estou retornando, aqui, ao tema do
“Microconto” ou “Miniconto” – o conto curtíssimo. Esse conceito se desdobra em
inúmeras fórmulas relativas a sua extensão, mas no frigir dos ovos todos têm
esse aspecto essencial em comum: são curtíssimos.
(O conceito de “curtíssimo”, é claro, é tão subjetivo
quanto o de “bom”. Cada pessoa traça sua linha-limite onde lhe convém.)
Existem contos de menos de 100 palavras; contos de 100
caracteres; contos de 6 palavras; contos de 6 linhas... Qualquer fórmula nova é
geralmente bem vinda. Note-se que muitos desses textos são produzidos num
regime de desafio – revistas, jornais, websaites etc. lançam a provocação, e os
leitores chovem com suas respostas. É um teste, de fato. Um teste de contenção,
de síntese, de foco.
Não há, portanto, muita necessidade de “definir o que é mini/microconto”,
até porque ninguém tem uma definição científica do que é conto. Digamos, então,
que um conto é uma história curta, e que um mini/microconto é uma história
curtíssima. O resto é como nas Casas José Araújo: “quem manda é o freguês”.
Quem lida com esse tipo de texto derrapa facilmente na
comodidade de achar que basta escrever uma frase para que ela seja automaticamente
um miniconto. Quer ver? Vou inventar agora, de improviso, três minicontos desse
tipo.
1)
Abriu
a janela e constatou, em pânico, que o Brasil existia mesmo.
2)
Pousaram
no asteróide, e extraíram minérios valiosos até morrerem de fome.
3)
Reencontrar
você só serve para confirmar minhas suspeitas.
Tentarei teorizar estes exemplos banais, mas
característicos.
No primeiro, temos apenas a descrição de uma ação física
e uma reação psicológica, um fato com duração de alguns segundos (a “abrição”
da janela). Não há enredo, história, narrativa – há um flash único. Isto ficou
mais parecido com um cartum de Jaguar do
que com um filme. Eu posso até chamar isso de miniconto, mas sem muito
entusiasmo; para mim, chamá-lo de “cartum verbal” ou de mera piada me parece
mais adequado.
Por que? Porque, mais do que no conto comum, no miniconto
o desafio é contar uma história. Frase,
qualquer um escreve. Contar uma história numa frase é outro patamar. É este o
grande desafio, a rede na quadra de tênis. Sem ela não tem graça.
E vamos ao exemplo 2. Aqui, sim. Por bobo que seja, há um
fio de história, há um mínimo de narrativa, uma sequência temporal de três
fatos em que cada um é resultado dos anteriores, o que é um requisito básico de
uma narrativa literária. O texto ilustra concretamente (e isto foi involuntário
de minha parte, foi instintivo) a famosa estrutura “começo – meio – fim”.
Em poucas frases ficou clara a ambientação, o gênero
literário (ficção científica), tudo sem muito esforço. Há uma leve tintura de
final-surpresa, de desfecho imprevisto, o que não é fácil de obter em tão curto
espaço – é a famosa arte de “dar um drible em cima de um lenço”. Com alguma boa
vontade, posso considerar isso um miniconto.
O terceiro exemplo não é um conto nem aqui nem na China.
(Claro que qualquer pessoa pode chamá-lo de conto; também pode chamar de avestruz,
de sanfona, do escambau. “Chamar” é grátis.) É uma frase apenas, uma reflexão
silenciosa, um fragmento de idéia. Relendo agora, me ocorre que seria um
pouquinho mais narrativo se fosse em forma de fala, de diálogo:
-- Olha, reencontrar você só serve para confirmar minhas suspeitas...
Isto nos permitiria fantasiar visualmente o reencontro e
a conversa entre dois ex-cônjuges, dois ex-sócios, etc.
Já ministrei oficinas sobre “O Conto Narrativo” como uma
forma de enfatizar a existência, na ficção, de uma gradação que tem num extremo
a Narração Pura (se é que isto existe) e no extremo oposto a Reflexão Pura
(idem). Toda (!) narrativa mistura as duas coisas: a Narração, ou os fatos
físicos que acontecem, e a Reflexão, os comentários íntimos dos personagens (ou
do autor).
Clarice Lispector é extraordinária contista pela sua
habilidade em inventar e misturar todas as nuances possíveis desses dois
elementos, em praticamente tudo que escreve. Falei “habilidade” mas o reverso
obrigatório dessa moeda é “espontaneidade”, que ela usa em igual medida. Acho
que ela não escreve desse jeito porque estudou as variadas correntes teóricas;
escreve (acredito eu) porque é desse jeito que ela pensa.
Não é uma autora intelectual, dada a planejar estruturas
complexas. Acho que era uma intuitiva que lia muito. O que produz lhe sai num
jorro de imprevistos, de repentes, de infrações às regras e geralmente levamos
algum tempo para admitir que uma parte da cabeça dela mantinha tudo marromeno no lugar certo, de forma
satisfatória, e enriquecedora, para o leitor.
Tudo isso constitui, principalmente quando reduzido às
dimensões exíguas do mini e do micro, uma arte de malabarismo, difícil de
praticar em duas ou três páginas, e ainda mais em duas ou três linhas – ou em
qualquer outra minifórmula.
a)
Tempo.
Inesperadamente, inventei uma máquina do
(Alan Moore)
Este é um clássico. O autor sugere um engraçado loop acidental com grande economia de
meios. Há inúmeras tirinhas de HQ e cartuns usando truques parecidos.
b)
Um
homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se
suicida.
(Anton Tchecov)
Eu já conhecia este, mas não como microconto, e sim como
a semente de um desafio lançado pelo autor russo: desenvolver essa idéia de
forma plausível. Pode não parecer, mas grandes contos da história da literatura
surgiram de provocações desse tipo entre amigos escritores: “Duvido você ser
capaz de escrever um conto onde acontece, etc etc etc”.
c)
A
mulher que amei se transformou em fantasma. Eu sou o lugar das aparições.
(Juan José Arreola)
O mexicano Arreola é um dos meus contistas-obscuros
favoritos; aconselho sua coletânea clássica Confabulário
Total, publicada no Brasil tempos atrás (há edições pela Edinova e pela
Arte & Letra). Seu conto é curioso
porque se encrava, sem muito esforço, naquilo que é chamado “o fantástico
todoroviano”, a partir das teorizações de Tzvetan Todorov: uma história que
pode ser classificada tanto como um evento sobrenatural quanto como um evento
meramente psicológico.
d)
Pegou
o chapéu, embrulhou o sol, então nunca mais amanheceu.
(Menalton Braff)
Existe narração aí. Um gesto corriqueiro que redunda num
fato fantástico, descomunal, contado com a singeleza de um Ray Bradbury ou
Mario Quintava. (Ou então, dado o caráter fortemente visual deste exemplo, como
um quadro de Marc Chagall ou um cartum de Juarez Machado.)
e)
Eu
ainda faço café para dois.
(Zak Nelson)
Para ninguém pensar que eu sou radical, eis um exemplo
onde o vetor narrativo é mínimo, tudo se reduz a um comentário singelo, mas o
modo contido e reflexivo com que ele é feito nos induz a supor um passado,
supor um acontecimento qualquer (uma morte? uma separação?) e isto estica, de
certa forma, o elástico narrativo.
“Narração” é isso: um elástico que se estica, cuja tensão
aumenta à medida que o texto avança, e num texto literário a certa altura
estamos lidando com vários “elásticos” simultâneos, e é da tensão e relaxamento
de cada um deles que advém o prazer da leitura.