sexta-feira, 30 de março de 2018

4330) Os contos de Orsinia (30.3.2018)



Ursula K. Le Guin não é apenas uma das grandes autoras de ficção científica e da fantasia em nosso tempo. Sua obra inclui também um subconjunto de histórias mainstream a respeito de um reino imaginário na Europa Central, Orsinia.

Li agora os seus Orsinian Tales (1976), onze histórias ambientadas, entre os séculos 12 e 20, nesse país fictício.

Orsinia é o que no jargão da crítica se chama de “uma Ruritânia”, aludindo ao país imaginário onde transcorre o clássico de aventuras O Prisioneiro de Zenda (1894) de Anthony Hope.

São aqueles países de certa ascendência eslava, cheios de palácios e igrejas, arquiduques, uma pequena nobreza com poucas posses e muito passado, um certo verniz aristocrático e cortesão. Uma visualização magnífica desse ambiente pôde ser vista no filme O Grande Hotel Budapeste (2014) de Wes Anderson.

O país de Ursula (daí o nome “Orsinia”) é menos rico e exuberante que as ruritânias alheias. Os contos variam de época para época de modo que a Orsinia de 1938 (“And Die Musik”) tem um senso de urgência, de febre, de cataclismo pendente, enquanto a de 1962 (“A week in the country”) caminha para um clima asfixiante de Guerra Fria, com subversivos e agentes da polícia política.

A nobreza galante e arrebatada de 1640 está em “The Lady of Moge”, a história do amor irrealizado entre um casal de jovens de famílias nobres ao longo das décadas. Já em 1910, a ação sai da capital Krasnoy e vai para a região árida das pedreiras, onde os operários ficam cegos ou com os pulmões pedrados pela poeira (“Brothers and Sisters”).

E por aí vai. Le Guin afirma que esta série nasceu da contradição entre sua admiração pela Europa e o fato de nunca ter ido lá, o que a impedia de escrever à vontade. Decidiu, portanto, imaginar um país da Europa só seu, para que ninguém pudesse vir cobrar-lhe precisão histórica.

Um país sem importância, na Europa Central. Um daqueles que tinham sido arrasados por Hitler, e que Stálin estava agora arrasando. (A invasão soviética na Tchecoslováquia, em 1947-48, tinha sido o primeiro acontecimento mundial a despertar em mim a consciência política.) Uma terra não muito distante da Tchecoslováquia, ou da Polônia, mas não vamos nos preocupar muito com fronteiras. Não seria uma daquelas nações parcialmente islamizadas, e sim algo mais ocidental... Como a Romênia, talvez, com uma língua de influência eslava, mas descendente do latim? Arrá!...


Num livro como este, Ursula Le Guin não parece a escritora capaz de criar dragões antiqüíssimos e sábios, ou aparelhos transmissores de mensagens mais rápidas do que a luz. É uma contista de estilo já maduro trabalhando num contexto europeu, de época, enriquecido pela prosa elegante e pela finura psicológica.

Não lembra seus contemporâneos Philip K. Dick ou Robert Sheckley. Nos contos de Orsinia, sua prosa lembra a de Karen Blixen (“Isak Dinesen”): menos a das complexas noveletas de Sete Contos Góticos (1934), mas principalmente a dos contos mais curtos de Last Tales (1957); ou talvez a A. S. Byatt de Possessão (1990) e de Angels & Insects (1992).

Sua narrativa mainstream com um pé no fantástico prefigura também a linguagem precisa e a rica imaginação de Karen Joy Fowler (Sarah Canary, 1991; The Jane Austen Book Club, 2004) ou Elizabeth Hand (Saffron and Brimstone, 2006). Mas estas já são leitoras de Le Guin, com um pouco de discípulas e um tanto de sucessoras.

Digamos que este livro estivesse assinado por um tal U. K. Le Guin de quem eu nunca tivesse ouvido falar, mas imaginasse, meio no piloto automático, que se tratava de um Ulysses K. Le Guin. Em que momento da leitura eu poderia imaginar que o autor era mulher? Certamente não no primeiro conto, “The Fountains”, conto curto de um personagem só, um homem que passa por uma epifania existencial enquanto caminha por uma cidade.

Idem no segundo, “The Barrow”, ambientado na Idade Média, e que se passa numa noite, na propriedade de um pequeno senhor feudal em 1150. Há mulheres (há um parto) como pano de fundo, mas a essência do conto é a convivência (o confronto, a disputa de terreno) entre o Deus cristão e os deuses bebedores de sangue que um dia mandaram ali.

A desconfiança talvez surgisse aos poucos no decorrer das histórias seguintes, porque há pelo menos cinco histórias que têm o casamento como tema central. São rapazes e moças que se encontram, se cortejam, se afastam, se entendem, se desentendem, mas aos poucos vão convergindo para o altar. (Orsinia é um antigo reino cristão, em cuja capital avulta a Catedral de Santa Teodora, batizada em homenagem à mãe da autora.)

Estilo masculino e estilo feminino não tem muito a ver com “raciocínio” versus “sensibilidade”, como tantas vezes se coloca. Homens e mulheres que escrevem compartilham igualmente dos dois.

Talvez seja mais uma questão dos temas e subtemas escolhidos: o autor prefere estar escrevendo sobre o quê?

Alguma pista pode ser encontrada no modo como um escritor (digamos um autor sob pseudônimo, num manuscrito inédito inscrito num concurso) trata as tarefas domésticas tradicionalmente atribuídas à mulher: varrer, lavar roupa, lavar pratos, remendar roupas, limpar quintal, banhar crianças.

É mais fácil encontrar uma mulher que escreva sobre tiroteios, espancamentos, batalhas galácticas ou façanhas militares do que um homem que escreva (com certa propriedade) sobre os temas acima.








terça-feira, 27 de março de 2018

4329) Geraldo Vandré e o reino que não tem rei (27.3.2018)




O compositor Geraldo Vandré tem voltado a visitar a Paraíba. Desde o Fest Aruanda de cinema até a realização, dias atrás, de um concerto onde fez uma participação especial. O espetáculo teve a pianista Beatriz Malnic, o violonista Alquimides Daera, a Orquestra Sinfônica e o Coro Sinfônico da Paraíba, com arranjos de Jorge Ribbas.

A imprensa tem falado nele o tempo todo. Engraçado que é sempre descrito como “o compositor de ‘Caminhando’”, e somente uma ou outra vez alguém se lembra de algum outro título, como “Disparada”.

Nada contra “Caminhando”, que já devo ter cantado mil vezes em mesas de bar, mas a obra de Vandré, desconhecida pela maioria dos mais jovens, vai muito além deste arrebatador hino de protesto. Vi uma vez numa revista a foto de Vandré na histórica apresentação no Maracanãzinho, com a legenda: “Ele compôs a ‘Marselhesa’ e não sabia”. Foi mais ou menos isso.


Na minha vida de espectador à distância, só vi dois cantores fazerem o Maracanãzinho inteiro cantar junto, em delírio, e saíram do palco consagrados: Geraldo Vandré e Wilson Simonal. É, amigos, a glória é o namoro entre a mariposa e a lamparina.

Vandré era um poeta visceralmente político (me refiro àquela época), sempre foi de esquerda mas, curiosamente, não era este o lado que me seduzia em sua obra. (Falo por mim, apenas.) Era o lado épico, cavalariano, de um Sertão que ele raramente nomeava mas que estava presente nos arroubos de uma coragem-de-arma-na-mão, na batalha do samurai solitário contra um inimigo dez vezes mais numeroso.

Talvez tenha sido o fato de que conheci Vandré acompanhando a vitória de “Disparada” naquele festival da Record, onde seus versos (e a espantosa melodia do esquecido Théo de Barros) arrancavam todo mundo da cadeira, para bater com a cabeça no teto e cair aplaudindo de pé.


Vandré encarnou naquele momento o espírito cavaleiro, embandeirado, ético e épico que Ariano Suassuna clamava como sendo uma das vertentes mais fortes de nossa cultura simbólico-literária, desde José de Alencar até Guimarães Rosa. O reino que não tem rei.

Julgar a obra de Vandré por “Caminhando” é como julgar a de Chico Buarque por “Apesar de Você” e mais nada. (Vou logo avisando que as considero duas ótimas músicas, independente dos defeitos que tenham.)

Cobra-se às vezes de Vandré, aos 82 anos, a repetição dos slogans que bradava aos 30. Ele não quer, e tem todo direito. Se quisesse bradá-los, teria o mesmíssimo direito. Neste caso, estaria sendo criticado pela turma do outro lado.

O que percebo, principalmente nos sessentões da minha geração, que estavam despertando para a discussão política na época em que Vandré tocava em todas as rádios, é que Vandré foi para muitos destes uma espécie de guia. Tinham-no como um porta-voz, um profeta, um líder. Quando ele abdicou dessas funções, deixou órfãos muitos que o seguiam.

Para muito jovens de hoje, a obra de Geraldo Vandré se resume a “Caminhando”, o que é uma grande injustiça para com um compositor rico, variado, que explorou numerosas formas musicais, numerosos territórios poéticos.

Mesmo os que endeusam “Caminhando” por ser uma canção de protesto estariam muito mais bem servidos se parassem para ouvir com atenção suas verdadeiras canções de protesto, que são canções brabas, daquelas de riscar faca no cimento e chamar pra briga.

Muito mais protesto do que em “Caminhando” existe em “Aroeira”:

Vim de longe, vou mais longe,
quem tem fé vai me esperar;
escrevendo numa conta
pra junto a gente cobrar
num dia que já vem vindo
que este mundo vai virar.

Noite e dia vem de longe
branco e preto a trabalhar;
e o dono senhor de tudo
sentado mandando dar,
e a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar.

Marinheiro, marinheiro,
quero ver você no mar!
Eu também sou marinheiro
eu também sei governar!
Madeira de dar em doido
vai descer até quebrar:
é a volta do cipó de aroeira
no lombo de quem mandou dar.

Era assim Geraldo Vandré cantando ao vivo:


Curiosamente, não foi essa canção belicosa e desafiadora que fez a fama protestadora de Vandré, e sim o hino singelo em dois acordes com que ele levantou o Maracanãzinho:

Pelas ruas marchando indecisos cordões
ainda fazem da flor seu mais forte refrão
e acreditam nas flores vencendo o canhão.

É uma canção de pacifismo hippie, que hoje me lembra, com certa nostalgia, as matérias da TV sobre as manifestações florais e psicodélicas da Califórnia dos anos 1960.

“Caminhando” consagrou Vandré como o Guru do Protesto.  A canção ficou um pouco como aquele jogador obscuro de um time cheio de craques a quem cabe fazer o gol do título. Craque mesmo, em termos de canção de protesto, era “Cantiga Brava” a parceria entre Vandré e Guimarães Rosa, da trilha sonora de A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1966) de Roberto Santos:




Uma letra como essa em plena ditadura militar equivalia a um passaporte para o camburão. Foi com versos vigorosos assim que Vandré incrementou o seu cacife político diante de uma juventude politizada e insatisfeita, ansiosa por um guia, por alguém que colocasse em sua boca as palavras que eles não acertavam a juntar sozinhos. Quando “Caminhando” soou no Maracanãzinho, foi a gota dágua. O salto qualitativo, como dizíamos.

Mas quando aos 18 anos li essa letra pela primeira vez, pensei: “Ôxe, é só isso?”  Contrapor flores a canhões, e rimar um troço em “ão” do começo ao fim me pareciam recursos fraquinhos, e não mudei de opinião até hoje.  “Caminhando” é uma má canção, por causa disso? De jeito nenhum.

Quando uma canção fica, quando se encrava no zero-cartesiano de seu momento histórico, ninguém a arranca mais. A canção entrou no mesmo vagão de “Blowin’ in the Wind” de Bob Dylan, de “Le Déserteur” de Boris Vian, de “Vozes da Seca” de Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Resume uma época e um estado de espírito, e contam-se nos dedos os compositores capazes disto.

Ninguém pergunta hoje em dia pelas canções de amor de Vandré, que são lindíssimas, além de serem (como a crítica musical registrou na época) canções de amor graves, profundas, sem o lirismo açucarado de tantas coisas (mesmo boas) da Bossa Nova, sem os diminutivos fáceis, sem a bonequização da mulher amada.

“Quem Quiser Encontrar o Amor”:


As canções de amor de Vandré são introspectivas, sempre pisando na risca entre a paixão e o desespero; um belo contraponto aos versos aconchegantes e juvenis de tantas belas canções daquele tempo.

“Pequeno Concerto Que Virou Canção”:


Acho sempre um erro reduzir a obra ampla e variada de um artista ao seu maior sucesso nas praças, ou à música “que ganhou o festival”, ou a uma eventual marselhesa

A melhor maneira de homenagear um artista de que gostamos é tentar conhecer o máximo possível de suas obras, comparar umas com as outras, permitir que elas se iluminem e se questionem entre si, entender por que motivo o cara que foi capaz de fazer a obra “A” fez também a obra “B” que não tem nada a ver com ela... Um artista não é uma cigarra-de-porta que emite sempre o mesmo som quando é pressionada. Cada manifestação criativa de um artista é diferente das anteriores.

Cada estrela é importante em si. Mas se é o artista que queremos conhecer, temos que olhar os desenhos possíveis de constelação que se pode traçar entre as obras diferentes, variadas, contraditórias, até mesmo antagônicas, que ele criou. E “o artista” nunca é simplesmente aquela pessoa de carne e osso. O artista é uma terceira coisa, é o resultado do confronto entre aquela pessoa e o tempo que lhe foi dado viver sobre a Terra.

E aqui, na TV Câmara de João Pessoa, a entrevista que Vandré concedeu a André Cananéa, e que foi ao ar nesta segunda-feira, dia 26 de março. Tem “canjas” do italiano Sérgio Endrigo e de Joan Baez cantando “Caminhando”; e Vandré recita os versos que fez para a bandeira da Paraíba.









sexta-feira, 23 de março de 2018

4328) "A Curiosidade" de Alastair Reid (23.3.2018)



(Alastair Reid, 1926-2014)

O escritor Jay Parini conta que certa vez, quando era bem jovem, ficou amigo do poeta e jornalista escocês Alastair Reid, que se ofereceu para comentar um poema dele. Parini conta:

Timidamente, coloquei meu poema na mesa da cozinha dele, entre potes de geléia e canecas de chá, e me sentei. Não trocamos nem uma palavra, enquanto ele riscava palavras e adicionava outras, com um lápis afiado. Mudou a posição de algumas estrofes. Um novo título foi aplicado ao poema, seguido de um ponto de interrogação. “Vá para casa e revise,” disse ele. “Volte amanhã com uma versão nova”.

Alguns poetas pedem conselho, opinião, etc., mas considerariam um verdadeiro sacrilégio que alguém desse ao poema deles esse tratamento-de-choque.

Reid explicou que aprendeu esse método quando foi secretário do grande Robert Graves, ao qual encomendaram uma tradução inglesa de um livro latino de Suetônio. Graves propôs que o jovem Reid fizesse um primeiro esboço da tradução, para ser corrigido por ele. E diz que

... ficava olhando, com considerável espanto, enquanto Graves pegava a tradução que ele tinha considerado impecável e a melhorava, cortando adjetivos exuberantes e os substituindo por substantivos mais fortes, eliminando advérbios, achando verbos mais eloquentes.

E Reid explica:

É o único modo de aprender a escrever.


Reid era um poeta interessante, e transcrevo abaixo um primeiro esboço de tradução de seu poema “A Curiosidade”.

*     *     *


A curiosidade
by Alastair Reid (trad. BT)

A curiosidade
pode ter morto o gato; ou talvez
o gato teve azar, ou ficou curioso
para ver como a morte era, por não ter mais
razões para lamber as patas ou produzir
cestos e cestos de gatinhos, previsivelmente.

Ainda assim, ser curioso
atrai muitos perigos. Desconfiar
do que se diz sempre, do que parece
fazer perguntas estranhas, interferir nos sonhos,
sair da casa, farejar ratos, ter premonições...
Isto não torna o gato bem vindo
naqueles ambientes caninos
onde cestos cheirosos, esposas firmes, boas refeições
são a ordem natural das coisas, para que prevaleça
a arte não-curiosa de balançar o rabo e a cabeça.

Encare os fatos. A curiosidade
não vai nunca nos matar,
e sim a falta dela.
Nunca querer olhar
o outro lado de um morro
ou aquele país improvável
onde a vida é um idílio
(ou provavelmente um inferno),
isso sim nos mataria.

Somente os curiosos têm, se sobrevivem, uma história
que valha a pena contar.

Dizem os cães: gatos amam demais, são irresponsáveis,
vivem mudando, cheios de esposas perdidas,
abandonam os filhos, espalham o tédio nos jantares
com histórias de suas sete vidas.
Bem; eles têm sorte. Deixem que eles tenham
suas sete vidas, suas contradições,
sua curiosidade por mudanças, e que se preparem para pagar
o preço de ser um gato, que é morrer
e morrer outra vez, seja como for
e cada uma delas sofrendo a mesma dor.

Uma minoria de um gato apenas
é tudo que podemos conseguir
para que falem a verdade.
E o que os gatos têm a dizer no
retorno de cada inferno
é isto: que morrer é coisa para os viventes,
que morrer é coisa para os amantes,
e que os cães mortos são aqueles que não sabem
que morrer é preciso se alguém quiser viver.







terça-feira, 20 de março de 2018

4327) Nomes de brincadeiras (20.3.2018)



As brincadeiras infantis, ou de meninada em geral (futebol de pelada, p. ex.) sempre produzem um vocabulário muito rico. Aqui vão alguns verbetes comentados, com exemplos.

BALEEIRA
O mesmo que “baladeira, baleadeira, bodoque, estilingue”.  Não tem relação com “navio baleeiro”, dedicado à pesca da baleia.  Também se grafa “balieira”.

Eu, à medida que me punha taludo e me iniciava com as cabras de minha Tia – de um modo que contarei melhor, depois – começava a deixar de lado as caçadas de balieira e badoque, e a me chegar mais, de noite, para a roda das mocinhas e meninas, antes desprezadas como indignas do interesse de um homem.
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 50)


FRECHEIRO
Mergulho na direção da água; salto com os braços estendidos para a frente.  “Eu gosto é de tomar banho de açude, passar o dia dando frecheiro dentro dágua”.  Também se usa a forma verbal: “Quando ele foi chegando foi logo tirando a roupa e frecheirando dentro do rio”.  Téo Azevedo e Assis Ângelo registram “flexeiro”.

PAPANGU
Mascarados que saem no carnaval; usam macacão folgado, de pano fino, estampado, que cobre o corpo inteiro; usam luvas, e um capuz com buracos para olhos, nariz e boca.  Frequentemente não se consegue distinguir se se trata de um homem ou uma mulher, a não ser que falem – quando, em geral, disfarçam a voz.  Saem na rua, sozinhos ou em bando, tirando brincadeiras com todo mundo.  Assemelham-se aos "clóvis" do Rio de Janeiro, menos no detalhe das bexigas cheias de ar com que os clóvis saem batendo. 
Também se usa o termo como um pejorativo vago, sem referencia específica a esses palhaços: "Tu viu o namorado novo dela?  Muito melhor do que aquele papangu que ela namorava no ano passado."

Contam dele que no carnaval de 1911 brincou tanto de entrudo e bebeu tanto que esquecera de ter terminado o carnaval, e na quarta-feira de cinzas, sem máscara, com voz de papangu, na porta de seu estabelecimento perguntava a quem chegava: "Você me conhece?" 
(Cristino Pimentel, Abrindo o Livro do Passado, vol. 1)

  
ACADEMIA
Ou “cademia” (forma que ouvi com mais frequência, na infância): é a brincadeira de crianças conhecida como “jogo da amarelinha”. 

“Que as pedras, as pedras mesmo, que o senhor ensinou a identificar em mica e cristais de rocha e basalto e etc., sabe o que a gente fazia?  Jogava era na academia, segundo a língua de minha vó; que ela nunca chamou aquilo de simples amarelinha.  Minha vó chama de academia e a gente pulava, atirando a pedra no corpo desenhado a giz no chão, no puro chão, único lugar onde o giz cabia, a gente pulava por um fio, equilibristas, as pernas abertas pra não pisar nas linhas do corpo e ser o otário número 1, de marca maior, tendo apenas o direito a um minuto, no descanso, e então prosseguindo até atingir o céu.”
(Marilene Felinto, O Lago Encantado de Grongonzo),

O nome “amarelinha” tem ligações com outra denominação, “jogo da maré”, nome certamente vindo do francês “marelle”.

Alguns minutos depois, ouviu-se o barulho das meninas jogando maré e cantando:
Três passos no éter
E volte à Terra
Jogue a vértebra
E a negra álgebra
O chocalho passeia
A estupidez humana.
(Stefan Wul, A Cadeia das 7, tradução de David Jardim Júnior)

Ao que parece, o mesmo jogo em Portugal chama-se “macaca”, como se vê na tradução portuguesa do mesmo livro, mesmo trecho:

Alguns minutos depois, ouviram as gémeas jogar à macaca.  Cantavam:
Três passos no Aither
E regresso à Terra
Atira a vértebra
E a negra álgebra
O guiso propala
A estupidez humana.
(Stefan Wul, O Império dos Mutantes, tradução de Amadeu Lopes Sabino)

Em inglês é  “hopscotch” e em espanhol “rayuela” (que serviu como título para o famoso romance de Julio Cortázar).


POR CIMA
No futebol de  pelada, na ausência de traves, é comum que as duas barras, ou gols, sejam feitas com duas pedras, dois montes de roupas, etc.  Dessa forma, um gol só se distingue claramente de uma bola-fora quando o chute é rasteiro. Nas bolas altas ou a meia-altura, é o consenso (e o “bocão”) que define.  A bola “por cima” é a que passa por cima de uma das pedras que marcam a meta -- equivaleria portanto a uma bola na trave.  Quando ao limite superior da barra, é determinado pela altura do goleiro: o chute parte, o goleiro salta e tenta alcançar.  Se pelo menos toca nela, considera-se que a bola não foi “alta”, e vale o gol.  Muitos goleiros acabam pulando menos do que poderiam, para não correr esse risco; mas, como acontece com tudo nos jogos de pelada, onde não há juiz, quem determina se foi gol, se foi “por cima” ou se foi “alta” é o bate-boca que se segue imediatamente após o lance.


ALAÚÇA
Corruptela de "La Ursa". Folguedo de carnaval que consiste num homem fantasiado de urso, com roupa feita de estopas velhas, puxado por uma corrente presa ao pescoço, e que percorre as ruas seguido por um grupo musical com sanfona, zabumba, pandeiro, etc.  Saem com latas na mão, pedindo dinheiro de porta em porta e dançando no terraço de cada casa, seguidos por uma multidão de moleques.  Originalmente devia-se dizer: “Olha, lá vem La Ursa!”, que deve ter mudado para “Lá vem a ‘La Ursa’!”  e finalmente “Lá vem o Alaúça!”. Um corinho frequente gritado por todos diz: “Alaúça quer dinheiro! Quem não der é pirangueiro!”. (Pirangueiro é vagabundo, malandro, etc.)

Vamos embora, segue o itinerário
por ali passamos, por aqui passou
um alaúça de fita amarela
abrindo janelas para o nosso amor.
(Alceu Valença, Marim dos Caetés)


AMORCEGAR
Pegar carona num caminhão ou outro veículo, pendurando-se na parte traseira.  Prática comum entre garotos de bairro.  Também usa-se dizer: "Pegar morcego".  "Quando a mãe de Fulano está em casa ele passa o dia quieto, não sai nem no terraço, mas quando ela vai na rua ele corre pra pista e fica amorcegando os ônibus". 
A origem da expressão é a posição em que o garoto fica, como um morcego pendurado no teto da caverna.  O "pegar morcego" pode ter função prática (ir daqui até ali sem pagar passagem de ônibus) ou ser uma simples brincadeira perigosa e excitante.  Não se aplica quando a pessoa está numa bicicleta e agarra o veículo para poupar esforço.

E o menino amorcegando caminhão
foi apanhado numa rede de cordão
sem entender o triste significado
da palavra educação.
(Ivan Santos, Ilha do Bispo)

Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado.  Assim, só quase uma hora depois que passou a Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o pé na Estrada, mas, agora, já está tudo quanto é de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora!  Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que me deixou no Cosme Pinto!
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino)











sábado, 17 de março de 2018

4326) Os problemas da tradução automática (17.3.2018)




Em 28 de janeiro passado publiquei neste blog o artigo “Um teste com o tradutor automático”, em que examinei e comparei alguns textos curtos que fiz passar no tradutor automático do Google, às vezes com resultados medianos, outras com resultados grotescos.

Agora me deparei com um artigo de 30 de janeiro em que uma experiência semelhante é relatada por Douglas Hofstadter, autor do clássico Godel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid (1979) e também de Le Ton Beau de Marot (1997), um dos melhores e mais extensos ensaios que já vi sobre a arte da tradução.

O artigo de Hofstadter, “The Shallowness of Google Translate” está aqui:

https://www.theatlantic.com/technology/archive/2018/01/the-shallowness-of-google-translate/551570/

Ele faz experiências de ida e volta de alguns parágrafos do inglês para o francês, o alemão e o chinês. O artigo é longo, com exemplos minuciosamente dissecados, e não vou traduzi-lo aqui. Vou somente comentar algumas das idéias de Hofstadter, com as quais concordo.

Ele diz que o Google Translate na verdade não traduz, ele apenas substitui séries de palavras. Traduzir, para DH, é entender, e uma máquina como as do Google não “entende” um texto da mesma maneira que um tradutor humano entende. O Google apenas substitui cegamente algumas frases por outras. Quando é necessária uma compreensão profunda, por todos os ângulos, daquilo que o texto está dizendo, o tradutor mecânico falha miseravelmente.

Ele é incapaz (para citar apenas o primeiro exemplo dado no artigo) de identificar corretamente o gênero das pessoas mencionadas num texto, a partir dos pronomes possessivos. O primeiro teste feito por Hostadter foi com este trecho, vertido do inglês para o francês:

Na casa deles, todas as coisas eram aos pares. Havia o carro dele e o carro dela, as toalhas dele e as toalhas dela, a biblioteca dele e a dela.

Como em francês o gênero dos pronomes possessivos se refere à coisa possuída, e não ao possuidor, o texto francês ficava sem sentido:

Dans leur maison, tout vient en paires. Il y a sa voiture et sa voiture, ses serviettes e ses serviettes, sa bibliothèque et les siennes.

Por que? DH explica que um tradutor humano percebe imediatamente todo o contexto pessoal e social que está sendo descrito, e traduz de acordo. Um tradutor automático não percebe nada. Ele apenas substitui palavras na língua A pela palavra estatisticamente mais próxima na língua B.

E por aí vai. Diz o autor:

Nós, humanos, sabemos todo tipo de coisas a respeito de casais, residências, objetos pessoais, orgulho, rivalidade, ciúme, privacidade e muitos outros fatores intangíveis que desembocam numa tal situação: um casal que possui toalhas onde está bordado “Dele” e “Dela”. O Google Translate não tem a menor familiaridade com tais situações. O Google Translate não tem familiaridade com situação nenhuma, e ponto final. A única familiaridade que ele tem é com cadeias de palavras compostas por cadeias de letras.

Falta ao tradutor do Google aquilo que a jornalista Maria do Rosário Caetano chama de “Nossa Senhora do Contexto”. O computador (por enquanto, 2018) não enxerga o contexto de nada do que está traduzindo. Não compõe uma imagem mental da situação descrita; não tem uma memória pessoal de situações análogas, com a qual possa compará-la, e que possa tomar como base para uma interpretação.

Diz Hofstadter:

É quase irresistível para as pessoas presumir que um software que usa as palavras com tanta fluência deve saber, certamente, o que elas significam. (...) [Mas] o uso do Google Translate é na verdade um processo de passar ao largo ou de rodear o ato de compreender a linguagem.

E ele descreve, de uma maneira que me parece adequada (pelo menos é o que corresponde à minha experiência pessoal), o que acontece no momento da tradução humana:

Quando eu traduzo, primeiro leio o texto original cuidadosamente, e internalizo as idéias tão claramente quanto possível, deixando que elas fiquem se agitando de um lado para outro na minha mente. Não são as palavras do original que se agitam, mas as idéias, que despertam os mais variados tipos de associações, criando um halo muito rico de cenários na minha mente. Nem preciso dizer que a maior parte deste halo é inconsciente. Somente quando este halo foi evocado o bastante na mente eu começo a tentar expressá-lo – a “pressioná-lo para fora” – na segunda língua.

É justamente essa fase que os tradutores automáticos são (por enquanto) incapazes de realizar, embora nada indique que essa incapacidade seja permanente. Um conjunto de computadores como os nossos não tem memória afetiva, não tem percepção de fatores como ironia ou sarcasmo, não avalia (ou o faz apenas mecanicamente) a implicação social contida em palavras de gíria, arcaísmos, neologismos, nonsense, etc.

Douglas Hofstadter está longe de ser um ludita ou um inimigo das máquinas: Godel, Escher e Bach (ganhador do Prêmio Pulitzer) tem 700 páginas de maciça fascinação pelas possibilidades da Inteligência Artificial. Mas enquanto grande parte dos entusiastas da A. I. concentram sua atenção no lado “artificial” (como produzir esses processos?), ele investiga o lado “inteligência” (em que consistem os processos?).

Diz ele no artigo:

Não quero deixar nos leitores a impressão de que acredito que inteligência e compreensão serão para sempre inacessíveis aos computadores. Se neste artigo pareço afirmar isto, é porque a tecnologia aqui discutida não faz nenhuma tentativa de reproduzir a inteligência humana. Muito pelo contrário: ela tenta apenas dar a volta ao problema, e os trechos aqui exibidos mostram claramente suas lacunas gigantescas. (...) Do meu ponto de vista, não há nenhuma razão fundamental para que uma máquina não possa um dia, em princípio, pensar, ser criativa, engraçada, nostálgica, excitada, amedrontada, extasiada, resignada, esperançosa, e, como corolário disto, capaz de traduzir admiravelmente de uma língua para outra. (...) [Mas] eu acredito que isso ainda está extremamente longe de acontecer.

A verdade é que não traduzimos apenas com os centros linguísticos do cérebro. Se o que estamos traduzindo é um texto puramente abstrato, impessoal, meramente enunciativo, até que vai. Mas na literatura, principalmente, há fatores animais e sociais envolvidos, e digo animais da maneira mais respeitosa possível, para lembrar que o fato de termos um corpo condiciona nosso medo, nossa raiva, nossa afetividade, nossos (des)confortos, nossa relação com o ambiente e com outras pessoas.

Grande parte da literatura e da poesia se refere a contextos físicos, corporais, psicológicos, emotivos, sociais etc. que nem sempre vêm claramente expostos, mas constituem uma camada “subterrânea” do texto, algo que mesmo um leitor jovem, um leitor recente, é capaz de entender, porque tem em si um contexto de comparação.

É esse contexto humano que evocamos ao traduzir. E a máquina não tem (por enquanto) o que evocar, nem como.











quarta-feira, 14 de março de 2018

4325) Alguns clichês narrativos (14.3.2018)



O clichê é algo que surgiu como novidade, como informação original, apresentada de um jeito diferente do que se fazia. Funcionou. Funcionou tanto que passou a ser utilizado por outras pessoas. Depois, por muita gente, o tempo inteiro. Deixou de ser novidade e virou mera repetição. Deixou de ser informação nova e passou a ser a muleta da preguiça e da desatenção. Virou clichê.

Essa é uma visão defensável. Mas será o clichê um pecado mortal, uma doença grave? Nem tanto. Ele tem sua função. Isaac Asimov, por exemplo, num artigo discutindo a sério assuntos altamente abstratos, nos quais o leitor comum pode se perder, sabia usar clichês de vez em quando. Idem na ficção.

É bom dar ao leitor de vez em quando uma sensaçãozinha de certeza absoluta. Isso o clichê lhe dá, como uma Coca-Cola lhe dá glicose. Nossos clichês atuais de trama e de enredo foram concebidos do século 19 para o 20. Vêm desde os romances de capa-e-espada europeus até as telenovelas sul-americanas do horário nobre.

O clichê é indispensável para que o leitor não se perca? Nem sempre. Porque nem sempre o clichê é usado tendo em mente um efeito no leitor. Muitas vezes certos efeitos narrativos surgiram para facilitar o trabalho dos autores ou tirá-los de enrascadas narrativas onde eles tinham se metido sem saber onde iam acabar.

Um clichê é uma chave mestra, abre qualquer porta. Tem que ser usado sem culpa, mas é bom poder usar também sem culpa certas descontinuidades ou quebras narrativas. Se a história está com crédito junto ao público, pode ousar. Quem pagou foi o clichê.

Eis alguns deles.

O CORPO DESAPARECIDO
Uma pessoa numa novela sofre um acidente (afogamento, incêndio, desmoronamento), os bombeiros e a polícia fazem busca, o corpo nunca é encontrado. Alguma dúvida de que essa pessoa reaparecerá vivinha da silva assim que o autor precisar dela?

O SONHO INTERROMPIDO
A certa altura do filme, alguma coisa bem improvável começa a acontecer. Pode ser algo fantasticamente sobrenatural. Pode ser um acontecimento banal, mas que se for verdade vai alterar de maneira irremediável o rumo da história. No momento culminante, há um corte brusco e vemos o personagem, sobressaltado, sentando na cama de noite, estremunhado, abrindo os olhos.

O ATO CLANDESTINO
Um casal que não pode se beijar se beija. A câmera corrige, o foco corrige, e vemos que havia alguém espreitando os dois pela fresta de uma porta, ou por trás de uma cortina, ou através de uma vidraça. Quem está espreitando é a última pessoa que o casal gostaria que visse aquilo: uma pessoa diretamente prejudicada, ou uma denunciadora interesseira.

Usa-se em geral para economizar tempo. Se num desses melodramas ingleses vitorianos a baronesa casada vive aos beijos com o mordomo pelos corredores do castelo, podem-se passar meses até que alguém descubra. Num filme, tem que ser logo. Narrativa geralmente é uma compressão do tempo.

Em geral mostra-se uma “escapada por um triz”, algo que deixe desconfianças e testas franzidas, e na vez seguinte, bingo!  No melhor momento do amasso os dois são vistos pela governanta fofoqueira ou pela despeitada Condessa de Eastminster.

A CONVERSA ENTREOUVIDA
Uma variante clássica do Ato Clandestino, um Deus-Vindamáquina predileto do romance policial. No momento crucial, surgem as portas entreabertas, a pessoa que ao rodear a casa passa por baixo de uma janela e entreouve o que se diz naquele quarto, ou alguém que ergue distraidamente a extensão telefônica e se arrepende pelo resto da vida, ou está sentada no reservado no restaurante e reconhece vozes no compartimento contíguo.

Alguém está sempre escutando. O Acaso diegético (que faz parte da realidade do filme) é sempre um Determinismo dramatúrgico. É preciso fazer com que “os acontecimentos se precipitem” logo. Além do mais, a maioria das polícias do mundo depende mais disso do que de algum raciocínio sherlockiano digno do Cavaleiro Dupin ou de Poirot.

O INQUILINO DEVEDOR
Dificilmente veremos uma história em que o personagem esteja em dificuldades financeiras, morando numa pensão ou prédio de apartamentos, sem nos depararmos mais uma vez com a cena em que ele tenta sair para a rua mas é forçado a se esconder do síndico, ou da concierge, ou do porteiro, ou de qualquer outra pessoa com autoridade suficiente para cobrar-lhe os atrasados.

A FALA PRECIPITADA
Filme. Um personagem entra num ambiente, acompanhado pela câmera, que mostra ele, não o ambiente. Crendo que quem o espera ali é a pessoa “A”, começa a dirigir-se a ela em voz alta, antes mesmo de vê-la. Claro que quem está ali não é A, e sim B ou C, a última pessoa a quem ele poderia dizer aquilo.

Uma variante desta é “A Fala de Costas”. Dois personagens estão conversando. Um deles dá as costas ao outro e se distrai fazendo algo, enquanto continua falando com o interlocutor. A câmara permanece nele. Quando ele se vira, vê que o interlocutor sumiu, ou foi substituído por uma Presença Ameaçadora.

A APROXIMAÇÃO NA TREVA
Um grupo de personagens está num recinto quando de repente alguém entra, seja de maneira inesperada, seja depois de uma cultivada expectativa. A iluminação está de tal modo que o recém-chegado está totalmente na sombra, e ao se adiantar para a zona iluminada do aposento a luz alcança primeiro suas pernas, a cintura, o tronco, e finalmente o rosto – revelando quem é.

A FALA PELAS COSTAS
Um personagem sozinho num aposento, esperando alguém.  É um visitante aguardando os donos da casa. Ele se interessa por um quadro na parede, por exemplo. Aproxima-se, fica olhando, tem algum tipo de reação (quando é num livro, temos acesso ao que pensa sobre o quadro). De repente, ouve às suas costas um comentário sobre o quadro, feito pelo anfitrião que acabou de chegar sem que ele visse. Vira-se, e os dois se defrontam.


*  *  *


O que são essas coisas? Chamei de clichês mas talvez devesse chamar de tropos, ou de figuras da retórica narrativa. São como efeitos pré-gravados na música, ou “stock photos”, coisas já prontas, que se usa como ilustração.

E são um idioma comum a duas ou três gerações de realizadores e quatro ou cinco gerações superpostas de espectadores, que constituem a platéia de cinema, em qualquer lugar do mundo.

Estou falando meio injustamente em termos de câmera, dá a impressão de que a literatura é só criativa e o cinema só derivativo. Quem criou grande parte desses efeitos, na verdade, foram gerações sucessivas de narradores com relativamente pouco intercâmbio ou influência direta entre si: os folhetinistas das capitais européias no século 19, os autores dos incontáveis gêneros de pulp fiction nos EUA no século 20, os telenovelistas latino-americanos e principalmente os brasileiros. E os autores dos romances chamados de best-sellers.

O que os best-sellers (com as exceções de praxe) têm em comum? Pode-se dizer que é o uso proposto e cumprido de usar algo que o leitor já conhece e já pede.  Seja o clichê displicente, seja a reviravolta final longamente esperada, como no romance de detetive.

O autor best-seller pode ser descrito como “reader friendly”, ou amigão do leitor. Ele diz ao leitor: “Ei, estou aqui falando o mesmo idioma que você fala.” Pode até estar trazendo uma mensagem originalíssima (se é que isso existe) junto com o resto, quem sabe? Mas o principal é o fato de ele dizer, e o leitor confiar, que a expectativa será satisfeita.

O clichê fica interessante quando é tirado dos produtos de rotina e cai na mão dos desconstruidores. No tempo dos surrealistas, muita gente repaginou o clichê, como Max Ernst em Une Semaine de Bonté e outros, ou Buñuel em seus melodramas eróticos.

O clichê só mostra suas verdadeiras possibilidades quando em vez de encontrá-lo nos sitcoms da TV, que alguns consideram o último elo da cadeia alimentar da Narrativa, o encontramos no quarteirão vizinho: em André Breton, em Raymond Queneau, em contextos fraturados ou absurdistas. Nos surrealistas, nos caligarescos, nos artistas underground ou marginais das metrópoles latinas.

O clichê é uma promessa, ao leitor, de tranquila certeza. Usado por artistas mais irrequietos, pode ser uma armadilha com reações imprevisíveis.











segunda-feira, 12 de março de 2018

4324) Os Labirintos Aleatórios (12.3.2018)




(Arkádi & Bóris Strugátski, Piquenique na Estrada, Ed. Aleph, São Paulo)


Um subgênero fascinante da FC é o que eu chamo de histórias sobre “Labirintos Aleatórios”. São labirintos (geralmente construídos por alienígenas) cheios de armadilhas, por onde os personagens (em geral, astronautas terrestres explorando outro planeta) tentam entrar, mas são destruídos de maneira aparentemente aleatória quando pisam num certo ponto, tocam num objeto qualquer, etc.

O livro que me revelou esse tipo de trama foi Rogue Moon (1960) de Algis Budrys, um romance que mais de uma vez botei na minha lista dos “dez melhores da FC”.  Budrys escreve romances e contos tensos, com personagens duros, práticos, “no-nonsense”, de masculinidade agressiva. São histórias notáveis, de base científica sólida, premissas ousadas, ressonâncias metafísicas.


Rogue Moon fala da descoberta de um artefato na Lua, um labirinto que mata todo mundo que tenta entrar nele. Percebe-se que certos gestos, certos movimentos são capazes de detonar automaticamente o sistema de auto-proteção do artefato, mas só se percebe isso depois que o voluntário morre.

A solução é criar um “duplo” do voluntário: enquanto o original está numa câmera protetora ou coisa semelhante, o “duplo” vai lá no labirinto, morre, e o original (que guarda tudo na memória) está pronto para avançar mais alguns metros na próxima tentativa.

Um labirinto maior, do tamanho de uma cidade, é o que aparece em The Man in the Maze (1969), de Robert Silverberg. No centro dele está escondido um humano que é preciso resgatar. Mais uma vez, um batalhão de exploradores se submete às armadilhas aleatórias e automáticas que vão destruindo quem passa no lugar errado ou toca no objeto errado.


Foi sem dúvida com estes dois precedentes ilustres em mente que os irmãos russos Arkádi e Bóris Strugátski escreveram Piquenique na Estrada (1972 – publicado agora pela Ed. Aleph, com tradução de Tatiana Larkina), o livro que deu origem ao filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovski.

A premissa: grupos de alienígenas realizaram visitações breves a seis pontos do planeta Terra, e ao partir deixaram atrás de si Zonas transformadas, com alguns quilômetros de diâmetro. Um cientista explica: é como se nós fizéssemos um piquenique na beira duma estrada, sem ligar para os bichos que habitam ali. E ao partirmos deixássemos para trás “óleo que pingou do um radiador, uma lata com um pouco de gasolina, velas e filtros usados, (...) panos sujos de óleo, as lâmpadas queimadas, uma chave de fenda que alguém esqueceu na grama.”

A Zona está coberta de coisas inexplicáveis como as “carecas de mosquito”, pontos de alta gravidade que destroem, achatando, qualquer criatura que os cruze; “gotas negras”, que refletem com atraso os raios de luz; “fantasmas alegres”, turbulências no ar; o “moedor”, que arrebata no ar os indivíduos que o cruzam, e retorce seus corpos.


O “stalker” é justamente o cara que presenciou tudo isso e mapeia os trechos por onde não se deve passar; porque todos vão em busca de artefatos para vender, e da Esfera Dourada que (reza a lenda) é capaz de realizar os desejos de quem se aproximar dela.

A tradução recente da Editora Aleph inclui dois itens preciosos da edição norte-americana: o prefácio de Ursula LeGuin e o posfácio de Bóris Strugátski descrevendo a “via crucis” do livro sob a censura soviética.

Estas histórias têm a ver, como parâmetros e precursores, com a trilogia “Comando Sul” de Jeff VanderMeer: Aniquilação (2014), Autoridade (2015) e Aceitação (2016), pela Ed. Intrínseca, tradução minha.

Na história de VanderMeer temos também uma zona, a Área X, que foi aparentemente visitada por extraterrestres, ou está sofrendo espontaneamente uma mutação, isolada por um campo de força que tem apenas um ponto de entrada.

Grupos de cientistas e soldados penetram por ali e se deparam com fenômenos inexplicáveis: uma torre que desce de chão adentro, onde uma criatura viva escreve frases místicas nas paredes com fungos luminosos; animais que têm olhos de seres humanos; vestígios de chacinas inexplicáveis entre os membros das expedições anteriores.

E mais, uma vez, quem entra ali morre de maneiras inexplicáveis, ou sofre metamorfoses bizarras, ou retorna, semi-amnésico, para morrer de câncer logo após.


Estas quatro obras, vistas em conjunto, exprimem uma área da ficção científica que eu considero muito mais interessante e mais plausível do que o subgênero conhecido como “invasão da terra”, em que somos surpreendidos por alienígenas com exércitos semelhantes aos nossos, armamentos semelhantes aos nossos, objetivos estratégicos semelhantes aos nossos, pretextos geopolíticos semelhantes aos nossos.

As histórias de Invasão da Terra, por melhores que sejam (e muitas são excelentes) sofrem dessa antropomorfização, em que os alienígenas são basicamente semelhantes a nós (só que monstruosos), e querem invadir nosso planeta porque precisam de minérios, ou de oxigênio, ou de espaço para habitar, ou simplesmente porque são tão colonizadores e ambiciosos quanto nós.

Cientificamente, é mais provável que se um dia esbarramos com extraterrestres esse contato não será uma mera guerrazinha entre dois exércitos, sendo um de fuzileiros navais e outro de insetos desagradáveis. Não será algo tipo Independence Day ou Tropas Estelares.

Será um encontro talvez trágico e destrutivo, mas acima de tudo um encontro cheio de perplexidade, de circunstâncias indecifráveis, de fatos que ao nosso juízo e à nossa cultura parecerão insensatos, aleatórios; uma série de fenômenos que não conseguiremos interpretar como uma linha coerente de ambições políticas e táticas militares.

Qualquer encontro com outra espécie inteligente interplanetária será por definição um Labirinto Aleatório e talvez mortal.