Nossa cultura parece partir de um pressuposto ingênuo, ao avaliar os artistas. Ela considera que um artista é sempre uma pessoa boa, uma pessoa do bem, uma pessoa que cultiva os valores mais nobres da humanidade. E a arte superior que pratica (na pintura, na música, na literatura, no cinema, etc.) é um reflexo dessa personlidade privilegiada.
Esse é um conceito bonito, um conceito cheio de vernizes
aristocráticos, mas que infelizmente não se sustenta de pé. Ou felizmente: é
sempre melhor ver as coisas como são do que como a gente gostaria que fossem.
Eu afirmo que um(a) artista, mesmo os(as) maiores que a
humanidade já viu, é uma pessoa moralmente equivalente às pessoas de qualquer
outra profissão: os sapateiros, as enfermeiras, os motoristas, as médicas, os
políticos, as funcionárias públicas, os encanadores, as professoras, e assim
por diante.
O que não falta na História da Arte (qualquer arte) são
indivíduos machistas, ou desonestos, ou cruéis, ou trambiqueiros, ou
reacionários, ou insensíveis, ou egocêntricos, ou ditatoriais, ou exploradores
dos mais fracos... e que nem por isso deixaram de produzir grandes obras.
A arte não corrige os nossos defeitos. Na melhor das
hipóteses, serve de compensação para eles. Resgata uma vida que, se não tivesse
produzido aquela arte, seria apenas uma vida-desperdiçada a mais.
Alguém questiona: “Ah, mas um artista é uma pessoa mais
sensível que as outras, mais esclarecida, mais criativa, mais sensível à beleza
e à verdade, pela própria atividade que exerce...”
Eu até concordo, mas lembro que o mesmo poderia ser dito
dos professores, dos filósofos, dos padres, dos religiosos em geral. E quando a
gente vai ver, “é tudo uma canalha só”, como dizia Carlos Drummond num momento
bem-humorado.
O que acontece é que os artistas nos conquistam com sua
arte (estou falando daqueles artistas que nos tocam, que são importantes para
nós – o que varia de pessoa para pessoa) e devido a isto somos tentados a
“passar pano” nos seus malfeitos. O que também é compreensível. A gente não
pode passar a vida inteira somente sendo juiz da vida alheia.
Artistas devem ser cobrados por suas posições morais?
Sim, tanto quanto os eletricistas, as advogadas, os jogadores de futebol e as
bordadeiras. Posição moral é dever de todos.
Não devemos confundir isto, porém, com uma outra
atividade, essa sim condenável: a indústria de fofocas, das reportagens e das biografias
escandalosas que ficam inventando ou ampliando aspectos negativos da vida de
gente famosa. Isto existe para satisfazer o voyeurismo de um público que
compensa a monotonia de suas vidas fantasiando os excessos dos famosos.
Imaginando que os famosos fazem aquilo que elas próprias fariam, se estivessem
no seu lugar.
Essa indústria da fofoca, do boato e da maledicência é
mais comum no cinema de Hollywood e na música pop do que em artes mais
discretas, como a poesia e a música clássica, mas não se enganem, está presente
em todo canto.
Na juventude eu fui uma espécie de adorador de ídolos e
muito me entristeceu, na vida adulta, descobrir que meus ídolos eram capazes de
ações que me envergonhavam, de ações que eu condenava sempre nos que estavam
“do outro lado do muro”.
Luís Buñuel era apaixonado pela esposa Jeanne, mas era
ciumentíssimo, não queria nem que ela tocasse piano (que ela adorava) porque...
sei lá por que. Talvez porque tocando ela chamasse muito a atenção sobre si
mesma. Quando ele morreu, ela (que também o adorava) publicou um livro de
memórias chamado “Uma Mulher Sem Piano”.
Alfred Hitchcock, um marido fidelíssimo e leal, costumava
se apaixonar pelas atrizes louras que selecionava para seus filmes (Eve Marie
Saint, Grace Kelly, Tippi Hedren, Kim Novak) e as martirizava no set de
filmagem. Era um monstro? Não, era um cara solitário e meio cruel.
Tive um choque quando descobri que Carlos Drummond
manteve uma amante durante a vida inteira, mas não se separou da esposa. Não
pelo fato de ter uma amante, em si – isso acontece; mas porque esse arranjo me
parecia (na época) cruel demais com as duas. Apaixonou-se? Faz como Vinícius:
bota a escova de dentes no bolso e vai morar com a outra. Mas quem sou eu para achar
que um deles estava certo e o outro errado?
Mais fácil era lidar com o fato de que Benvenuto Cellini
e François Villon eram bandidos mesmo, dos que matam gente e vão pra cadeia.
Eram outros tempos. O mesmo com Leadbelly ou Chuck Berry. Era fácil atribuir os
malfeitos deles à condição de negros numa sociedade racista e injusta.
O problema era quando alguém me perguntava qual artista
tinha uma vida exemplar, uma vida que a gente pudesse “assinar embaixo” sem
remorsos. Sempre que um candidato era apresentado na conversa, alguém tirava da
algibeira três ou quatro fatos espantosos a seu respeito. Eu ficava um ano sem
nem chegar perto de um livro do sujeito, pra não me contaminar.
Essa ingenuidade é compreensível. Não que a gente deva se
achar moralmente superior a quem quer que seja. Mas é preciso afirmar que
existe um ideal moral, superior a todos nós, que está lá longe, lá no alto,
distante mas visível. E que tanto eu, quanto você, quanto Pablo Picasso ou
William Shakespeare ou Orson Welles deveríamos ter em mente esse ideal, e
tentar agir de acordo com ele.
Temos uma certa dificuldade em reconhecer que o Bem e o
Mal, sejam lá o que forem, fazem parte da vida real. Lemos um número excessivo
de biografias laudatórias de santos, de heróis, de mártires, de gênios. Ficamos
achando que algumas pessoas são imunes às pequenas e grandes sacanagens da
nossa vida diária, às pequenas e grandes covardias, às pequenas e grandes
brutalidades que cometemos sem remorsos porque sabemos que ninguém vai nos
punir, ou, melhor ainda, que ninguém vai ficar sabendo.
“Quem sabe o Mal que se esconde nos corações humanos? O
Sombra sabe!”, dizia Walter Gibson. Ele sabia que o Bem também se esconde no
mesmo lugar. Um artista tem a mesma quantidade de Bem e de Mal que qualquer
outra pessoa. A única diferença talvez seja que ele tem acesso direto ao filão
disso tudo, e isso torna sua responsabilidade (e sua eventual tragédia) maior
do que a nossa.