Caminho na direção da entrada, pensando que daqui a dez mil anos este estúdio estará sendo desenterrado. Arqueólogos da humanidade futura tentarão encontrar algum sentido na profusão de artefatos primitivos que encontrará lá dentro: dragões, sofás, cavalos de madeira, bebedouros, barcos, câmeras, holofotes, espadas, animais mecânicos, camarins, esqueletos, castelos inacabados.
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FF – Não se preocupe. Nesta fase inicial quem menos trabalha sou eu. Os marceneiros estão pondo de pé uma estação de trem, que não sei ainda como vou usar. Ou melhor: tenho uma cena pronta na cabeça, a chegada de um personagem, de madrugada, a uma cidade desconhecida. Não sei ao certo o que vai lhe ocorrer, mas ele desce para tomar um café ou comprar um jornal, distrai-se, e o trem parte sem ele.
FF – Depois... não sei. Enquanto estiver filmando isto, mandarei construir um hospício. Talvez ele se lembre de que seu pai está internado ali e resolva fazer-lhe uma visita. Alguns dos meus filmes nascem assim, de pequenos episódios que vão se juntando. O importante é ter as idéias com um mínimo de antecipação, para que os técnicos possam trabalhar: marceneiros, figurinistas...
BT – Ao longo de sua carreira, seus enredos foram se tornando mais episódicos, menos articulados, e talvez menos previsíveis.
FF – Sim. Penso que fui mais literário na primeira metade de minha carreira, preocupava-me muito com a história, a verossimilhança dos pequenos acontecimentos, a verdade emocional dos personagens... Isto vinha na frente. Depois creio que fui me afastando da literatura e me aproximando da pintura, ou das histórias em quadrinhos, e descobri o prazer de contar muitos episódios curtos, sucessivos, mas sem a obrigação de obedecer a um arco mais amplo. Não faço isto por deliberação, é espontâneo. São duas maneiras legítimas de narrar. Existem outras.
FF – Sim, isto acabou se tornando o principal clichê a meu respeito, para muitos produtores, críticos, etc. Aparece um anão soprando bolhas de sabão, e eles gritam: “Felliniano!...” Aparece uma mulher gorda na janela, escovando os dentes, com os seios enormes de fora, e gritam: “Felliniano!...” Não nego que tudo isto me fascinava quando garoto. Sou fiel a este fascínio, ainda filmo para recapturar o maravilhamento dos meus dez anos diante de coisas assim.
FF – E talvez seja uma imagem que me é muito cara, que me lembra inclusive tempos da juventude, quando não tinha dinheiro, não tinha trabalho, andava de madrugada meio sem destino, outras vezes saindo de um trabalho que entrava pela noite... O que quer? O mundo é feito disto, multidões ruidosas e coloridas durante o dia, e durante a madrugada pessoas sozinhas caminhando devagar, sem pressa de chegar a lugar algum... Quando vejo uma rua com todas as portas e janelas fechadas, à luz dos lampiões, ela me parece uma mente adormecida, e tudo que acontece ali é como um sonho... A madrugada é o espaço do sonho, porque todos dormem. A rua deserta é uma rua que só existe em nós, e para nós. Por isso também me seduz a névoa, a neblina de Rimini, que envolvia as casas, as torres, os edifícios... tudo ficava suspenso no interior dessa nuvem branca, que a luz dos postes elétricos mal conseguia atravessar.
FF – Sim, embora o cinema de Don Luís seja, de certo modo, mais ácido e menos sentimental do que o meu; tenho consciência disso. O que nos aproxima talvez seja o horror ao moralismo, à hipocrisia. O moralismo, no fundo, não passa de uma tentativa de humilhar alguém para afirmar a nossa própria superioridade. Talvez isso tenha origem no fato de que tanto eu quanto Buñuel somos latinos, emotivos, passamos parte da juventude sob o peso de regimes totalitários, e da lavagem cerebral promovida pela Igreja. Com isto, adquiri um grande desprezo pelo moralismo, porque os que se dizem moralistas não se preocupam com nenhum valor moral elevado, e sim com a possibilidade de acumular poder para si mesmos quando humilham e condenam os demais. Só pensam em si, como o homem que só dá uma esmola se houver alguém olhando. E no fundo têm todos essa visão tribunalesca do mundo, uma corte onde eles investigam, interrogam, julgam, condenam ou perdoam... Não é assim que vejo a vida.
FF - Meus filmes são castos. Raramente mostro uma cópula, ou nudez exagerada. Há exceções motivadas pelo tema, como em Casanova, mas o sexo ali é coreográfico, performático, não se destina a excitar alguém. Nos meus filmes há sexo, mas como um aspecto da vida. É isto que os moralistas não me perdoam. O escândalo da La Dolce Vita não tinha a ver com nudez ou intercursos sexuais. Minhas orgias são desajeitadas, amadorísticas... A sensualidade, por outro lado, aparece na cena da Fontana di Trevi, uma cena de pessoas vestidas dos pés à cabeça, e que mal se tocam. É a água que fornece o erotismo. Os moralistas entenderam (sabe-se lá como) o quanto a água é erótica.
FF – Quero mostrar quem eles são, mas todos nós estamos mais próximos uns dos outros do que imaginamos. Existem pessoas essencialmente malignas, no mundo, mas são raras nos meus filmes. O que mostro, geralmente, são pessoas movidas por impulsos contraditórios, ou por desejos mais fortes que seu bom senso, ou pelo medo que nos amesquinha, ou por situações em que se metem e não conseguem voltar atrás... Roubam, enganam, trapaceiam, porque é o que lhes parece mais fácil no momento, o atalho mais curto para obter o que pretendem, e são um pouco como crianças, sempre acreditam que ninguém está vendo, e que no fim escaparão impunes.
FF – São castigos que na verdade não procuram ter efeito moral, “vejam como o vício será punido!”... Não, é apenas para mostrar de que modo eles se metem nas enrascadas, porque têm uma percepção defeituosa da vida, são egoístas como crianças mimadas, nunca acham que podem estar errados, e geralmente estão. E qualquer um de nós passa de vez em quando por vexames desse tipo. Com menor gravidade, espero. Eu próprio já meti os pés pelas mãos tantas vezes! Não, eu não seria capaz de roubar a bolsa de Cabíria, com todas as suas economias dentro, mas sou capaz de imaginar o que se passa no espírito sombrio daquele indivíduo. Daí aquela longa cena, antes do roubo final... Estão à beira do barranco, ao entardecer... ele já sabe o que fará... está em plena tragédia... por isso nada diz, não faz um gesto, enquanto ela ainda está vivendo a própria fantasia.
FF – O adultério tem a ver com a vaidade do homem que, com ingenuidade semelhante, nunca acredita que pode estar errado. Ele sempre acredita que a mulher jovem com quem conversa está tremendo de desejo por ele mas é obrigada a manter uma aparência virtuosa. Não é diferente da mocinha ingênua de Abismo de um Sonho, que larga o marido numa situação bem constrangedora, para perseguir o galã das fotonovelas; tanto ela quanto o sedutor vivem uma fantasia tão intensa que não conseguem perceber a realidade.
FF – Se as emoções fortes são verdadeiras, as sutilezas irão aparecer, principalmente no cinema, porque estamos no domínio da câmera, da iluminação e do ator, e nenhum diretor tem domínio total sobre todos estes elementos, ao mesmo tempo. E nenhum diretor necessita desse domínio. Temos que buscar a verdade emocional da história antes de tudo, e o resto virá por si só. E não me refiro simplesmente ao lado mais externo das emoções, o riso, o choro, a raiva, a paixão... Mas às emoções profundas, que nos movem, que nos impelem a agir deste ou daquele modo... Isto é um trabalho fascinante para quem escreve, quem dirige, quem interpreta... No momento de uma cena forte, de um close-up, há mil sutilezas que é preciso permitir que brotem, sem que o roteirista ou o diretor as tenham que prever, necessariamente. O momento principal do cinema é quando o diretor diz: “Ação!... Tudo que acontece antes é mera preparação, e o que acontece depois é acabamento.
Dito isto, respondo: sim, gosto de situações exageradas, até meio absurdas, gosto de emoções grandes demais. Não sou um retratista, sou um caricaturista.
FF – Gosto de rostos que parecem máscaras, porque sinto neles uma verdade maior do que naqueles rostos pálidos, plácidos, organizados, que se parecem todos uns aos outros... Estes são os rostos da nossa era, a era das máquinas, em que tudo parece feito de acordo com a mesma fôrma. Gosto do que é único, e o que é único geralmente nos parece extravagante ou bizarro. Em todo caso, gosto de compor com os rostos. Nos meus primeiros filmes tive que aceitar às vezes os atores que as circunstâncias me impunham, mas meu desejo era sempre compor um personagem: um rosto, uma roupa, um ambiente, uma voz... Muitas vezes o ator tinha o rosto que eu queria mas a voz não tinha nada a ver, eu era forçado a encontrar alguém que tivesse a voz adequada e fazer a dublagem.
FF – Mas sim! É uma técnica como qualquer outra. Em algumas cenas só me veio à mente o que os personagens estariam falando quando vi a cena na moviola, sem som, e pela expressão do rosto deles uma certa troca de palavras me veio à mente. Não funciona em toda cena, é claro, pois existem aquelas onde os atores precisam estar dizendo coisas específicas, ou a história não faria sentido. Mas em outras...
FF – Tenho impaciência com quem fica tentando provar que o que passa na tela é uma mentira. Mas claro que é uma mentira! A arte é uma mentira, uma invenção, um sonho... Fiquem eles com a verdade deles, podem ficar de pé na sala e gritar que as ruas são feitas de papelão, e que as balas são de festim. Há gente que vai para o cinema com um cronômetro ou um binóculo para encontrar o que eles chamam de “erros” – para ver se os movimentos das mãos de um instrumentista correspondem aos sons que se ouve na banda sonora.
Eu não filmo para gente assim. Filmo para gente capaz de olhar um ator e não se perguntar de quem é aquela voz. É uma composição, é como usar uma tela transparente, com projeção ao fundo mostrando o Monte Olimpo ou o fundo do mar. É claro que é um truque!
FF – Mas, quem não gosta? Amadureci como artista escrevendo roteiros de quadrinhos à imitação de Alex Raymond e de Lee Falk, quando o governo fascista proibiu a importação das tirinhas. Eu escrevia, e um colega imitava o traços daqueles artistas, de quem ainda espero receber o perdão. Sim, escrevi Flash Gordon, escrevi Mandrake, mas colocar isto numa tela de cinema envolve outras questões. Tudo nasce da minha admiração pelo insólito, o grandioso, o despropositado... Sou um homem de Rimini, e Nova York para mim é uma metrópole interplanetária, uma construção cenográfica suspensa no tempo e no espaço, como aquelas cidades envoltas em cúpulas transparentes que viajavam pelo Sistema Solar. Sempre fui fascinado pelo mundo impossível criado pelos americanos. Ali, já assisti, numa tela gigantesca, uma projeção de “Satyricon” num daqueles “Square Gardens”, depois de um concerto de rock, com dez mil jovens fumando haxixe e fazendo o amor, e acho que nesse momento a Roma Antiga e a Roma Futurista dialogaram e se fundiram uma à outra, com uma pequena ajuda de minha parte.
FF – Às vezes, mas em geral tenho um certo incômodo, como se estivesse mostrando algo muito íntimo para uma multidão de desconhecidos, que facilmente podem me achar ridículo ou patético. O verdadeiro prazer está no ato de filmar. O grande momento do cinema é o dia de filmagem, à frente desse exército quixotesco que é toda equipe de cinema, com sua confusão, suas brigas, sua cumplicidade, seus mexericos, seus erros, seu perfeccionismo... Seja no estúdio ou na rua, um dia de filmagem é sempre um mergulho num mar desconhecido, para trazer de volta alguma coisa que nem sempre é o que buscávamos. Descobri isto através de Rossellini, nos meus primeiros trabalhos de cinema, pórque até então eu era um homem de gabinete, da escrita, do desenho, da produção de revistas ou de programas. E ao acompanhar as primeiras filmagens, principalmente em Paisà, percebi que o momento da filmagem era como um happening, como uma obra de arte efêmera que valia por si só, embora tivesse como propósito a realização de um produto que iria ser exibido meses depois.
FF – E quanto menos se falar sobre isto, melhor.
FF – Sim, mas é o que lhe falei, para mim não existe fronteira entre o que aparece na tela e o que está por trás da câmera. A fronteira existe apenas como uma abstração, uma convenção, tal como as fronteiras da vida real – se excetuarmos esses horríveis muros de pedra ou de arame farpado separando os países. A câmera pode apontar apenas numa direção, mas o cinema existe em 360 graus, é um círculo em que tudo se confunde.
FF – A palavra vem daí, círculo, circo, um espaço que inclui artistas, personagens e público: os que fazem, os que aparecem na tela e os que assistem. São espaços diferenciados mas contínuos, e vivem em função uns dos outros. Quando apareço filmando nos meus próprios filmes não estou posando de vanguardista, nem “quebrando a quarta parede”, estou sendo até meio saudosista, lembrando de um passado longínquo em que a arte era feita nas ruas, nas praças, no meio do povo, sem essa distinção artificial imposta pela indústria e pelo comércio artístico. Não sou contra o comércio, inclusive porque vivo dele, mas não podemos manter viva uma parte desse espírito?
FF – Filmar em equipe exige uma capacidade de sonhar coletivamente. Sempre me surpreendo quando digo, por exemplo, “preciso de um balão colorido que se eleva no ar levando consigo dez pessoas”, e dias depois tenho nas mãos não só o balão como as pessoas, dispostas a subir nele somente porque essa idéia maluca me ocorreu! É diferente da relação que temos com certos financiadores incapazes de entender a imaginação. Querem explicação para tudo, exigem cortes no orçamento... A cena tem que mostrar uma mulher que chega ao consultório médico, e quando entra vê dois médicos gêmeos, vestidos iguais, por trás da mesa. O produtor lê isso, faz uma marca na página e pergunta: “Mas, por que dois gêmeos?... Não bastaria um?...” É com esse tipo de questão que a gente tem que lidar o tempo inteiro, é de enlouquecer.
A assistente entrou já faz algum tempo, espera junto à porta, muito compenetrada, em seus óculos, seu cabelinho curto, sua minissaia. Séria como o mármore, que raramente sorri; tem idade para ser neta de Federico, e olha para ele com um olhar de mãe. Ele percebe, faz-lhe um sinal de positivo, ergue-se, eu também me levanto, abraçamo-nos, ele me agradece: “Grazie, trouxe-me belas lembranças, não deixe de ver o filme!..” O filme é A Viagem de Mastorna, um percurso calvinesco de um homem que perde o trem e se perde na estação, no mundo, e se maravilha com o mundo, e não quer mais voltar para o que havia antes.
(A série "Entrevistas Transcendentais" é formada por textos que são imaginários mas pretendem ser fiéis ao espírito dos supostos entrevistados. Eu não entrevistei estas pessoas.)
Agatha Christie:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4583-entrevistas-transcendentais-agatha.html
Philip K. Dick:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/08/4608-entrevistas-transcendentais-philip.html
Julio Cortázar:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/12/4651-entrevistas-transcendentais-julio.html
Augusto dos Anjos:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/01/4660-entrevistas-transcendentais.html
Alfred Hitchcock:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4894-entrevistas-transcendentais-alfred.html
Edgar Allan Poe:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/06/4957-entrevistas-transcendentais-edgar.html