quinta-feira, 10 de outubro de 2019

4511) Quero que você me aqueça neste inverno (10.10.2019)




Un rude hiver (1939), de Raymond Queneau, é um dos romances mais curtos e mais acessíveis deste escritor cuja erudição e temperamento arlequinesco deixam às vezes perplexo mesmo o leitor mais cheio de boa vontade.

Não que seus livros sejam difíceis de ler – pelo contrário. Mas quando um leitor bem informado descobre meia dúzia de referências salpicadas ao longo de dois ou três capítulos, ele acende um sinal de alerta. “Estas aqui eu pesquei. Mas quantas outras não estarei perdendo?”.

Esta história se passa em Le Havre, a cidade natal do romancista, durante a I Guerra Mundial. Em 1939, às vésperas da “próxima guerra” (como tanto se dizia na época), Queneau meditava sobre a anterior. É a história de Bernard Lehameau, 33 anos, desmobilizado da guerra por um ferimento na perna, e seu cotidiano sem graça à espera de ficar bom e partir de novo para a frente de batalha.

(Le Havre)

Lehameau é um tremendo dum reacionário, em termos políticos e pessoais, e ainda assim é um personagem simpático, ou no mínimo fascinante. Manifesta um desprezo bronco pelos trabalhadores e pelos pobres em geral. Ironiza a França ao compará-la com a Alemanha. Vive em atrito permanente com o irmão mais velho e a cunhada. Praticamente não tem amigos, e convive apenas com uma criada idosa que cuida de sua casa.

Sua memória era juncada de túmulos, como a de um romântico, mas ele, funcionário aplicado, extirpava com dedicação as ervas daninhas que se espalhavam pelas aléias, e cuidava apaixonadamente dos pequenos tufos de flores que apesar de tantos invernos se recusavam a murchar. (Cap. I, trad. BT)

A gente logo fica sabendo que Lehameau é assim casmurro não apenas pelo ferimento de guerra, mas por uma tragédia ocorrida treze anos antes: no incêndio de um cinema que ficava numa galeria, ele perdeu a mãe, uma cunhada, e a esposa (que possivelmente estava grávida). Desde então, não soube o que é mulher.

E com isso se tem uma racionalização para entender esse personagem aparentemente simples mas contraditório, que tem um certo senso de humor, que é extremamente carente de carinho.

(Le Havre)

O livro inteiro é o relato de suas tentativas de aproximação com várias mulheres: Mme. Dutertre, mulher de meia idade, meio mística, dona de um sebo que ele frequenta; sua atual cunhada, Thérèse, fisicamente atraente, com quem ele dá umas flertadas de vez em quando; a inglesa Helena Weeds, uma jovem militar inglesa estacionada no Havre, com quem ele começa a manter um namoro cheio de dedos; e Annette, uma garota de 14 anos que ele conhece por acaso, de quem fica amigo, e que começa a manifestar uma paixão juvenil por ele.

Elas são o lado ensolarado e aquecido da vida do personagem (frio/calor é uma oposição constante na narrativa), e atenuam sua raiva surda pelo lado mais miserável da humanidade:

Um bonde o conduziu até o Eure, de onde ele retornou pelo cais e pelos bairros operários, uma longa caminhada através de um mundo de trabalho e de horrores. Por toda parte se agitavam máquinas e escravos, numa atividade que parecia desmedida, abominável. Por toda parte aquele lugar, arfante e suado, carregado de desespero e de vícios, parecia prestes a fazer brotar monstros e catástrofes de dentro da própria coxa. E o tempo não produzia outra coisa senão a vergonha.  (...) Lehameau se  fartava de desprezo e de horror e sua alma tripudiava de exaltação. Ele saboreava a própria repulsa absoluta e fanática por aquela plebe do porto e das usinas, por aquela gentalha de boné, aqueles proletários carrascos dos próprios filhos, insolentes com as pessoas de bem, bêbados, brutos, sediciosos e imundos. Alguns quarteirões da cidade, com suas favelas embandeiradas de roupas para secar e pululantes de crianças, com seus bordéis e seus botequins, representavam para ele a imagem terrestre mais próxima do inferno, caso tal lugar existisse. E assim ele deixava crescer em seu peito o ódio e a repugnância que lhe provocavam o espetáculo daquela raça maldita e infecta que as desordens da guerra ameaçavam fazer subir à superfície.

Sem falar que no meio daqueles malditos ainda havia uma boa quantidade de pacifistas.  (Cap. VI)

A violência dos pensamentos íntimos do personagem contrasta com a polidez dos seus diálogos, a gentileza um tanto carrancuda com que se comunica. Lehameau é um desses vulcões que parecem adormecidos quando vistos pelo lado de fora.

(Le Havre)

Seu ódio prazeroso diante da miséria tem para ele uma justificação:

No cais das Casernas, o vagaroso caminhante cruzou com um grupo de rapazotes meio bêbados, verdadeiros marginais de catorze anos. Ao vê-los, ele experimentava uma alegria vívida, como um eleito divino diante do espetáculo dos condenados ao inferno, segundo algumas religiões. (Cap. II)

O que me trouxe à mente este comentário de Henry Thomas (A História da Raça Humana, Ed. Globo, 1967) sobre a Idade Média na época de Dante:

Mesmo um dos mais piedosos dos escritores medievais, Santo Tomás de Aquino, chegou ao ponto de dizer que Deus em sua bondade intensifica a felicidade dos santos do Céu, permitindo-lhes contemplar as torturas dos pecadores do Inferno.




Em suma: não basta estar no Paraíso, é preciso saber que há gente no Inferno.  Lehameau parece um indivíduo sem salvação. E um belo dia ele está no bonde quando um casal de irmãos senta diante dele, um garoto de 8 anos e uma menina de 14.

Lehameau pensou consigo mesmo: que imprudência deixar duas crianças andarem sozinhas no meio de uma cidade grande. Examinou com mais atenção a menina, e considerou que seria uma boa presa para um sátiro. (Cap. I)

E a partir daí sua vida muda, porque eles trocam algumas frases, e ao descer do bonde a menina lhe sorri.

Lehameau fechou os olhos para encarar corajosamente o grande vácuo negro que se cerrava sobre si. (Cap. I)

Ele fica amigo da garota, do seu irmão, e da irmã mais velha dos dois, Madeleine, que cuida deles e que não por acaso é prostituta junto às numerosas forças armadas estacionadas no porto. Por um lado, Lehameau ensaia um namoro desajeitado com a inglesa Miss Weeds, um namoro onde a muito custo ele consegue pronunciar um casto "je vous aime". E por outro, está fascinado por Annette, a garota que a cada reencontro fica mais interessada nele.

Aquele relâmpago que o havia trespassado, ele o reencontrava materializado naquela carne, tão delicada que ele não acreditava como ela podia fazer caber em si uma graça tão intensa. (Cap. III)


(manuscrito de Queneau)

Nada pode ser mais distante do modo de escrever de Raymond Queneau do que o clichê “história de amor”, porque longe de seguir os passos e os movimentos obrigatórios no gênero ele se limita a acompanhar um homem ao mesmo tempo sensível e ressentido, apaixonado e rancoroso.

Ele comenta com a cunhada Thérèse seu desespero diante da partida iminente de Miss Weeds para a Inglaterra:

Eu a amo, murmurou. Mas daqui a um mês esse amor estará morto, consumido. Estaremos separados, esteramos perdidos um para o outro. E tudo terá fim. Há um incêndio que brotou em algum lugar e que se estende e se propaga e que arde e que queima tudo que encontra. Ele derrete as junturas e aquilo que não é feito de uma peça inteiriça se desmorona, desmantelado, feito em pedaços. Os metais vulgares se fundem de imediato, mas os outros serão temperados. Talvez. É um grande incêndio, Thérèse. E só vão restar grandes bosques calcinados, para onde as aves jamais retornarão. (Cap. XII)

Un rude hiver é a história de uma redenção sofrida, com algumas surpresas de enredo, pequenas comédias, pequenas tragédias.

Aquele homem parecia levar o amor tão a sério, o amor: nem era um simples “caso”, era um flerte, e aquilo parecia querer transformar um mero passeio sentimental em alguma coisa trágica e psicológica. (Cap. IX)