Diz-se que um romancista usa máscaras, uma coleção delas. A cada personagem que ele chama à ação, na narrativa, ele está botando uma máscara diferente.
O tradutor faz algo parecido, só que antes de botar as
máscaras dos personagens a primeira que ele bota é a máscara do autor. Ele
finge ser o autor para poder traduzi-lo, assim como um ator faz o mesmo se
tiver que recriá-lo num palco ou numa tela.
O que o tradutor faz é psicografar o autor original. E fará
isso tanto melhor quanto melhor se impregne desse autor, seja através da
leitura de entrevistas, de biografias, de outras obras, de descrições. Porque
em última análise o que um tradutor ambiciona é ser capaz de adivinhar o que o autor pensou para escrever o que
escreveu. E ele faz isso mais ou menos uma vez por minuto.
Claro que não se está falando de telepatia nem de mediunidade.
É algo simples, que fazemos em mil outras circunstâncias, na vida pessoal, vida
profissional: mas na tradução literária isso fica muito mais visível.
Conhecendo um pouco a vida e a cabeça desse autor, o
tradutor pode ter certeza de que tal frase é irônica, embora muita gente a leve
ao pé da letra.
Ele pode entender que um adjetivo bizarro usado pelo
personagem está substituindo um palavrão que ele tinha motivos para reprimir.
Pode ser capaz de, só no faro, reconstituir mentalmente o
percurso rubegoldberguiano de um trocadilho infame. (E ser capaz de recriá-lo.)
O grande prodígio de arte de traduzir é que a um escritor
basta ser ele mesmo, mas um tradutor tem que dizer como Mário de Andrade: “eu
sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”. Porque num momento ele está
traduzindo uma peça de Shakespeare, noutro um romance policial de Cormac
MacCarthy, depois uma história romântica de Jane Austen e em seguida um volume
de contos humorísticos de James Thurber.
São as máscaras que ele precisa pôr no cérebro para captar
o modo de pensar e de escrever de pessoas tão diferentes.
A arte do tradutor se parece, portanto, com a arte daqueles
atores que imitam com perfeição a voz de qualquer pessoa, seja um parente, seja
uma celebridade qualquer.
Parece-se também com os músicos capazes de numa mesma
noitada de baile fazerem um cover
impecável de um rock do Queen e de uma balada de Djavan.
O tradutor precisa perceber intuitivamente como alguma
coisa é feita, e refazê-la de modo convincente. Ele não precisa ter a mesma
capacidade do autor original na criação de enredos e da psicologia dos
personagens, mas precisa sempre entender de que maneira o autor faz o que faz.
Reproduzir em português os pensamentos e as falas dos
personagens de Henry James não é o mesmo de reproduzir os pensamentos e as
falas de personagens de William Burroughs. São sistemas mentais distintos que
ele precisa ser capaz de emular de forma satisfatória.
Voltando à questão da máscara: qual é o rosto verdadeiro de
um tradutor? A resposta mais lógica é que não é nenhum, um tradutor só tem a
máscara que está usando no momento. Seu talento não é o de criar a partir do
Simples, e sim o de recriar a partir do Complexo. Num certo sentido, isso é tão
difícil quanto ser um autor.
Nem todo grande autor, mesmo que domine com proficiência um
ou mais idiomas estrangeiros, pode ser um bom tradutor. Talvez acabe lhe
faltando esse talento para a despersonalização que o tradutor precisa ter. O
talento de apagar seu Ego em proveito da obra alheia. Nem todo autor consegue
isso.