quinta-feira, 6 de outubro de 2022

4870) A arte da trilogia (6.10.2022)



O sucesso da trilogia fílmica O Senhor dos Anéis (2001-02-03 ) de Peter Jackson enfiou esse conceito trilógico no juízo das pessoas, como se fosse uma verruma. Ninguém fala mais: “Vou escrever um romance”. Romance é para os fracos. É só “vou escrever uma trilogia”.
 
Pra que tanta pressa? Custa nada escrever um livro, para confirmar que pode, e depois “alçar mais altos voos”, como diria o poeta? Uma coisa que sempre questionei foi o fato de que trilogia não é um conceito literário (como “romance” ou “conto”), mas editorial. É uma forma de publicar obras de ficção muito longas.
 
E as trilogias não surgiram com Tolkien – que se irritou muito com seus editores quando estes sugeriram publicar Lord of the Rings em três volumes. Ele queria um livro só, porque assim foi concebido. Os editores explicaram que o livro tinha cerca de 1.500 páginas, ficaria muito grande e muito caro. Por outro lado, a estrutura narrativa interna comportava uma divisão em três partes bastante nitidas. Tolkien concordou, com a condição de que os livros saíssem com uns seis meses de intervalo, o que aconteceu. Foi a decisão mais acertada.
 
Aliás, trilogia não é o único modelo, porque na literatura mainstream temos o “Quarteto de Alexandria” de Lawrence Durrell (Justine, 1957; Balthazar, 1958; Mountolive, 1968; Clea, 1960), e na FC temos a insuperável decalogia Missão: Terra (1985-1987, dez livros, com cerca de 4 mil páginas ao todo).


Robert J. Sawyer, um autor canadense talentoso e premiado, é meio que um especialista nessas séries caudalosas. E tem uma interpretação interessante a respeito, numa entrevista à Locus (#600, janeiro 2011).
 
Diz ele que existe a trilogia próxima ao caso de Tolkien, a que nasce de uma única história que acaba se estendendo demais, o que dificulta a publicação num só volume. No caso dele, Sawyer fornece como exemplo sua trilogia “WWW”, em que uma garota cega recebe implantes que lhe permitem “ver” por dentro a World Wide Web. Os três volumes são Wake (2009), Watch (2010) e Wonder (2011).


Diz Sawyer (trad. BT):
 
Vistos em conjunto, penso neles como um só romance. Lembro de tudo que acontece ali, mas é preciso um esforço real, de minha parte, para saber em que ponto específico, de qual livro, algum fato ocorre. Se o público teve alguma queixa a respeito de Wake, a reclamação mais frequente foi de que há linhas narrativas que não foram devidamente encerradas. Todas se encerraram no final de Wonder – e de uma maneira espetacular, eu acho!
 
Existe um segundo tipo, para Sawyer. São três livros diferentes, mas que formam uma espécie de tríptico, de conjunto que se complementa de forma harmoniosa. Ele dá como xemplo sua trilogia conhecida como “The Neanderthal Parallax”, onde ele narra o contato de um grupo de cientistas com uma realidade paralela onde os homens de Neanderthal se desenvolveram e criaram uma civilização análoga à nossa. Os três volumes são Hominids (2002), Humans (2003) e Hybrids (2003).
 
São narrativas que envolvem uma complexa comparação entre sistemas sociais parecidos e diferentes – duas humanidades evoluindo ao longo de linhas que divergem em alguns pontos e convergem em outros, suscitando questões antropológicas, filosóficas, biológicas, religiosas, etc.




Diz ele:
 
Num caso assim, você escreve um livro em que um habitante desse mundo vem até o nosso; depois um livro onde um de nós vai visitar o mundo dele, e por fim um livro em que uma co-existência entre os dois mundos se desenvolve de forma estável. Isto produz uma trilogia natural.
 
Não li nenhum destes romances, e estou me baseando apenas nas declarações do autor. Creio que para descrever de forma mais precisa essa idéia dele – a de um triptico, três histórias diferentes formando um conjunto temático – seria preciso haver diferenças significativas de livro para livro, para que a obra não se tornasse um mero “livrão” dividido em três pedaços. Três elencos distintos de personagens principais, por exemplo, ajudariam a dar a cada livro esse tipo de autonomia narrativa, mas não sei se é o caso.  


 
O terceiro tipo, segundo Sawyer, é uma espécie de trilogia involuntária. Diz ele:
 
Neste caso, você escreve um livro que faz muito sucesso. Aí, recebe a encomenda de uma continuação, que também faz um sucesso muito grande. Aí você escreve um terceiro livro e avisa: “Pra mim, chega”.
 
Sawyer cita, a este propósito, sua trilogia chamada “The Quintaglio Ascension”, composta pelos livros Far-Seer (1992), Fossil Hunter (1993) e Foreigner (1994). A premissa, bastante ousada, é de que em tempos remotos uma civilização alienígena transportou dinossauros terrestres para um planeta remoto com condições físicas semelhante à Terra, e ali os dinossauros desenvolveram inteligência, cultura, tecnologia e ciência – a série, inclusive cria equivalentes sáurios a Galileu Galilei, Isaac Newton e Sigmund Freud.
 
No caso da trilogia involuntária, há que considerar que no primeiro volume o autor teve que proceder a uma “construção de um mundo” cheia de detalhes, exigindo pesquisas, etc., e de certa forma, mesmo sem querer, isso deixava meio caminho andado para um volume dois e um volume três. O alicerce já estava assentado. Isto não é a mesma coisa, contudo, do que sentar e preparar três resumos longos e detalhados para os volumes 1, 2 e 3 de uma série – o que seria o segundo exemplo.
 
Séries de romances oscilam entre esses três modelos sugeridos por Sawyer, que tem a seu favor a longa experiência prática.




Se pegarmos uma série famosa de FC, o “Book of the New Sun” de Gene Wolfe (quatro livros publicados entre 1980 e 1983), vemos aí o modelo tolkieniano perfeito, porque trata-se de uma única história, narrando o percurso de vida e amadurecimento de um personagem central, Severian, que evolui de aprendiz de torturador (no livro 1) até Autarca do Império (no volume 4). Não são livros que possam ser lidos fora de ordem, ou isoladamente. É uma história só, inteira, contínua.
 
Tentei pensar num exemplo de “tríptico”. Me ocorreu que o próprio Gene Wolfe tem uma obra modelar, se considerarmos “uma trilogia de noveletas”. The Fifth Head of Cerberus (1972) é um livro com três noveletas diferentíssimas, mas compartilhando o mesmo universo, e ao ler cada uma delas a gente tem revelações essenciais sobre o enredo e o significado das outras duas. Se alguém fizer isso com três romances...



É mais ou menos o que Jeff VanderMeer fez em sua trilogia “Comando Sul” (Southern Reach), que traduzi para a Ed. Intrínseca sob os títulos Aniquilação, Autoridade e Aceitação. Três histórias em torno de um mesmo fenômeno espantoso (uma visitação alienígena no litoral da Flórida), onde os personagens se repetem, mas há várias mudanças de ponto de vista, e cada livro esclarece coisas que estão ausentes dos demais.
 
Aliás, é interessante o viés editorial que faz os autores darem as mesmas letras iniciais para os diversos livros – uma estratégia de “recall”, fazendo o leitor associar com rapidez os volumes uns aos outros (e correr pra comprar o que falta).
 
William Gibson, o inventor do cyberpunk, já tem na estante umas três ou quatro trilogias com um perfil diferente. A primeira e mais famosa tem Neuromancer (1984), Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988), que pode, sim, ser considerada um tríptico, porque são três histórias cronologicamente sucessivas, onde alguns personagens se repetem, mas cada uma delas se conclui satisfatoriamente. Não é necessário ler o que vem depois – embora essa leitura, claro, acabe iluminando certos aspectos do que foi contado no livro anterior.



No Brasil, temos um exemplo de trilogia de FC talvez não planejada. Jorge Luiz Calife publicou em 1985 seu Padrões de Contato, depois que Arthur C. Clarkle lhe agradeceu publicamente por algumas idéias para escrever 2010, sequência de 2001, uma Odisséia no Espaço. Na época, Calife enfrentava três preconceitos, como ele mesmo relata com bom humor: era brasileiro, era desconhecido, e escrevia FC. Ou seja, não havia a menor garantia de que viesse a publicar um segundo livro, mas publicou (Horizonte de Eventos, 1986). As vendas devem ter sido o pinga-pinga habitual de todos nós da FC brasileira; mas anos depois ele fechou a trilogia com Linha Terminal (1991), pela Ed. GRD. A trilogia saiu completa num só volume, pela Devir (SP).
 
Em princípio, não há nenhum mérito ou demérito especial em conceber uma narrativa em três partes sucessivas (ou quantas forem) a serem publicadas independentemente. O problema surge apenas quando criação literária e projeto editorial entram em conflito, e isto pode ocorrer de mil maneiras.
 
No caso de uma “trilogia involuntária” pode ocorrer o caso de dois romances bem sucedidos, mas auto-suficientes, obrigarem um autor já sem novas idéias a esticar num terceiro livro uma narrativa que não tinha mais para onde ir.
 
Pode ocorrer também que uma trilogia planejada e anunciada publicamente no primeiro volume acabe se interrompendo porque o autor enveredou numa crise criativa, questionou a validade do projeto original e decidiu começar do zero um projeto novo. Foi o caso de Ariano Suassuna com o seu ciclo da “Pedra do Reino”.