Estou assistindo a Parte 2 do documentário de Peter
Jackson, The Beatles – Get Back (Disney
Channel, 3 episódios).
A primeira parte terminou com a crise do afastamento de
George Harrison. Ele viu a certa altura que nenhum dos companheiros estava lhe
dando muita atenção, a não ser para dizer “toque isto, toque aquilo”, como se
ele fosse um músico-de-estúdio pago pela banda. Levantou-se, anunciou: “Estou
indo embora da banda, contratem alguém para meu lugar.”
Na época (1969) lembro com clareza que cheguei a ler na
imprensa algo como “Depois de uma briga
no ensaio com os colegas, Harrison foi visto deixando o estúdio furioso, com o
nariz sangrando, após receber um soco de McCartney.” Pensávamos que os
Beatles trocavam sopapos durante as gravações. Disseram na época que alguns daqueles
vocais primorosos de Abbey Road,
gravado meses depois, foram feitos sem que Lennon e McCartney se encontrassem
pessoalmente – um botava a voz de manhã, o outro à tarde. Verdade? Não sei.
Já vi coisa muito mais preocupante, em ensaio, do que as discussões
e os aborrecimentos que Peter Jackson mostra aqui. Os Beatles batiam boca e
ficavam enfarruscados uns com os outros? Sim, e todo mundo faz isso quando está
trabalhando sob pressão, precisa entregar resultado com prazo fixo, e não sabe
direito como resolver os problemas que tem pela frente.
Yoko Ono contribuiu para isso? Sempre duvidei. Nesta
série, pelo menos, Yoko é mais silenciosa do que a Mona Lisa. E Paul McCartney,
num rasgo de precognição, ironiza a certa altura: “Pois é... e daqui a
cinquenta anos vão dizer que os Beatles se acabaram porque Yoko sentou em cima
de um amplificador.” Mal sabia ele o
quanto estava certo.
(Yoko Ono)
Algumas pessoas perguntam se a gente aconselha ver a
série. Para quem quer se divertir, eu não aconselho. Posso aconselhar somente para
as pessoas que, não sendo do ramo musical, têm curiosidade em saber como são os
bastidores da música profissional, ou pelo menos como era esse ambiente meio
século atrás. Muita coisa mudou. Muita coisa não mudará nunca. Mas para quem só
vê esses grupos no palco, é muito esclarecedor vê-los na ralação do dia-a-dia.
Há um momento que poderia ser um curta por si só, quando McCartney lê com voz caricatural algumas matérias de jornal fazendo sensacionalismo com as brigas do grupo, enquanto Lennon cobre a voz dele com barulheira de rock.
Uma das cenas mais interessantes do doc aparece na parte
inicial deste segundo episódio, após a briga com George. São cerca de quatro
minutos, entre o 12’ e o 16’. Lennon e McCartney afastam-se para discutir a
situação. A equipe, prevendo isto, colocou um microfone disfarçado num vaso de
flores. A cena fica mostrando o vaso, com leves movimentos de câmera, e ouvimos
ao fundo o áudio da conversa de John e Paul, com as falas (meio abafadas)
transcritas em legendas.
Os dois conversam, previsivelmente, sobre a necessidade
de falar com George, pedir desculpas, reintegrá-lo no trabalho, que naquele
momento roda todo em torno das canções da dupla... Discutem a atitude “mandona”
de Paul na concepção e execução dos arranjos...
O mais interessante é que essa conversa é um dos raros
momentos do “filme” em que os dois não estão fazendo palhaçadas ou
caras-e-bocas para a câmera. Eles julgam estar a sós. E nesse áudio a fala dos
dois muda muito. O sotaque (que imagino ser o “scouse”, o jeito de falar típico de Liverpool) fica acentuado a
ponto da gente ter dificuldade em entender, sem a legenda, alguns trechos simples.
São duas vozes que ouço (na música, filme, etc.) desde que me entendo de gente,
e acho que nunca as tinha escutado num acento tão carregado, tão alienígena.
Já percebi que a maioria das pessoas, quando está num
momento emocionalmente muito tenso, muito carregado (raiva, tristeza, desabafo,
etc.) reverte ao seu sotaque regional da infância, principalmente se estiver
discutindo com pessoas da família. (Eu reverto para aquele sotaque paraibano que
botava Lampião pra correr.)
Acho que é isso que se dá com John e Paul: naquela hora, estão
a sós, e num momento emocionalmente
tenso. E a fala liverpudliana volta “com força”. É um momento-verdade. Não é
palhaçada ou “atitude” voltada para as câmeras, como em todo o restante. Nesse
momento, a série deixa de ser “reality show” e vira “escuta telefônica”.
(Peter Sellers / John Lennon)
E por falar em palhaçada, quem faz uma breve visita ao
estúdio de Twickenham é Peter Sellers, amigo dos Beatles há muito tempo. Ele se
preparava para as filmagens (ao lado de Ringo Starr) de The Magic Christian, no mesmo estúdio, dali a algumas semanas.
É curioso ver Lennon e Sellers lado a lado, porque muitas
das macaquices e dos lero-leros de Lennon têm a ver com Peter Sellers. Ambos
gostam de exibir aquela cara branca, aparvalhada, com um sorriso fixo de
manequim, enquanto usam uma voz anasalada ou roufenha para dizer
inconsequências, ou dialogar com fantasmas de nomes saxões.
Esse humorismo britânico meio abobalhado não é para todo
mundo; é um gosto que se adquire aos poucos. Os Beatles sempre estiveram com um
pé dentro dele. Lennon era um grande fã de The Goons, o grupo de humor
radiofônico dos anos 1950 que reuniu Sellers, Harry Secombe e o impagável Spike
Milligan. Muitos dos textículos absurdistas dos livros de Lennon têm grande
influência da prosa caricatural de Milligan.
É bom lembrar que, anos depois, George Harrison seria um
grande amigo e co-financiador de algumas das aventuras do Monty Python,
herdeiros espirituais dos Goons.
Depois da visita de Sellers, e de um novo encontro com
George, os Beatles se transferem para o estúdio da Apple, em Saville Row. Sair
daquele mausoléu gelado de Twickenham fez muito bem à banda. O novo estúdio é
minúsculo e apertado, mas eles retomam o trabalho com outro espírito. Também
ajuda a chegada do pianista Billy Preston, bom instrumentista, meio tímido mas
à vontade, e claramente alguém de quem a banda gostava (tinham se conhecido em
Hamburgo, no tempo das vacas magras e dos hamburgers divididos).
Existe coisa mais exaustiva do que passar o dia ensaiando
(música, teatro, seja o que for), das 10 às 10?
Existe coisa mais exaustiva do que fazer “reunião de
produção” e tomar decisões irreversíveis enquanto ainda se está totalmente “no
escuro” quanto às reais possibilidades?
Não é de admirar que os Beatles façam tanta brincadeira
boba. Ou melhor: que John Lennon faça isso o tempo todo. Paul, que tinha com
ele um bluetooth-telepático, embarca nas zuêras de vez em quando, mas tenta se
comportar como um herdeiro hierárquico de Brian Epstein, o falecido empresário.
George, reconciliado (provisoriamente) arrisca de vez em quando um sorriso, de
vez em quando uma frase. Ringo é Ringo. O único ser humano Zen que já vi na
vida. (O problema é que o preço de ser Zen é ser Ringo.)
Peter Jackson consegue a proeza de passar horas, literalmente, mostrando esse tipo
de coisa, mas ele é um produto da era do “Reality Show”, tem olho atento e
cronômetro embutido. Quando as tomadas começam a se alongar, ele joga um non sequitur, uma incongruência, um
corte brusco de áudio, um corte brusco de movimento ou de enquadramento... e
acorda o espectador.
Aqui, a parte 1:
E a parte 3 (final):
https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/12/4773-beatles-get-back-parte-3-12122021.html