terça-feira, 1 de dezembro de 2009

1393) O culto à personalidade (31.8.2007)



Eu estava descansando-o-almoço diante do History Channel, degustando um programa sobre a Era do Stalinismo, cujo roteiro ilustrava o culto à personalidade que ajudou Stálin a se manter no poder durante décadas. Todos nós sabemos do que se trata. O comunismo acabou com a religião, declarou Deus “persona non grata”, pulverizou a monarquia, os rituais, as pompas e circunstâncias que recobrem essa antiquíssima instituição. E o roteiro dizia: “Alguém teria que ocupar esse vácuo, e ele foi ocupado, naturalmente, pelo próprio Stálin”. E aí, pronto: nos anos 1930 você chegava na cidade de Stalingrado, pegava a Avenida Stálin, hospedava-se no Hotel Stálin, e à noite ia ao Teatro Stálin ver o Balé Stálin apresentar a coreografia “Vida e Glória do Camarada Stálin”.

A monarquia, como já falei aqui, é uma causa-e-conseqüência da visão monoteísta. Um só Deus no Céu, um só Rei na Terra. O universo religioso e monárquico é um Círculo com um ponto no centro. Essa visão-do-mundo foi pulverizada após a Revolução Francesa e a instituição, no mundo ocidental, dos governos republicanos. Se as monarquias correspondem ao monoteísmo, a República é um politeísmo democrático, uma espécie de Monte Olimpo onde os deuses vivem brigando pelo poder, intrigando e conspirando uns contra os outros, mas são forçados a manter as aparências, conviver civilizadamente, dar tapinhas nas costas dos adversários e chamar-se em público de “Vossa Excelência”.

A mentalidade republicana acabou a visão-do-mundo como um círculo com um centro. Visualmente, a República é uma pirâmide cujo conteúdo executa um movimento ascendente. Quem está na base sonha em subir para o meio, quem está no meio está bem pertinho do topo, e quem chega ao topo briga para se manter ali. O Topo é o novo Centro. E – este é o grande salto qualitativo da república – existe um rodízio no Topo. Em vez de seus ocupantes serem escolhidos por Deus, como eram os reis, eles são (para resumir um processo intrincado) escolhidos pelo Topo, ratificados pelo Meio e eleitos pela Base. Mais ou menos isto.

Daí que o culto à personalidade nos países democráticos e republicanos seja diferente do que ocorre nas monarquias e nas ditaduras. É um culto à personalidade pulverizado, diluído, democraticamente atirado no ventilador. Qualquer um pode ser objeto do culto à personalidade. Quem descobriu isto foi Hollywood, depois a TV e a indústria fonográfica tomaram conta, e agora é isto que se vê. As capas das revistas, os talk-shows, as colunas sociais, os cadernos de variedades: estes são os novos templos do culto à personalidade no universo republicano, onde, em princípio, qualquer um pode ser eleito presidente e qualquer um pode ir parar na capa da Veja ou no programa de Jô Soares (ou na capa da Time e no programa de David Letterman). A pirâmide não cessa de produzir gente, e todos se acotovelam tentando chegar na luminosa telinha triangular que reluz no seu Topo e o oculta.

1392) Crimes de arte (30.8.2007)


("A Fonte", de Duchamp)

O que leva alguém a praticar um crime contra uma obra de arte? Os ladrões de quadros querem ganhar dinheiro; é um roubo banal. Mas o que passa na cabeça de um sujeito que entra num Museu com uma faca escondida na roupa, e, na primeira bobeira dos seguranças, pula sobre um quadro e começa a cortá-lo em tiras?

O saite “Art Crime” (http://renewal.va.com.au/artcrime/pages/front.html) reúne material sobre vários casos famosos, uns incompreensíveis, outros grotescos, todos meio absurdos. O famoso quadro de Rembrandt A Ronda Noturna já foi atacado três vezes, no Stedelijk Museum, de Amsterdam, duas delas a faca e uma com ácido sulfúrico. Nos dois primeiros casos, houve restauração; no último, os guardas agiram a tempo e o ácido só atingiu a camada superficial de verniz. O primeiro ataque, em 1911, foi por parte de um ex-marujo demitido que queria protestar contra o Governo. E Rembrandt pagou o pato.

Alguns ataques são “conceituais”, como o do artista performático Pierre Pinoncelli contra A Fonte de Michel Duchamp. Para quem não sabe, esta obra consiste num simples urinol de porcelana, desses de mictório público, retirado do seu contexto e exposto como obra de arte. Pinoncelli urinou no urinol (até aí tudo bem) e depois o atacou com um martelo. Recebeu uma multa de algumas centenas de milhares de francos. Também performático foi o ataque do russo Alexander Brener contra o quadro Suprematisme do seu conterrâneo Malevich em 1997, sobre o qual ele pintou com spray um cifrão. Brener é conhecido pelo seu hábito de interromper eventos públicos, (principalmente os que envolvem alguma discussão sobre arte) praticando alguma ação desmiolada.

Há casos em que o artista ajuda isso a acontecer. Yoko Ono, uma conhecida advogada da interatividade, teve suas obras “interferidas” por um estudante de arte em 1997: ele pegou uma caneta vermelha e riscou cinco de uma série de 25 painéis expostos pela artista numa galeria nos EUA. Em sua defesa, alegou uma frase da viúva de John Lennon: “Ninguém pode proibir você de tocar numa obra de arte”.

E há aqueles que são doidos mesmo e fim de papo. Um dos sujeitos que atacaram o quadro de Rembrandt era um desequilibrado que, depois de cumprir algum tempo numa clínica psiquiátrica, fugiu e foi até Amsterdam onde arrancou um tampo bem no meio de um quadro de Picasso, Mulher Nua Diante de um Jardim, no mesmo Stedelijk Museum.

Os performáticos, tudo bem; mas os doidos, por que motivo atacam obras de arte, e não um telefone público ou um cartaz de propaganda? Eu acho que é porque uma forma de ser doido é não entender a arte. Perceber a adoração das pessoas àquele objeto, e não saber por quê. Ele sabe apenas que é algo sagrado, mas, como um cachorro diante de um animal que nunca viu, sua única reação é arreganhar os dentes e partir pra cima. Porque, afinal, não estão sozinhos. Muita gente que não é doida também agiria assim, se pudesse, diante do que não compreende.

1391) O julgamento de Salomão (29.8.2007)





("O Julgamento de Salomão", por Gustave Doré)

Philip K. Dick dizia que uma máquina é alguém incapaz de agir como um ser humano, mesmo que seja um ser humano biológico. 

Não é um paradoxo gratuito, porque muitas pessoas só têm de humano o corpo em carne e osso, mas sua mente se comporta como a mente de um robô ou (como Dick lembrava) a mente de um inseto, que não faz julgamentos, não tem sentimentos, apenas sabe que precisa alimentar-se e para isso precisa devorar essa outra coisa viva à sua frente. Essa outra coisa viva podemos ser eu e você.

Um psicótico grave ou um viciado em drogas em estado avançado são “máquinas”, na visão de Dick. 

O que dizer de um serial killer, desses que tocaiam as vítimas, seqüestram, torturam e matam, apenas para extrair disso um prazer bestial? Não é um ser humano. O que dizer de um viciado em heroína que, no auge da crise de abstinência, sai para a rua à procura de 10 dólares e mata uma pessoa para vender por 10 dólares um relógio que vale 500? É uma máquina. 

São seres biologicamente humanos cuja mente está dominada a tal ponto por uma “função” que eles deixam de fazer as escolhas tipicamente humanas, tomar as decisões mais caracteristicamente humanas. Existem com a idéia fixa de cumprir aquela função que se apoderou se suas mentes por completo.

No filme Clube da Luta o personagem de Edward Norton trabalha para uma empresa de consultoria de seguros ou coisa parecida. Seu trabalho consiste em acompanhar acidentes de automóvel provocados por falhas mecânicas nos carros, e avaliar o que é mais caro: chamar os compradores de volta (fazer o “recall”) para trocar os produtos defeituosos, ou pagar os seguros dos acidentados, mesmo as vítimas fatais. Se o seguro for mais barato, eles deixam as pessoas morrerem. 

Quem toma decisões assim (e sabemos que decisões assim são tomadas o tempo inteiro no mundo corporativo) é um humano ou uma máquina?

Há um episódio famoso do Rei Salomão (I Reis, 3: 16-28) em que duas mulheres disputam um bebê, cada qual dizendo ser sua mãe. Salomão sugere que o bebê seja cortado ao meio e cada mãe fique com uma metade. Uma delas concorda, mas a outra prefere que o bebê seja entregue inteiro à rival – e Salomão percebe que esta última é a verdadeira mãe. 

O teste de Salomão é um verdadeiro “teste de Turing”, o teste proposto pelo matemático Alan Turing para distinguirmos (sem ver) as respostas de uma pessoa das respostas de uma máquina. Diz a Bíblia: “A mulher porém, cujo filho estava vivo, disse ao rei (porque as suas entranhas se enterneceram por seu filho): Senhor, eu te peço que dês a ela o menino vivo e não o mates”. 

A imagem literária das entranhas tem tudo a ver com a situação de quem foi mãe, e mãe recente. Mas em verdade vos digo, caros leitores, que se diante de situações como algumas que referi neste artigo, e muitas outras que rolam por aí, as nossas entranhas metafóricas não se revoltarem, é porque somos máquinas. Não somos homens, e não merecemos ser tratados como tal.





1390) O realismo naturalista (28.8.2007)




(Julio Cortázar)

Os critérios do realismo na arte às vezes não batem uns com os outros. Algo é realista se visto de um ângulo, e não é, se visto de outro. 

Numa novela das 8 nada acontece que não possa acontecer na vida real (ultimamente têm aparecido fantasmas em tudo quanto é novela, mas estes sempre podem ser atribuídos a alucinações, etc.). Mas nelas aparece muita coisa que não bate com a realidade. Não questionarei a verossimilhança psicológica (“não é realista uma mãe se comportar assim!”), porque psicologicamente qualquer coisa pode ser justificada. 

Também não discutirei erros de continuidade ou anacronismos: “se a história se passa em 1958, a música tal, que é de 1962, não podia estar tocando no rádio”. Coisas assim são descuidos, não fazem parte da concepção da obra.

No mundo das telenovelas constatamos a ausência inexplicável de detalhes realistas, que nos levam a perguntar que mundo é aquele onde as pessoas vivem. Um exemplo muito citado é a total ausência, naqueles apartamentos, de interfone no prédio ou de olho-mágico na porta, o que proporciona aquelas surpresas de fim-de-capítulo, em que a campainha toca e as pessoas abrem sem poder verificar quem está tocando. Algo absurdo em nosso mundo; mas no mundo da novela é assim, e todo mundo aceita.

Julio Cortázar discutiu esta questão certa vez, quando um crítico questionou o fato de um personagem num romance seu chegar em casa depois de meses fora, ligar o carro e o motor deste “pegar” imediatamente. O crítico perguntou se isto era um exemplo do “realismo mágico”; Cortázar replicou que não, porque bastaria ao personagem ter deixado uma cópia da chave com um vizinho de confiança, como tanta gente faz, para que de vez em quando ligasse o motor, evitando que a bateria arriasse. 

“O realismo mágico,” disse ele, “se ocorre, é num plano muito menos banal”.

O mundo das telenovelas é interessante porque violenta o naturalismo o tempo inteiro. Basta assistir novelas mexicanas, perto das quais as da Globo são verdadeiros filmes de Luchino Visconti. Ali vemos aquelas mulheres que de madrugada são acordadas pelo telefone, acendem a luz de cabeceira e estão maquiladíssimas e com o cabelo todo armado, como se acabassem de chegar numa festa. Aqueles indivíduos que pegam uma briga de socos, e saem sem uma marca no rosto. Para um espectador de TV mais escolado, acostumado a produtos feitos de maneira mais exigente, tudo isto provoca risos de incredulidade. Os mesmos risos de um espectador de filme de Visconti quando se depara com o pseudo realismo da novela das oito.

Cada gênero usa um realismo aparente na medida de suas necessidades para que suas características de gênero prevaleçam. Até uma comédia de Mel Brooks, dos Irmãos Marx ou de Monty Python, que desmontam qualquer convenção, tem que ser verossímil e convincente em tais ou tais elementos para que as piadas possam funcionar. É preciso convencer o espectador de que, no mundo proposto, aquilo está de fato acontecendo.