A Editora Nova Fronteira lançou há poucos meses uma nova
edição do Romance da Pedra do Reino,
de Ariano Suassuna, como parte das comemorações dos 50 anos do Movimento
Armorial. O livro havia saído pela José Olympio no seu lançamento em 1971, mas
as edições mais recentes são da Nova Fronteira, com uma concepção gráfica totalmente
diferente, coordenada pela família do escritor (falecido em 2014).
Esta edição de agora traz um bônus mais-que-precioso: um Caderno de Textos e Imagens,
ilustradíssimo, com 272 páginas. Um ótimo brinde para os leitores da Pedra, que podem até não ser muitos, mas
compartilham a fascinação e a curiosidade por todos os detalhes referentes à
obra..
O volume é organizado por Carlos Newton Júnior, a “pessoa
a quem eu faço todas as perguntas sobre assuntos ariânicos”; tem direção de
arte de Dantas Suassuna, e projeto gráfico de Ricardo Gouveia de Melo.
O material contido no livro é objeto de uma detalhada
explicação e contextualização por Carlos Newton, em sua introdução, onde ele –
que durante muitos anos trabalhou ao lado de Ariano Suassuna – reconstitui o
longo e tortuoso processo de criação do romance. E Carlos apresenta a primeira
grande “novidade” desta edição: o texto Sinésio,
o Alumioso, um manuscrito reproduzido em fac-símile, na caligrafia do
autor, e datado de julho de 1958.
Este texto é portanto a célula original do romance (os
leitores devem lembrar-se que no fim do livro Ariano grava de forma indelével
as datas de começo e fim: 19-VII-1958 e 9-X-1970). Este manuscrito sobre
Sinésio, portanto, data do início da criação do romance. Carlos Newton lembra,
contudo, que as datas celebradas assim por Ariano são mais simbólicas do que
práticas, e em termos cronológicos são meramente aproximativas.
Em todo caso, é fascinante ler agora esse manuscrito
ainda verde, ainda balbuciante, em que o narrador Quaderna afirma chamar-se “Dinis
Henriques Cipriano Quaderna” (nome depois trocado pelo definitivo “Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna”), e Sinésio ainda é “Sinésio Barretto Garcia” (em vez de
“Sinésio Garcia-Barretto”).
Por outro lado, no manuscrito já estão prontos, com nomes
praticamente idênticos, os professores de Quaderna (Samuel e Clemente) dois dos
personagens mais brilhantes inventados por Suassuna. E já temos em 1958 um
princípio de mergulho da famosa “Filosofia do Penetral”, um capítulo hilariante
do livro, e que no presente rascunho ainda mantém alguns conceitos
tapuio-filosofantes carregados de mistério e transcendência – o que seriam, à
luz do que sabemos hoje, “a Parentela do Plasma”, “o Aluir do Inopino”, “o Galarim
do Prestígio” ou “o Nó das Serpentes”?!...
Esta seção de manuscritos e datiloscritos reproduz
fotograficamente o prefácio escrito por Rachel de Queiroz para a primeira
edição. Também uma carta de Ernst Fromm, da Editora Agir, agradecendo a Ariano
o direito de poder avaliar a obra em primeira mão, mas abrindo mão dela para
que o autor a entregasse a outra editora mais capaz de dar ao livro “a difusão
que merece como obra literária que, indiscutivelmente, é.”
Segue-se uma longa seção de iconografia com fotos de
Ariano em diferentes grupos e momentos; reproduções de quadros de artistas
ligados ao Movimento Armorial, como Dantas Suassuna, Flávio Tavares, Sérgio
Lucena, Aluísio Braga, J. Borges e o próprio Ariano; capas das diferentes
edições do livro, no Brasil e no estrangeiro.
Em seguida, outra preciosidade do ponto de vista
literário-narrativo. Quando a TV-Globo produziu a minissérie A Pedra do Reino, lançada em 2007, nos
80 anos do escritor, a equipe de adaptadores (Luiz Fernando Carvalho, Luís
Alberto de Abreu e eu próprio) recebeu de Ariano um caderno manuscrito com a
“Conclusão” da história.
Como quem leu o livro sabe, a narrativa das aventuras de
Quaderna foi interrompida por Ariano depois de 1976, deixando um “buraco” de
eventos não contados. O que teria acontecido entre 1935 (data da invasão de
Taperoá pela Estranha Cavalgada, com Sinésio à frente) e 1938, quando Quaderna,
na maior cara-de-pau, dá ao Juiz Corregedor seu depoimento sobre a confusão toda?
Mistério.
Para que a minissérie também não se interrompesse nesse
vácuo, Ariano escreveu em 2006, a nosso pedido, essa “Conclusão”, aqui
transcrita e revelada ao público pela primeira vez, esclarecendo alguns dos
mistérios deixados incompletos no romance. Algumas das cenas sugeridas por ele
foram incorporadas à minissérie.
Há alguns detalhes pitorescos que mostram o caráter ambivalente
(geminiano?...) de Quaderna/Suassuna. Veja-se a confusão causada sem-querer por
Sinésio, quando diz à família ter se apaixonado por “uma moça clara” que vivia
na Fortaleza; ele se apaixonara pela loura Heliana, e a família supõe que é
pela irmã dela, que se chama Clara.
Esse episódio de folhetim é espelhado de forma picaresca
quando Quaderna tenta dizer a Dona Carmen Gutiérrez Torres Martins que está
apaixonado pela filha dela, a loura Margarida – e o faz de maneira tão
canhestra que as duas imaginam que foi pela matrona que ele se apaixonou. Esta
cincada vale a Quaderna o ódio eterno de Margarida, que futuramente servirá de
escrivã no interrogatório de Quaderna pelo Juiz Corregedor.
(Irandhir Santos e Milene Ramalho: "Quaderna" e "Margarida" na minissérie)
Claro que, como todo ódio feminino de folhetim, o de
Margarida também é solúvel em tintura-de-melodrama, e no fim da história ela
cai nos braços de Quaderna.
Alguns detalhes da trama são esclarecidos nesse texto
final, entre eles a portentosa questão do tesouro deixado por D. Pedro
Sebastião Garcia-Barretto. Quaderna faz referência ao mapa da Paraíba e às
letras nele contidas; uma solução não muito diversa da que aparece no filme Cinco Covas no Egito (“Five Graves to
Cairo”, 1943) de Billy Wilder, filme que Ariano Suassuna comentava ter visto.
O Caderno de Textos
e Imagens é, assim um adendo essencial e indispensável ao Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue de Vai-e-Volta, este (no dizer de Quaderna) “romance heróico-brasileiro,
ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e
safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja”.
É um desses casos clássicos de obra inacabada mas que
mesmo assim veio à publicação. Essa “história sem fim”, vai ficar eternamente
rodando inconclusa, em loop, na
memória e na imaginação dos leitores. Fica na honrosa prateleira dos livros
deixados incompletos pelos autores: O
Mistério de Edwin Drood (1870) de Charles Dickens, O Original de Laura (1977) de Vladimir Nabokov, 53 Jours (1989) de Georges Perec, Le Mont Analogue (1952) de René Daumal, O Processo (1925) de Franz Kafka, o
poema Kubla Khan (1816) de Samuel
Taylor Coleridge...
E para os que encontram
alguma dificuldade na leitura do livro, ou no acompanhamento da minissérie,
deixo aqui as palavras lúcidas e práticas de meu colega de roteiro, o
dramaturgo Luís Alberto de Abreu:
“É preciso deixar claro para o espectador, desde o início, os códigos
onde se apoia a obra. Se o sistema for simples e de fácil entendimento, não há
dificuldade de compreensão. Esse sistema de código não pode ser aleatório, nem se
transformar num quebra-cabeça intelectual. É preciso descobrir um sistema orgânico,
natural. Se partirmos do princípio que toda a obra é construída a partir das
lembranças de um velho homem, toda quebra de tempo e de espaço, fantasia e realidade,
serão facilmente assimiláveis pelo espectador porque são determinadas
organicamente pela memória de um personagem. Foi isso que fizemos.” (Luís Alberto de Abreu)