domingo, 18 de dezembro de 2022

4894) Entrevistas Transcendentais: Alfred Hitchcock (18.12.2022)




O elevador é espaçoso, sem ruído, e meus sapatos se afundam num carpete fofo. No final do largo corredor, uma secretária ergue-se da mesinha e me conduz a uma sala interna, ampla, com teto altíssimo. As paredes são cobertas de cartazes e fotos emolduradas. Há uma estante envidraçada a um canto, dois sofás, três poltronas, uma mesa baixa de madeira, sem nada em cima a não ser três cinzeiros de vidro. Ela me pede que espere e sai, pé ante pé. Fico olhando a janela envidraçada e enorme por onde entra a luz da manhã californiana, onde arde um sol de ouro. 
 
Um minuto depois abre-se outra porta ao fundo e ele se aproxima, com passo tranquilo e miúdo, um sorriso formal, a mão estendida, senhor de si. Sentamos, trocamos amabilidades, ele se interessa em saber se fiz boa viagem, se estou bem instalado, se fui bem atendido. Por fim, explico-lhe o conceito por trás da minha visita.
 

HITCHCOCK - Dizem que tenho uma relação difícil com a imprensa. Por quê? Poucos diretores receberam tanta cobertura de imprensa quanto eu, o que prova que sei como os jornalistas pensam. Se gosto das críticas? Incomoda-me a injustiça de me atribuírem, mesmo de boa fé, intenções que nunca tive, ou de exibirem má-vontade para com certos aspectos do meu sucesso.
 
BT – Há diretores que se fecham em si, se distanciam do público. Com o senhor, parece ter sido o contrário. O senhor se preocupa em saber o que as pessoas pensam de cada filme, de cada plano em cada filme.
 
HITCHCOCK – Concordo, com uma correção: não o que as pessoas pensam, mas o que elas sentem. O que procuro é um cinema de comunicação instantânea, onde o ato de ver e a descarga de emoção sejam quase simultâneos. Deixar o público num estado de interrogação; depois, de surpresa; depois, de medo, de riso, de indignação, de simpatia...
 
BT – Talvez também um estado de juízo crítico, de distanciamento?...
 
HITCHCOCK – Menos! Muito menos. Somos educados para pensar criticamente o tempo todo. O cinema quebra essa barreira racionalista e vai no ponto mais fundo de cada pessoa. Muitos dos roteiros que filmei tinham que ter trechos expositivos, com diálogos falando da política, da psicanálise, da investigação policial... O cinema sonoro produziu este pesadelo: o blá-blá-blá filmado. Sou de um tempo em que apenas víamos os lábios se movendo e deduzíamos sem erro o que estava sendo dito. 
 
BT – Muitas vezes o senhor se vinga do diálogo irrelevante de forma até óbvia.
 
HITCHCOCK – Sim, acho que consigo, com certa frequência, fazer com que as ações na tela sirvam de desmentido às falas. Os diálogos, em  geral, são irrelevantes, estão ali apenas para que a cena pareça realista. As pessoas falam demais na vida real, não acha? Palavras, palavras...
 
BT – Eu tenho uma curiosidade especial em saber a forma como o senhor escolhe os títulos dos filmes. Alguns são óbvios ou banais, mas outros parecem cuidadosamente pensados. 
 
HITCHCOCK –  Isto varia de caso para caso. No cinema empregamos muito os títulos provisórios; North by Northwest se chamou durante algum tempo A Mulher no Nariz de Lincoln. Creio que O Homem Que Sabia Demais é um bom despiste, porque esse personagem é claramente o agente que morre apunhalado no mercado ao ar livre, na sequência inicial do filme, no Marrocos. O protagonista (James Stewart) é, como sempre, alguém que só conhece a verdade aos pedaços, nunca sabe o suficiente. 


 
BT – O senhor fala frequentemente no contraste entre o suspense e a surpresa.
 
HITCHCOCK – São dois instrumentos úteis, e a sabedoria está em usá-los da forma adequada. Prefiro defini-los como: “A Ignorância do Espectador” e “A Onisciência do Espectador”. No primeiro caso, acontece algo que ele não entende por completo, e por isso o desfecho é surpreendente: um simples susto, digamos. A ignorância do espectador, porém, deve ser explorada para gerar mais que o mero susto. Gerar a estranheza: a cena da estrada e do avião em North by Northwest, da loja do taxidermista em O Homem Que Sabia Demais... A estranheza é tudo. 
 
E há as situações em que o espectador é onisciente, ou seja, ele sabe coisas que os personagens não sabem. Muitos efeitos de suspense brotam desse tipo de situação. Veja a cena de Rear Window em que Grace Kelly penetra no apartamento do assassino em busca de provas, e nós vemos à distância que o assassino está voltando pelo beco. Somos oniscientes, vemos tudo, e não podemos fazer nada para avisá-la – nesse momento, “somos” James Stewart, que está nessa mesma situação. 
 
BT – Muitos cineastas afirmam que pensam só no filme, e quase nunca no espectador. Certamente não é o seu caso. O senhor pensa o tempo todo nas reações do público.
 
HITCHCOCK – Mas é claro! O cinema existe para isto! Alguns colegas meus têm uma visão interiorizada, voltada para seus dramas íntimos, e eu os respeito. Mas também é legítimo pensar nos dramas íntimos do público e tentar contar histórias que tragam esses dramas para a superfície. O suspense é catártico. Tem sua função. 



BT – Quando estudei sua carreira, tive até a impressão de que o senhor era um leitor voraz de romances policiais, e que teria estudado psicologia. Mas logo vi que me enganava. 
 
HITCHCOCK – Minha abordagem reflete minha formação. Estudei engenharia, mecânica, eletricidade, desenho técnico. O cinema veio para mim como consequência do trabalho técnico no estúdio.  Um filme é como uma máquina: uma sucessão de diferentes funções (suspense, riso, susto, romance, etc.) que devem ser cumpridas de maneira consciente, deliberada. O trabalho do roteirista depende do trabalho do ator, que depende do trabalho do fotógrafo, que depende do trabalho do diretor de arte... e por ai vai. 
 
BT – Com esta sua formação técnica, o que acha dos atuais efeitos especiais?  Gostaria de tê-los tido à sua disposição?
 
HITCHCOCK –  Há momentos em meus filmes que exigiram um esforço técnico prodigioso, mas o resultado compensava: o mundo coberto de aves no final de The Birds, o crime na escada em Psicose, a subida da torre em Vertigo... Dezenas de pessoas suando a camisa durante dias para produzir alguns minutos de imagem na tela. E creia-me, todo trabalhavam exultantes. A computação gráfica permite transformar uma pessoa em outra em segundos, apenas apertando meia dúzia de teclas? Ora, ora... Isso é bem típico da época do capital financeiro, em que fortunas fictícias são construídas através de transferências eletrônicas. Nada disso é real. 



BT – Salvador Dalí à parte, eu creio que o senhor tem uma fascinação pelo Surrealismo, pelas imagens improváveis, incongruentes. Algo mais sutil do que uma girafa em chamas, ou um relógio derretido. Penso, por exemplo, nos cigarros que seus personagens apagam num ovo frito (Ladrão de Casaca), num pote de creme facial (Rebecca); no copo que Cary Grant pousa no pescoço da mulher bêbada em Notorious; na freira de saltos altos em The Lady Vanishes; no garoto que exibe um rato morto à mesa do jantar, em Young and Innocent... 
 
HITCHCOCK – O mundo tem uma faceta absurda, que tanto pode virar comédia como tragédia. Meus filmes refletem isso, porque é algo que aprendi na vida. Há uma área limítrofe entre a imitação e a realidade, entre a encenação e a “coisa real”. Muito do que vemos na tela nos parece invenção, mas a vida real é mais rica de surpresas do que imaginamos.    



BT – O que nos leva, de certa forma, à questão de suas breves aparições nos filmes. Há uma certa injustiça nos críticos que atribuem esse gimmick à simples vaidade.
 
HITCHCOCK – Essas aparições começaram por acaso, e se tornaram uma espécie de assinatura.  Eu sempre fui um admirador das artes plásticas. E garoto, indo aos museus ou folheando álbuns, eu me assustava às vezes ao olhar um quadro famoso, geralmente no canto inferior direito, e ver que nas folhas de um jardim ou na água do mar estava escrito o nome do pintor! Ora, aquelas imagens me pareciam reais. Quando um vaso de girassóis mostrava o nome “Vincent” ou o véu de uma freira taitiana trazia o nome “PGauguin” aparentemente bordado, não me passava na mente, de início, que aquele nome fosse um elemento estranho ao quadro. O nome fazia parte daquele objeto! Somente depois, com um pouco mais de idade, vim a entender o que era uma assinatura, e que ela estava numa “camada” externa ao quadro em si. 
 
Quando apareço em meus filmes sentado num ônibus, ou conduzindo terriers pela coleira, ou pondo uma carta no correio, é como se dissesse ao meu público que aquela história aconteceu no mesmo mundo em que eu existo. As pessoas que aparecem naquele filme são tão reais quanto eu – ou então, sou eu que sou tão irreal quanto o mundo delas. O público é livre para escolher!...  (risos) 



BT – O senhor já afirmou que depois de certa época, procurou incluir esse “cameo” nos primeiros minutos do filme, para não distrair o público da história...
 
HITCHCOCK – É preciso usar essas coisas com sensatez. Mesmo assim, confesso que já tive vontade de deixar de fazê-lo em algum filme, e depois afirmar vigorosamente, na imprensa, que estou ali, sim, o público é que não prestou atenção. Algumas pessoas talvez comprassem um novo ingresso, só para conferir. (risos) 
 
BT – O senhor é visto como o mestre do suspense e dos crimes violentos, mas não são coisas equivalentes.
 
HITCHCOCK – Por certo que não. O suspense não precisa da existência do crime, a não ser para ganhar mais dramaticidade. Estar atrasado rumo à estação de trem ou ao aeroporto é uma situação de enorme suspense pela qual todos nós passamos algumas vezes na vida. O suspense é a incerteza entre vários desfechos possíveis. Já a violência faz parte de nossa sociedade, infelizmente. Precisamos descarregar esses impulsos, projetando-os numa atividade inofensiva, simbólica, imaterial como o cinema. 



BT – É engraçado que o senhor qualifique o cinema como algo imaterial, porque problemas materiais, físicos, são a essência dos seus filmes. Livrar-se de um cadáver, por exemplo.
 
HITCHCOCK – Isso me fascina, porque depois que cometemos o mais horrível dos pecados – matar um ser humano – ficamos com a mais prosaica das tarefas: dar fim àquele trambolho que é um cadáver. Por isso os ingleses geralmente enterram suas vítimas, prosaicamente, no porão ou no jardim. É a solução mais prática, e somos um povo prático. Levá-lo para longe é sempre arriscado, principalmente quando o jogamos num caminhão de batatas e depois precisamos reaver um objeto que foi junto por engano, como fiz em Frenesi. Em O Terceiro Tiro pude usar a chave do humor sinistro para me divertir um pouco com isso. 
 
BT – Em The Rope o cadáver fica praticamente ao alcance da mão de todas as possíveis testemunhas, durante o filme inteiro.
 
HITCHCOCK – Uma das vantagens da tomada em ação contínua, que usei nesse filme, é reproduzir a sensação material que temos numa peça de teatro, de sabermos que não houve nenhum intervalo de tempo, por menor que fosse, que lhes possibilitasse dar um fim do cadáver. Ele é uma presença obsessiva, material mas invisível, pesando sobre o filme inteiro.


BT – Podemos dizer que o senhor leva a sério este problema.
 
HITCHCOCK – Faz parte da vida. É como no sexo, não acha? Depois que o indivíduo comete um crime ele está psicologicamente exausto, como se tivesse acabado de concluir um ato sexual. Tudo que ele quer é descansar. Mas... ele vê aquele corpo ali, ao lado, e precisa tomar uma providência a respeito. 
 
BT – O senhor tem de fato um humor muito peculiar.
 
HITCHCOCK – Sim, tenho consciência de que ao longo da vida fui um homem temido e admirado. Amado... raramente.




 
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Philip K. Dick:

Agatha Christie:

Julio Cortázar: