sábado, 4 de julho de 2020

4596) Quem faz os filmes? (4.7.2020)



Uma leitura que tem me consolado a vida (durante esta prisão perpétua da qual não imagino mais sair) é a do livro de entrevistas de Peter Bogdanovich com diretores de Hollywood da velha geração, os mestres dele: Afinal, Quem Faz os Filmes (Companhia das Letras, 2000). Tenho a edição original (Who the Devil Made It, New York: Alfred A. Knopf, 1997).



Comprei o livro, anos atrás, porque Bogdanovich (que dirigiu alguns bons filmes) é mais que um cineasta, é um cinéfilo. É um desses caras capazes de ver 3 ou 4 filmes obscuros por dia, durante anos a fio.

No livro, ele conta que quando esteve em Berlim com a esposa, foi ao Museu local, explicou que era cineasta nos EUA, e pediu para ver filmes antigos de Josef von Sternberg. Eram filmes em mau estado, de acesso restrito. Eles viram nove filmes seguidos, entrando pela noite. A mulher dele, coitada, era Cybil Shepherd, que ele havia revelado em A Última Sessão de Cinema (1971).

Bogdanovich apareceu recentemente no filme “recuperado” de Orson Welles, The Other Side of the Wind, ao lado do cineasta John Huston, que faz um “alter ego” do diretor.


(John Huston, Orson Welles e Bogdanovich) 

No livro, ele entrevista alguns dos meus diretores preferidos: Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Howard Hawks, Don Siegel, Sidney Lumet. São entrevistas longas, de 30 ou 40 páginas. E tem mais alguns cineastas que também curto, como Frank Tashlin (que dirigiu algumas das melhores comédias de Jerry Lewis), Robert Aldrich (de Morte Sem Glória, O Que Teria Acontecido a Baby Jane, Os Doze Condenados), etc.

Na época, li alguns capítulos que quis ler, consultei o que me interessava, e aposentei o livro na estante, deixei-o lá jogando dominó com os outros na pracinha. São 850 páginas. Chega.

Agora, por conta de uma pesquisa pessoal sobre filme policial noir, tive que pegá-lo novamente para saber alguma coisa sobre dois diretores a que jamais dei atenção: Edgar G. Ulmer e Joseph H. Lewis. E descobri uma coisa interessante. As entrevistas deles são mil vezes melhores do que as de Hitchcock ou Lang.

Bogdanovich entrevistou Hitchcock, por exemplo, em 1961, 1963, 1966 e 1972. Muitas das respostas do diretor são um Ctrl+C Ctrl+V das respostas que ele deu a François Truffaut em agosto de 1962, para o clássico O Cinema segundo Hitchcock (Paris: Robert Laffont: 1966). Claro. O sujeito é um sexagenário, já deu milhares de entrevistas, já ouviu a mesma pergunta um milhão de vezes. Vai responder o quê?

Todos eles tratam Bogdanovich com deferência, atenção, urbanidade (menos Josef von Sternberg, um “Seu Lunga” cuja entrevista não chega a 3 páginas). Reconhecem nele não um crítico pronto para botar defeito em algo, mas um cinéfilo bem preparado, ansioso para se inteirar sobre detalhes não percebidos, comentar cenas a que ninguém deu atenção, pedir explicações sobre um diálogo, um corte, um movimento de câmara – perguntas que extraem aquela reação que marca as grandes entrevistas: “Foi bom você tocar nesse detalhe, porque é importantíssimo, e até hoje ninguém tinha prestado atenção nisso...”

Para isto servem os cinéfilos, principalmente aqueles que, em vez de quererem apenas mostrar conhecimento diante do entrevistado famoso (todos nós já fomos jovens e já fizemos isto) trazem perguntas reais e novas, em vez dos clichês de sempre.

Bogdanovich tem a preocupação constante de reconstituir e documentar uma época, um momento da produção dos filmes norte-americanos durante o século 20, quando a Hollywood dos grandes estúdios produziu um milhão de porcarias e algumas centenas de filmes onde alguma coisa acontece de verdade.

Cada uma das 800+ páginas do livro tem pepitas interessantes.



Hitchcock (sobre Downhill, filme de 1927):
Lembro-me de uma cena deste filme que rodamos no metrô de Londres. Só podíamos filmar depois da meia-noite, após a passagem do último trem, de modo que primeiro fomos ao teatro – e naquele tempo ia-se a uma estréia no teatro todo mundo vestido a rigor. Depois da peça, fomos filmar, e eu de gravata branca e cartola. Foi o momento de direção mais elegante de minha carreira.




Otto Preminger:
Tudo que vejo pode me influenciar. Quando a Nouvelle Vague começou, eles cortaram todos os efeitos ópticos, as fusões, os fade-outs, não por experimentalismo, mas porque não tinham dinheiro. Quando vi os filmes deles, decidi que fusões retardam o ritmo do filme, a não ser que sejam usadas com muito critério e não automaticamente (só para indicar passagem de tempo). E nos meus filmes seguintes parei de usá-las.



Edgar G. Ulmer (sobre dirigir faroestes no cinema mudo):
Era muito divertido. Havia duas ruas de “cidadezinha do Oeste”. Na parte de cima de uma delas, William Wyler filmava; e eu ao mesmo tempo, na parte de baixo. Quando Willy precisava dos cavalos e dos cowboys, eu fazia os close-ups do meu filme. Quando acabavam meus close-ups eu pedia os cavalos de volta. Cada um de nós dirigiu 24 filmes por ano. O cronograma era: segunda e terça, escrever o roteiro e fazer pré-produção; quarta e quinta, rodar; sexta, montar; e no sábado ia todo mundo para os cassinos de Tijuana, jogar com o produtor Carl Laemmle.



(Lang dirigindo Metropolis)

Fritz Lang (sobre alívio cômico):
Veja o caso de Shakespeare. Depois de uma cena muito forte, ele bota toda vez uma cena cômica. Eu tinha uma edição bem antiga do Otelo onde depois de uma cena forte aparecia a rubrica: “Entra o Urso”. Que diabo era isso? Finalmente alguém me explicou. Isso era uma sobra de uma edição muito mais antiga. Naquele momento da peça Shakespeare sentia que a audiência precisava de algo mais leve, então entrava um urso, com o domador e provavelmente alguns músicos tocando. Faziam umas brincadeiras e assim descarregavam a tensão, para que o processo todo pudesse recomeçar. Ele não podia começar a criar tensão na primeira linha e depois subir sem parar. Poder, pode; mas a platéia aguenta?



(Allan Dwan, de boné)

Allan Dwan (em 1969, sobre o futuro do cinema e da TV):
Eu gosto da TV, e ela pode ser boa, se pudermos nos livrar dos executivos de Madison Avenue. Porque eu acredito que a TV é um teatro tão bom quanto qualquer outro, se você projetar as coisas para ela, ficar dentro dos limites dela. É a TV paga que vai tomar conta um dia. Quando acontecer, as melhores produções do mundo vão ser feitas para esse tipo de tela. E vão ser melhores do que qualquer coisa que foi feita para o cinema, porque pode-se investir mais dinheiro nela – vai ter mais dinheiro entrando.



Howard Hawks (sobre linguagem):
A melhor coisa é você contar a história como se a estivesse vendo. Deixe o espectador ver exatamente o que veria se estivesse naquele local. Conte normalmente. Na maior parte do tempo, minha câmera fica ao nível dos olhos. De vez em quando eu a movimento, como se alguém estivesse andando e visse algo. E eu recuo, ou avanço, para dar ênfase, quando não quero cortar o plano. Mas afora isso, uso a câmara mais simples do mundo.



Leo McCarey (sobre trabalhar com Duke Ellington):

Como eu também sou músico, o que mais me entusiasmou foi trabalhar com Duke Ellington [em Belle of the Nineties]. Eu o mantive no estúdio duas semanas a mais do previsto, e um dia o chefe de produção foi lá para ver o que estava acontecendo. Eu estava tocando piano e a orquestra inteira, regida por Ellington, estava me acompanhando. O cara começou a berrar: “Ellington, encerra tudo esta noite!” Quando ele deu esse prazo era meio-dia, e ainda faltava orquestrar um número musical completo. Ellington ficou de pé, parou na frente da orquestra e começou a solfejar as partes de cada naipe de instrumentos, de cada secção. E com poucas interrupções, em poucas horas ele fez o arranjo completo. Às seis da tarde, Mae West estava gravando o número. Só fez isso porque todos os músicos eram muito talentosos: ele conseguiu gravar esse arranjo sem escrever uma nota sequer.