O Suvaco do Cristo, também conhecido como “Bloco do Suvaco”, anuncia que vai encerrar suas atividades no Carnaval de 2026, quando
completará 40 anos. Quarenta anos de
samba, suor, cerveja, irreverência, namoro e gréia. E, de acordo com o
presidente-vitalício João Avelleira, está preparando uma antologia de sambas que
marcaram sua história. Talvez seja a hora de abrir esse baú, ver erguer-se a
nuvem de confetes empoeirados, purpurinas perfumadas, ecos no ar, samba no pé.
Uma explicação necessária para quem não mora no Rio de
Janeiro: o bloco ganhou esse nome porque foi fundado por uma turma boa do
Jardim Botânico, moradores na altura da Rua Maria Angélica. Olhando de lá o Cristo Redentor a gente está
exatamente na linha reta que vai dar na sua axila direita. Dizem,
inclusive, que quem primeiro fez essa piada de “eu moro no suvaco do Cristo”
foi Tom Jobim, quando morava nesse trecho.
Quem me arrastou para lá foi Lenine. Ele já puxava samba
com a turma, e me chamou numa tarde remota de 1989 para concorrermos juntos –
porque escolha de samba enredo de bloco é concurso, muito parecido com o de
Escola de Samba. São muitos os chamados, e apenas um escolhido. Num ano pelo
voto popular, ou seja, aplauso; noutro ano por um júri... Não há fórmula. Cada
ano o mundo se reinventa.
O tema sugerido eram os 100 anos da República Brasileira,
aquele golpe militar que hoje associamos às barbas-de-molho do marechal Deodoro
da Fonseca. Outro tema circulando “nas bocas” era o sucesso recente do filme de
Martin Scorsese, A Última Tentação de
Cristo, que fazia uma conexão óbvia com o padroeiro do bloco.
Com este samba começamos uma estratégia de compor que
acabou funcionando muitas outras vezes. Às vezes nossas músicas eram feitas em
separado: um letrava a música do outro, ou o outro musicava a letra do um.
Quando compúnhamos juntos, era cada qual com seu violão, caneta e papel,
experimentando e anotando.
Com os sambas, resolvemos largar os instrumentos e ficar
andando pela sala, cantando (inventando melodia) a plenos pulmões. É uma
maneira boa de fazer a música, porque um “laraiá-laraiá” interessante já
sugere, muitas vezes, as próprias palavras que vão aparecer ali.
(Lenine e BT no Suvaco)
E assim fomos chegando na primeira estrofe:
Foi ela
a primeira tentação
que molhou a minha mão
na fonte do pecado...
Foi ela
que bancou a Madalena
invadiu a minha cena
e me deixou pregado...
E por aí a letra foi avançando. Havia referências ao
filme de Scorsese, mas também a piadas de conhecimento geral, inclusive a velha
piada do nordestino que volta a sua terra e diz que a coisa mais bonita que viu
no Rio foi “o Cristo Arrebentou”.
Essa música não chega a ser um samba-enredo (ou “samba de
enredo”) propriamente, mas é algo bastante próximo. Tem que ter uma melodia que
de vez em quando vai pra cima, com notas que se elevam. Porque é algo para ser
cantado a plenos pulmões por mil, duas mil, cinco mil pessoas. Daí a estratégia
de compor cantando, muito melhor do que simplesmente compor dedilhando no
violão uma melodia linda, mas que não se presta ao berro coletivo. Em casos
assim, o melhor é compor com o pulmão e a garganta.
(William Voorhees,
atual puxador oficial do bloco)
Uma coisa para que Lenine sempre chamava a atenção era
saber a hora de modular para um tom diferente, Mi-maior ou Mi-menor conforme o
caso (esta música é em Mi). Encerrada uma estrofe, era o momento de saltar para
outro começo melódico, em outro tom. Além de dar variedade e beleza à melodia, na
hora do desfile ajuda as pessoas (que estão aprendendo o samba enquanto o
cantam – não é desfile de Escola!) a não se perderem, e perceberem em que parte
da música o canto está.
República dos
Viralatas foi meu primeiro samba de bloco (para Lenine já era o segundo ou
terceiro), e virou uma espécie de hino informal do Suvaco. Foi gravado pela
primeira vez pelo próprio Lenine, no álbum Simpatia
É Quase Amor – 5 Anos de Samba em Ipanema (1991). Uma homenagem ao Suvaco,
feita pelo Simpatia, bloco-irmão da Zona Sul (onde nós também já puxamos belos
sambas, mas aí é outra história).
Não lembro se há outras gravações, mas há algum tempo
circula na web essa participação de Lenine no “Samba da Gamboa”, ao lado de
Diogo Nogueira e outros bambas, onde ele canta este “hino”, entre outras
parcerias nossas.
https://www.facebook.com/watch/?v=1159813874463448
O melhor retrato do Suvaco, seu clima, seu astral, as
pessoas que o fazem é o ótimo documentário dirigido por Paola Vieira, uma das
fundadoras do bloco, entrevistando os foliões e contando a história toda:
https://www.facebook.com/permalink.php?id=330987693653932&story_fbid=3626655610753774&paipv=0&eav=AfYpsZ-ShtIqqU0BmWIz_apKFhmqcN5eZPDhO9TnAxVeEaeKGl4Qge5Tl25zx4LLGjw&_rdr
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(João Avelleira,
Lenine, Rogerinho)
REPÚBLICA DOS VIRALATAS
(Lenine & BT)
Foi ela
a primeira tentação
que molhou a minha mão
na fonte do pecado...
Foi ela
que bancou a Madalena
invadiu a minha cena
e me deixou
pregado...
Mentia
e eu de besta não
sabia
tudo quando
acontecia
em dia de
eleição...
Vem descendo a
ladeira:
república
brasileira
cem anos que só me
dão (porrada)!
Porrada na sola do
pé do povo
foi quando eu vi, o
Suvaco passou,
na passarela onde o
Cristo arrebentou (2x)
(E a República?)
República dos
viralatas,
das concordatas, do
economês...
República do golpe
baixo;
é muito escracho com a cara de vocês...
República do
deixa-disso,
e no banco suíço a grana engordou...
Se não melhorar, eu
vou
vender goma de mascar
numa esquina de
Moscou... (2x)
É tudo zé mané! É tudo
zé-bundão!
O mundo é um
cabaré, e tá assim de cafetão! (2x)
(Mu Chebabi, William e BT no Suvaco, carnaval de 2020)