quarta-feira, 21 de outubro de 2009

1306) A família do rei (20.5.2007)



Um dos quadros mais famosos de Francisco de Goya, sobre cujas gravuras falei recentemente nesta coluna, é aquele em que ele retratou a família do rei Carlos IV da Espanha. Foi uma dessas obras encomendadas que provocam em muitos artistas emoções contraditórias de júbilo e terror. Júbilo porque retratar a família real significa receber dinheiro, honrarias, pensões para familiares carentes, talvez um título de nobreza ou um salário vitalício – para não falar na fama. Terror porque os reis, como os doidos, são imprevisíveis. Tem muito caso por aí de rei que não gostou do retrato e mandou enforcar o retratista.

Vai daí que Goya pode se benzer e acender velas aos céus, porque se alguém retratasse minha família com a mesma sem-cerimônia com que ele retratou a do rei Carlos IV, meu amigo, era um caso para cadafalso em 48 horas. O quadro está no Museu do Prado mas versões digitalizadas podem ser encontradas na Web, como esta aqui: http://tinypic.com/1o1zxd. Os críticos consideram que ele fez um retrato devastador da família real. Fred Licht considera o quadro “uma obra única em sua descrição drástica da bancarrota humana”. Téophile Gautier assim o descreveu: “O padeiro da esquina e sua mulher, depois de ganharem na loteria”. H. W. e Anthony Janson dizem: “Eles parecem uma coleção de fantasmas: as crianças amedrontadas, a imagem embrutecida e balofa do rei, e num golpe de mestre de humor e sarcasmo, a rainha de uma vulgaridade grotesca. (...) Como, é o que nos perguntamos atualmente, a família real tolerou tal coisa? Estariam tão deslumbrados com a pintura esplêndida de seus trajes que não perceberam o que Goya havia feito com eles?”

Parece que não perceberam nada, pois a história registra que ficaram todos muito satisfeitos com o quadro. Principalmente a rainha, um tribufu horroroso, mas à qual o pintor sabiamente conferiu a posição central e mais iluminada da imagem, ressaltando o fato de que quem mandava no reino era mesmo ela. A sensação que nos produzem é a de pessoas vulgares, grosseiras, sem refinamento, o tipo de gente que não compreende uma ironia e que – como todos os ditadores e absolutistas – em caso de dúvida manda queimar tudo e prender todo mundo, porque não sabe distinguir o que é ironia e o que não é.

O quadro tem outros detalhes deliciosos, entre eles o fato de que a mulher do príncipe está de frente mas com o rosto virado para trás. No blog do espanhol “Rothko” (http://www.espacioblog.com/rothko/post/2006/04/16/la-familia-carlos-iv) encontro a informação de que na época ainda não se sabia a identidade da princesa, por isto seu rosto não aparece. E por trás do casal vê-se na penumbra a imagem de um homem de seus cinqüenta anos, meio de lado, como quem está prestes a se ocultar atrás de um enorme cavalete de pintura. É o próprio Goya, numa aparição hitchcockiana, incluindo-se no quadro, mas numa atitude de “não tenho nada a ver com essa turma”.

1305) Os ensaístas (19.5.2007)





(Ilustração: designsbylili.com)

Um típico ensaísta americano, analisando o estilo de um autor, diria algo como: 

“O estilo de John Smith se baseia na ambigüidade das palavras, das frases, e de períodos inteiros”. 

Um típico ensaísta francês diria algo como: 

“O texto de John Smith: devir que nunca se presentifica por completo, existindo em estado de fluxo impalpável, movimento puro, indefinível à observação; matéria coleante, dado mallarmeano em movimento, sempre a apresentar-nos uma face diferente, numa perpétua mutação cuja perpetuidade acaba por se cristalizar em sua fisionomia; seu ser consiste num vir-a-ser incessante”.

Ou seja: de um lado temos um estilo preciso, claro, cujo autor procura pensar longamente sobre o objeto estudado e depois registrar suas impressões da maneira mais direta possível. 

Do outro lado, temos um estilo que parece inventar a si próprio à medida que avança, repetindo as mesmas coisas com palavras diferentes enquanto vasculha os próprios bolsos de onde retira moedas de diferentes nacionalidades e valores.

Tenho para mim que estilos desse tipo crescem contemplando-se uns aos outros, e afirmam-se através da recusa, da dissensão. “Ah, é assim que você faz? Pois é assim que eu não vou fazer”. 

Deve ter havido um momento em que a linguagem oficial do ensaísmo universitário era seca, precisa, direta, assemelhando-se a um informe governamental ou ao relatório de um legista que acabou de dissecar um cadáver. Tudo era muito nítido e preciso. Alguns estudiosos sentiam-se desconfortáveis diante desse cientificismo burocrático, pseudo-objetivo, empobrecedor. 

Começaram a apelar para a literatura. No interior daquele ensaísmo sem nuances começou a brotar um grupo dissidente que escrevia do jeito que pensava: tortuosamente, emocionalmente, esbanjando metáforas e subentendidos, criando um percurso em ziguezague entre quaisquer duas idéias por mais próximas que fossem. Este estilo literário surgiu, na aridez vigente, como um oásis de exuberância, de subjetividade, de calor humano, de sabor estilístico para ser degustado por seus próprios méritos.

Tempo vem, tempo vai, de repente foi esta maneira de escrever que se encastelou na torre de comando. Para ser um ensaísta respeitado, era preciso escrever nessa mistura de cartesianismo conceitual e barroquismo retórico. 

Ao ler estes ensaístas, somos tentados muitas vezes a manter a ponta do indicador esquerdo em cima do sujeito da frase, para não perdê-lo de vista, à espera de que, depois de tantas interpolações, de digressões, de ressalvas parentéticas, possa enfim surgir várias linhas abaixo, como se fosse o troar distante de um trovão que só se faz presente algum tempo depois do relâmpago que o produziu, o respectivo complemento. 

O ensaísmo de alto nível virou um baile setecentista onde vigoram as perucas, os espartilhos, as múltiplas saias, as jaquetas bordadas, e onde é quase um “happening” nudista dizer uma frase curta com começo, meio e fim.




1304) Marinês (18.5.2007)




Durante mais de 50 anos Marinês foi a grande voz feminina do forró. Existem outras cantoras, claro, mas independentemente do seu talento e do seu merecido sucesso, nenhuma delas teve um impacto tão forte e uma presença tão contínua quando a Rainha do Xaxado. Na linha da frente dos grandes forrozeiros, ao lado de gigantes como Jackson, Gonzaga, Dominguinhos, de mulher só tinha ela. 

Num “relise” para seu disco de 1986, Tô Chegando, escrevi: “Estar chegando é um modo de dizer, porque ao longo de 25 anos Marinês sempre esteve na MPB”. A conta era modesta: onde se lê 25 leia-se agora 50, e o sentido fica mais exato. 

Na sua discografia do “Dicionário Cravo Albim On-Line” (http://www.dicionariompb.com.br/), começando em 1957, o único hiato significativo é entre 1988 e 1995 (e mesmo assim a omissão pode ser do saite).

Anos atrás Marinês participou de um show de Elba Ramalho no Canecão, e foi a sensação da noite. Quando as duas cantavam “Amor com Café” de Antonio Barros e Cecéu, a voz de Marinês parecia vir de todas as direções ao mesmo tempo, como se cada mesa tivesse uma caixa-de-som própria. Um grupo de cariocas elegantes sentados na mesa ao lado perguntou: “Meu Deus, onde é que Elba descobriu essa mulher? Como é mesmo o nome dela?” Eu tive vontade de dizer: “Essa mulher vive cantando pelo Brasil afora há cinqüenta anos, vocês é que nunca tiveram a sorte de saber”. 

Todos dependemos do rádio e da TV para saber da existência de um artista. Eu mesmo desconheço milhares de artistas brasileiros em atividade, só porque não aparecem na famigerada “mídia”. Quando eles tiverem 70 anos, nós os ouviremos pela primeira vez e ficaremos admirados: “Como é mesmo o nome dele?”

Vozes potentes como as de Gonzaga e de Marinês surgiram numa época em que as aparelhagens de som eram muito precárias. O cantor muitas vezes era obrigado a cantar “a capella” para uma praça cheia de gente. Na melhor das hipóteses, dispunha de microfones de locutor de rádio, e de amplificação improvisada. 

Daí que muitos cantores tiveram que desenvolver gogó e pulmão para se fazerem ouvir por algumas centenas ou milhares de pessoas ao ar livre. Hoje em dia, qualquer João Gilberto (com todo respeito) sussurra amenidades ao ouvido do microfone e é ouvido por todo o Vale do Anhangabaú. Naquele tempo, meu amigo, quem cantava tinha que cobrir o volume da própria sanfona.

Quando morre um artista, o amor que temos por ele nos leva sempre a achar que ele foi injustiçado, que não obteve todas as honrarias merecidas e todo o sucesso a que tinha direito. Quando George Harrison morreu, um crítico lamentou que ele fosse “o mais obscuro dos Beatles”, como se ser isto fosse pouco. 

Não é arrogância nem ambição, é porque lamentamos que haja gente no mundo que não conheceu aquele talento. Meu consolo egoísta é saber que eu tive este direito. Quando me lembro de Campina Grande, tem sempre um rádio ligado e a voz de Marinês no ar.





1303) K e W na Turquia (17.5.2007)



Existe uma campanha contra a americanização de nossa língua, contra o uso de termos em inglês quando temos equivalentes legítimos em português, e mesmo quando não os temos nada nos impede de criá-los. No futebol, por exemplo, inventamos “escanteio” para substituir “corner”, traduzimos “center-forward” para “centro-avante”, criamos nossos próprios termos – aí estão expressões como “cabeça de área” ou “ponta de lança”. Aportuguesar é apropriar-se culturalmente. Enquanto usarmos os termos ingleses é como se pagássemos royalties simbólicos, reconhecendo que os proprietários daqueles termos e daquelas idéias não somos nós, são os outros.

Radicalizar? Nunca. Palavras como “futebol”, “gol” ou “pênalte” reafirmam a origem. Mas isto são hoje exceções. Meu pai era do tempo em que se dizia: “O juiz marcou um free-kick perto da área”. E olhe que ele era do tipo radical, que dizia; “O inglês é uma língua burra, que escreve five, pronuncia faive, e quer dizer cinco”. Eu já acho que foi um exagero quando a reforma ortográfica fingiu eliminar as letras K, W e Y do nosso alfabeto, porque na verdade não as eliminou. São usadas o tempo todo, todas têm seções próprias nos dicionários, e precisamos explicar aos nossos filhos, na fase da alfabetização, que letras são aquelas que eles vêem por toda parte menos nas cartilhas.

A reforma foi positiva para que possamos escrever quilômetro em vez de kilômetro ou mistério em vez de mysterio. Foi um ganho. E não precisamos fazer como fizeram os turcos há poucos anos. A situação na Turquia é curiosa. Encravado entre a Ásia e a Europa, o país quer fazer parte da União Européia, mas como é de maioria islâmica é olhado com desconfiança. Já em 1928 houve uma reforma substituindo o alfabeto arábico pelo ocidental, mas as letras W e Q não são admitidas. Recentemente, a polícia turca prendeu dezenas de curdos que, nas comemorações do Ano Novo, usavam cartazes com as letras W e Q. Os curdos são uma minoria problemática não apenas na Turquia, mas também no Iraque. São um dos muitos povos sem nação que existem hoje, como os judeus o foram durante séculos. Querem manter sua cultura, suas tradições, e até mesmo sua ortografia, mas como vivem na casa alheia têm que se submeter às leis turcas. O dia era de festa, o pessoal tomou umas e outras, extrapolou, escreveu letras proibidas e cada um pegou uma multa de 75 dólares.

O Brasil chegará a este ponto? O deputado Aldo Rebelo já propôs leis proibindo o uso indiscriminado do inglês. Concordo com os diagnósticos dele (a invasão do inglesismo é de uma subserviência cultural que nos humilha), mas discordo quanto aos métodos. Proibir não adianta. Enquanto nossa classe média tiver esse complexo de inferioridade por não ser igual aos seus ídolos norte-americanos (sejam eles os cowboys motorizados do Texas ou as madames recauchutadas de Miami), não adianta proibir. O problema é a falta de personalidade dos próprios brasileiros.