quinta-feira, 20 de novembro de 2025

5208) "O Agente Secreto" (20.11.2025)

 



Um dos começos mais famosos da literatura é o de L. P. Hartley em seu romance The Go-Between (1953), belamente filmado por Joseph Losey (“O Mensageiro”, 1971).

 

O Passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um jeito diferente.

 

O Brasil de 1977 é o país estrangeiro visitado por Kleber Mendonça Filho em O Agente Secreto (2025). É um filme sobre a ditadura militar onde os militares praticamente não aparecem.  E onde se confirma o ditado popular: “O grande problema nas ditaduras nem é o ditador: é o guarda da esquina”. Porque os guardas-da-esquina, percebendo o novo estado de coisas instaurado pela ditadura, passam a adotar seus métodos, em benefício próprio.



Esta premissa é estabelecida na primeira sequência do filme, em que “Marcelo”, o personagem de Wagner Moura, é pachorrentamente achacado por um policial rodoviário, que ignora um cadáver ao lado, exposto aos cães, mas espreme o motorista do fusca até conseguir extrair dele meio maço de cigarros amassados. Não tinha colírio para dizer um “pinga aqui”.

 

Minha sorte foi ter ido ver o filme sem saber nada dele, a não ser um trailer com aquela cena onde um cara aborda Wagner dizendo: “Você é policial?...” “Não, não sou policial.” “Tem cara de policial. Como é seu nome?”  “Marcelo.” “Marcelo de que?” “Alves.” “Nome de policial.” “Eu não sou policial.”



(Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho)

 

Já li uma porção de textos sobre o filme, e algumas centenas de comentários. Percebo que muita gente acha o filme “lento”, acha que as coisas demoram a acontecer... Marcelo é um cara que está se escondendo, isso fica claro desde cedo. E em termos dramatúrgicos é importante (penso eu) que a gente só vá saber exatamente quem é ele, e por que se esconde, lá para uma hora de filme.

 

O escondimento é o traço principal do personagem. E do ambiente onde ele, por isto mesmo, vai parar.

 

Marcelo vai morar num pequeno prédio, num daqueles edifícios tão palpáveis, tão reais, de que a cidade cinematográfica de Kleber está cheia (O Som ao Redor e Aquarius, principalmente, são filmes sobre prédios, vizinhanças, espaços de moradia, e mostram formatos arquitetônicos subliminarmente recifenses e brasileiros).



É o prédio dos refugiados, o prédio das histórias pela metade. Há alguns angolanos fugidos da guerra civil. A moradora anterior do apartamento foi assassinada pelo marido. Ninguém comenta. Sabe-se das histórias a meia-boca, um pedaço aqui, outro ali.


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco. (...)

No beco

apenas um muro

sobre ele a polícia.

No céu de propaganda

aves anunciam

a glória.

No quarto,

irrisão e três colarinhos sujos.

(Carlos Drummond, "Nosso Tempo", em "A Rosa do Povo", 1945)


O poema de Drummond é do tempo da ditadura Vargas. Quando acontecem os fatos de O Agente Secreto, esse já era um passado distante, mas... e daí?  Disseram uma vez a William Faulkner que parasse de falar do Passado, que o Passado tinha morrido, e ele respondeu: “O Passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou.”

 

Cada onda ditatorial que varre o país e vai embora deixa atrás de si lembranças, respostas, atitudes. Entre elas, o escondimento, a meia-palavra, a história mal-contada, a versão incompleta, o documento com linhas inteiras borradas em tinta preta. (E, como consequências colaterais, as Lendas Urbanas e as Teorias da Conspiração.)




O escondimento é o traço principal da uma época de repressão, de perseguições gratuitas, de vendetas pessoais que ficam impunes. Uma época em que um presidente da República tinha um AVC, ficava inválido, e a imprensa não podia noticiar. Ou em que um dos jornalistas mais conhecidos da grande imprensa era “suicidado” e ninguém podia escrever a respeito. Tudo se esconde, se deixa não-dito, vai para baixo do tapete. E depois, se esquece. O esquecimento é também uma forma de esconder alguma coisa.

 

Embora Armando-Marcelo possa ser visto como herói ou como vítima, ele é um personagem que tem lá suas transversais. “Eu sei usar um martelo”. Ele seria capaz de se vingar brutalmente do homem que o persegue, se tivesse a chance. E no momento de confessar isso, ele desliga o gravador, usa a seu favor o direito à censura, ao ocultamento.

 

Ele traiu a esposa Fátima, quando ela era viva? O pai dela lhe pergunta a certa altura: “Quando minha filha estava viva, você raparigou?”. Armando é um rapaz direito. Não custava nada mentir: “Que é isso, Seu Alexandre, eu sempre fui 100% fiel a Fátima”. Mas ele dá um drible de corpo atrás do outro e tenta mudar de assunto. É um rapaz direito, e não quer mentir, mas provavelmente raparigou.

 

Já os policiais... Há algo de vingativo no incômodo realismo com que eles são retratados. Aquela polícia civil de peixes-miúdos, da lumpen-direita, aquele exército anônimo de homens rancorosos, covardes, defendendo-se mediante uma jovialidade excessiva, agregando-se em pequenas máfias de mútuo apoio para descolar uma propina ou um cala-a-boca. Sabem-se fracos e por isso apegam-se a quem detém o Poder. Serviram a ditadura militar, e se aqui porventura baixasse um dia uma ditadura comunista, seriam eles os primeiros à sua porta, ansiosos para prender e matar em nome dela.


 

E os pistoleiros terceirizam tudo. O Brasil é sempre o país da violência terceirizada: cada encarregado de um crime embolsa o dinheiro, e paga uma fração desse cachê a outro, que passa a outro, até chegar num peixe-miúdo que não tem para quem passar adiante, e que de alguma maneira não faz aquilo só por dinheiro, ou por ódio pessoal: faz pelo prazer de matar, de dizer “fui lá e fiz, sou foda”.

 

Tenho visto algumas queixas em relação ao filme, e muitas poderiam ser traduzidas assim: “Eu fui pensando que era um filme tipo espionagem, mas é um filme sobre um cara assustado, que não reage, não faz nada, fica fugindo o tempo todo...” Talvez o título tenha a ver com isso. Eu gosto do título, mas para o público em geral talvez “venda a idéia” de um filme jamesbondiano.



Um dos cartazes do filme tem três rostos de Wagner Moura, que interpreta, na verdade, três personagens. 

Armando é o barbudo e cabeludo, o pesquisador de universidade pública que encara os poderosos, não leva desaforo pra casa e acaba dando murro em ponta de faca. 

“Marcelo”, de bigodinho e cabelo curto, o gato escaldado, calmo por fora, mas por dentro sempre em guarda, fugido, refugiado, sem ter a quem apelar. 

E Fernando, o filho, clean-cut kid, reservado, distante, comentando mais sobre os avós paternos do que sobre os pais, e diz à pesquisadora, sem espanto: “Você lembra do meu pai mais do que eu”. Ele está em paz, sereno, simpático, rosto limpo, jaleco branco. Ele é uma casa bacana construída em cima de um sumidouro.